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O legado de Franz Boas

GM, Fim de Semana, p.3
Autor: GONCALVES, Adelto
12 de Nov de 2004

O legado de Franz Boas
É difícil acreditar que Franz Boas (1858-1942), um dos fundadores da moderna antropologia, tenha a sua obra conhecida do leitor brasileiro só depois que se passaram 62 anos de sua morte. Mais inacreditável ainda é que, rompendo esse silêncio, saiam à luz no mesmo ano, por editoras diferentes, dois livros que tratam da obra do antropólogo que exerceu influência marcante sobre a obra de Gilberto Freyre: no Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor lançou em fevereiro "Antropologia Cultural", coletânea de cinco ensaios do pensador; e, em São Paulo, a Editora Hucitec acaba de mandar para as livrarias "Nascimento da Antropologia Cultural: a obra de Franz Boas", de Margarida Maria Moura, professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP).
Originalmente apresentado como tese de livre-docência na USP em 2000, este trabalho discute a vida e a obra de Boas, antropólogo que revolucionou os meios intelectuais na primeira metade do século XX, afirmando o conceito de cultura como fator explicativo das diversidades sociais, em contraposição às teorias hegemônicas que até então explicavam a evolução da espécie humana a partir de determinações raciais, geográficas e econômicas. A igualdade básica dos grupos humanos foi tese que sempre defendeu por toda a sua vida.
Nascido em Minden, na Vestefália, Alemanha, numa família judaica de alta posição social, Boas teve, desde cedo, uma sólida formação cultural. Adolescente, entusiasmou-se por Goethe, leu o teatro grego, a poesia e a filosofia, tanto as clássicas quanto as contemporâneas, como diz a professora Margarida Maria Moura, ao traçar um bem-acabado perfil do antropólogo. Com o apoio financeiro do pai comerciante, depois de passagens pelas universidades de Heidelberg, Bonn e Kiel nas quais estudou Filosofia, Geografia e Física, Boas participou de uma expedição às regiões polares do Canadá, onde encontrou a matéria de seu maior interesse - a vida dos esquimós, hoje conhecidos como Inuit.
No verão de 1886, começou uma detalhada pesquisa etnográfica entre os Kwakiutl da Colúmbia Britânica, que redundaria na redação de "Kwakiutl Ethnography", que também abrangeria outros povos da região. Depois, em 1896, passou a atuar tanto na pesquisa como no ensino da Antropologia na Universidade de Colúmbia, em Nova York, onde, em 1901, formou o primeiro doutor sob sua orientação, Alfred Kroeber, que abriu uma série notável de nomes tanto masculinos quanto femininos da antropologia norte-americana.
Além de exercer poderosa influência sobre a antropologia mexicana moderna, ao dirigir de 1911 a 1912 a Escuela Internacional de Arqueología e Etnología Americanas e manter intenso trabalho de cooperação, interrompido pela eclosão da Primeira Guerra Mundial, Boas ainda estendeu seus conhecimentos à Alemanha, França e Canadá.
No Brasil, sua influência dá-se a partir dos primeiros anos do século XX, como prova o fato de o pensador político Alberto Torres, falecido em 1917, ter mantido diálogo com sua obra. Embora conservador e autoritário, como diz Margarida Maria Moura, Torres acreditava na antropologia anti-racista do mestre, que contrastava com a tradição de inferioridade racial dos negros e índios e do brasileiro em geral.
Na conservadora sociedade norte-americana das primeiras décadas do século XX, Boas desempenhou um papel público importante na luta contra o racismo e a favor da liberdade intelectual, cujo episódio mais agudo, a respeito do blue lumbar spot, Margarida Maria Moura recupera com detalhes. O blue lumbar spot nada mais é que o conhecido jenipapo na bunda, sinal de mestiçagem chamado em português também de mancha mongólica, que ocorre na mistura entre branco e negro, branco e índio e outros grupos homogêneos como os amarelos.
Esse sinal de mestiçagem serviu nos Estados Unidos, na década de 30, como argumento para barrar a entrada no país de crianças armênias sob a alegação de que seu caráter genético mongólico e, portanto, "inferior", iria comprometer a eugenia do branco norte-americano, o wasp (white, anglo-saxon and protestant). Se lembrarmos que o sociólogo Samuel P. Huntington, professor em Harvard, alega em "Who are we" (Nova York, Simon & Schuster, 2004) que, em breve, os hispanos-americanos podem dominar a América e ameaçam a civilização wasp, não é difícil concluir porque essas idéias racistas continuam latentes na sociedade norte-americana.
Como diz a autora, as contribuições do pensamento boasiano não foram inovadoras apenas na antropologia cultural, mas também na antropologia física, "que nele, como bem se vê, é já o prenúncio de uma antropologia biológica, de cunho mais genético do que antropométrico - sem negar a importância científica intrínseca da antropometria, feita por si mesma e desprovida de juízos de valor". Nesse sentido, observa, o antropólogo antecipava as grandes inovações da genética, na segunda metade do século XX. Para ela, por esse motivo, Boas fundou, de fato, um campo intelectual novo tanto para a antropologia cultural quanto para a antropologia física como para a lingüística, estabelecendo, portanto, uma tríplice paternidade.
Filha da antropóloga física Maria Júlia Pourchet, que manteve larga correspondência com Boas, além de ter sido amiga de Anna Urbach, irmã mais nova do antropólogo, que morou no Rio de Janeiro, a autora reconhece que foi sua mãe a verdadeira iniciadora do trabalho de que resultou sua pesquisa.
Além de honrar essa dívida afetiva com a mãe, a autora, com sua pesquisa, não só tira da penumbra a vida e a obra de Boas - até aqui só conhecidas de segunda mão e restritas à academia - como amplia o debate aberto com a publicação de "Antropologia Cultural", organizado e traduzido por Celso Castro, mestre e doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Na apresentação deste livro, que reúne textos publicados em "Race, Language and Culture", de 1940, Castro lembra que a influência das idéias de Boas no Brasil se fez sentir principalmente na obra de Gilberto Freyre, que conheceu o mestre quando estudou em Colúmbia no começo da década de 20. Em seu clássico "Casa Grande e Senzala", de 1933, Freyre reconheceu ter o antropólogo alemão o ajudado a se libertar da visão negativa sobre a mestiçagem, então considerada um problema da formação social brasileira.
Que a obra de um homem de tamanha importância para o pensamento brasileiro tenha ficado tanto tempo sem ter quem a colocasse ao alcance do público, é algo lastimável. Ainda bem que os professores Margarida Maria Moura e Celso Castro repararam essa omissão.
Adelto Gonçalves - Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de "Gonzaga, um Poeta do Iluminismo" (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), "Barcelona Brasileira" (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e "Bocage - o Perfil Perdido" (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br)

GM, 12-14/11/2004, p. 3 (Fim de Semana)

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