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O macaco-prego que roubou a cena

Marcos Sá Correa - http://marcossacorrea.com.br
Autor: Marcos Sá Correa
03 de Mai de 2010

Assim que saiu o último ônibus, o macaco-prego velho de guerra atravessou o asfalto da BR-439. Podia ser pura coincidência. Mas ele deu a impressão de saber que estava encerrado o horário de visitação no parque nacional do Iguaçu. E o território voltava ser de bichos como ele.

Fez bem. Não faz tanto tempo assim que um macaco-prego como ele foi atropelado naquela estrada federal, dentro da unidade de conservação. E ali estava um inequívoco exemplar de Cebus apella muito vivido. Tinha uma moldura de pelos brancos ao redor da cara. E manchas de despigmentação entre as orelhas e os olhos. Sem contar as cicatrizes da dura sobrevivência na floresta.

Visto assim, correndo no chão, notava-se claramente a falta de um bom pedaço de sua cauda. A parte essencial, diga-se de passagem. Aquela ponta preensil que, na acrobática rotina de quem passa a vida pulando entre árvores, funciona como a corda de segurança dos trapezistas.

Ele saltava sem rede. E ainda por cima tinha uma falha no pé esquerdo, com todo o feito de ser um naco de carne e unha arrancado a dentada. Provavelmente, outro souvenir dos acertos de conta entre seu bando. Os macacos-pregos formam grupos grandes, de até 50 indivíduos. E, embora não tenham de encarar a despótica instabilidade política dos babuínos, que derrubam pelo menos um chefe por ano, não chegam impunemente a 40 anos de negociações cruciais sobre quem manda e quem obedece em seus bandos.

Trata-se de um animal de porte modesto e bastante vulgar, que se encontra praticamente em toda a América do Sul, da Venezuela à Argentina, sem excluir redutos urbanos, como o arboreto do Jardim Botânico na Zona Sul do Rio de Janeiro, onde não falta público para alimentá-lo com biscoitos e pipocas. Tudo isso implica uma invejável capacidade de adaptação. Dos macacos-pregos, evidentemente.

Eles não ficam muito aquém dos chimpanzés na vocação para embasbacar cientistas em laboratórios com sua capacidade de aprender coisas certamente inúteis para eles, mas supostamente indispensáveis à ciência, porque desafiam a crença de que os animais, fora os humanos, fazem tudo por instinto. Comprar comida com fichas, por exemplo, não cabe na bagagem hereditária de um bicho. Mas é coisa que o macaco-prego se já dispôs a fazer por um treinador.

Têm linguagem compatível com suas obrigações sociais. Seu guincho de "olha o gavião", por exemplo, é supostamente inconfundível. Quando moram muito perto das pessoas ou as pessoas moram muito perto das florestas, podem invadir casas para praticar pequenos furtos. E, mesmo em seu ambiental natural, recorrem a instrumentos como pedras para quebrar alimentos de casca dura ou gravetas para pescar cupins dentro do ninho.

O macaco-prego come talos de bromélias como se despetalasse uma alcachofra em restaurante. E a maneira como arranca uma a uma asas de borboletas e mariposas antes de engoli-las vivas, com gestos de quem descascassa uma banana freneticamente relutante em entrar para a cadeia alimentar da mata atlântica, seria um modelo de etiqueta, se não fosse um espetáculo desagradável de selvageria.

Toda essa peroração acima é para dizer que macaco-prego não é bicho que se vá procurar sem mais nem menos numa floresta como a do Iguaçu, onde ultimamente até as onças-pintadas estão dando sopa. E aquele, mutilado e encanecido, estava longe de ser um candidato sério a qualquer concurso de fotogenia nos trópicos.

Nele, interessante mesmo era o comportamento. Os macacos-pregos do Iguaçu guardam uma solene distância dos turistas. Ao contrário dos quatis, que o excesso de intimidade com seres humanos reduziu à mendicância, eles sabem qual é o seu lugar e o lugar dos turistas. Eles raramente descem das árvores. Catam sem parar frutas e outros ingredientes silvestres de sua dieta, enquanto os quatis se enfiam até em latas de lixo para lamber caquinhas de sorvete ou latas vazias de refrigerantes.

Como se fugissem deliberadamente dessa modalidade rebaixamento comportamental, os macacos-pregos não renunciam a seu padrão de vida. Transitam de prerefência pelos extratos mais altos da floresta. E, nas trilhas menos transitadas, recebem como instrusos os eventuais visitantes, quebrando galhos com as mãos para dar a entender que são fortes, sim, e estão dispostos a tudo para enxotar invasores.

Por essas e outras, aquele velho macaco-prego cotó que cruzava sozinho o asfalto acabou com uma teleobjetiva grudada em seu rastro. O dia ia mesmo acabando. Com ele, os assuntos habituais das máquinas fotográficas. O sol batia de viés sobre a floresta, em franca retirada. E vinha coado pela névoa subia das cataratas, com o rio Iguaçu quase transbordando, para cair em gotas do céu limpo, como uma chuva estritamente local.

Tudo, portanto, mandava botar a câmera na mochila e a viola no saco. Mas o macaco-prego corria direto para um gerivá carregado de frutas. E isso acabou se tornando irresistível. Por que só ele, no bando, viu a palmeira do outro lado da estrada é pergunta para se fazer a primatólogos. O que interessa, aqui, é registrar o desempenho admirável do Cebus apella, atacando a penca dourada do gerivá ao mesmo tempo com a voracidade de criança em loja de doces, a ponderação de um chefe de cozinha escolhendo na feira os produtos do jantar e o estoicismo de um curtido guerreiro, que não se impressiona com zumbidos de abelhas e marimbondos.

Em outras palavras, este artigo inteiro é só uma conversa fiada, para ter o pretexto de publicar estas fotografias. E, se alguém tiver alguma coisa a dizer contra isso, o autor pede respeito aos cabelos brancos do macaco-prego, meio decrépito, mas esbanjando uma sabedoria que só ele sabe qual é.

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