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O índio vivo dentro de mim

Dom Total - http://www.domtotal.com.br
Autor: Ricardo Soares
23 de Jan de 2014

Prezadíssima bisavó índia que a terra há muito tempo comeu:

Talvez seja o peso dos anos, talvez seja essa alma cabocla e carente, talvez sejam os tempos idos e vividos, mas o fato é que ando cada vez mais desentranhado dessa vida da cidade, querendo bater asa para bem longe, perto dos preás e das corruíras, dos micos e dos bugios, a batucar tambores com o que não restou da minha gente.

Do meu inconsciente para o meu consciente, às vezes afloram imagens de trilhas que não percorri e que passam pela serra do Roncador adentro, perto de onde sumiu o coronel Fawcett. Ou me surgem flashes de cantos ermos das planícies de Roraima ou do cerrado infindo onde os meus podem ter passado em busca de caça, pesca ou de fugir dos capitães do mato.

Sei pouco ou quase nada do meu passado indígena a não ser uma única foto sua , já entrada em anos, com um vestido longo, tirada no final da década de 20 do século 20. Você está no canto direito da foto, vestido longo e escuro com apliques de renda branca, apoiando a mão esquerda numa cadeira antiga. Ao seu lado o meu avô, seu genro, com um terno elegante porém amarfalhado com um vasto bigode com as pontas viradas para cima . Na foto ele fica no centro pois ao lado dele está minha avó , linda e grávida do meu pai, creio eu.

Minha avó, sua filha, chamava-se Perciliana Maria Severina e, nessa foto, o seu vestido longo fazia uma certa combinação com uma blusa também longa que vagamente lembrava a roupa de um marinheiro. Sequer imagino onde a foto tenha sido tirada ou quem a tirou. Só sei que é o único registro que tenho seu, do meu avô e da minha avó. Pode ter sido tirada em Paraguaçu Paulista, Assis ou mesmo Rancharia. Jamais saberei.

O que sei, prezada bisavó, é que parece que esse apelo ancestral que está estampado nos seus olhos puxados e tristes , na sua boca murcha e na sua mão direita apoiada num ventre um pouco inchado, esse apelo ancestral me leva de volta a regatos, riachos,ocas, pajelanças e me faz querer cada vez mais voltar às minhas origens e não mergulhar na urbe ou nessa equivocada vocação citadina a que praticamente nos obriga a cultura ocidental globalizada.

Estou cada vez mais querendo ser aquele índio que olha para a lua e que pega o próprio peixe no rio despoluído, mesmo que isso seja ilusão passageira que a brisa primeira levará. Fico assim despossuído de origens pois ancestrais outros, de parte de mãe, portugueses e alemães, não me dizem respeito. Conheci essas outras pátrias, andei muito pelos Portugais da vida, adentrei nas Alemanhas , quando eram duas, e não me achei tanto quanto me acho e me perco nesse Brasil profundo que os brancos começaram a destruir e a mestiçada prossegue com louvor.

Sabe, bisavó, há de haver em mim algo de errado, pois cada vez mais me rebelo e me agito e não sossego meu coração cinqüentão que deveria ter apaziguado o fogo da rebeldia e do descontentamento. Estou virando um índio velho, reclamão. Um índio que não pita seu fumo de corda, mas beberica suas cachacinhas e tem horror à catequização dos jesuítas que nos desvestiram de nossa nudez e nos colocaram no caminho do bem deles, que foi o nosso mal.

Sabe, bisavó, a integração das populações indígenas no Brasil moderno foi uma falácia. Os índios sempre foram escravizados e subjugados e muitos de nós brasileiros nem nos reconhecemos índios. Eu mesmo procuro em mim os traços que talvez estejam mais nos olhos puxados da minha irmã mais nova. Quiçá em mim exista na cor da pele, em certo jeito de olhar o mundo. Mas não existe na paz e na sabedoria interna que muitos deles tinham.

Não sou um silvícola apaziguado, não sou um índio catequizado, não acredito no que os portugueses disseram e prometeram desde que, fedidos, desceram das caravelas. Eles trouxeram piolhos e nos cobriram o que chamavam de vergonhas e contaram a história do jeito deles. Mas o que quero não é festejar e lembrar meu passado lusitano. Mas reencontrar a trilha do meu indigenismo genético. O sangue que corre aqui nessas veias diabéticas e que correu no seu sangue .

Sabe bisavó, reza a lenda que seu nome era Lúcia e que teria sido roubada pelo meu bisavô (sequer o nome dele eu sei) em uma tribo em algum lugar do caminho entre o Pantanal e o extremo oeste paulista quando ele tangia o gado nessas idas e vindas e reparou em vossa formosura plantada à entrada de uma choça. Desse roubo, desse rapto, dessa fuga, apareci eu mestiço vira-lata a achar graça num passado nebuloso do qual sei detalhes esparsos.

Não sei mesmo se conforme a gente envelhece se aproxima da infância ou se esquece dela. No meu caso nem uma coisa nem outra. Sinto a necessidade de por instinto talvez voltar para o lugar de onde tenham lhe tirado. Tentar entender o que havia por trás dos seus olhos tristes e contemplativos, olhos que foram parar também nos olhos da minha avó, morta de tifo em 1934.

Meu pai pouco conheceu a mãe. Tampouco consta que ele tenha conhecido você, bisavó. Eu não conheci nenhum de vocês, sequer meu avô que morreu bem antes de eu nascer. Não sei se você era tupi guarani, tapuia, bororo ou o que. Não sei se conheceu um sertanista ou se foi discriminada por ser índia. Só sei que olhando para essa sua face tão longinqua, para esse tempo tão remoto na foto aqui na minha frente, quase caio em contradição e peço que você peça a Deus que me proteja.

No entanto não sei qual era o seu Deus e nem sei se você sabe quem eu sou. Só sei que quanto mais envelheço mais enxergo em mim os seus traços. Sobretudo por esses seus olhos desalentados que parecem ter visto demais e se cansaram. Eu não desisto bisavó mas o mundo em que eu vivo cada vez tem menos a ver comigo e eu me imagino ao seu lado olhando a lua na porta da choça muito antes do meu bisavô te roubar. Quem sabe se juntos não haveríamos de ter conseguido alimentar em nossas mãos os guarás que rondavam a taba naquelas noites antigas?

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