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O homem que descobriu como acabar com a seca

O Globo, Razao Social, p.12-14
06 de Mar de 2004

CAPA PEDREIRO TEVE A IDÉIA DE CONSTRUIR CISTERNAS RURAIS NO SEMI-ÁRIDO ENQUANTO ACOMPANHAVA O TRABALHO DE COLEGAS QUE FAZIAM MASSA PARA MOLDAR UMA PISCINA EM SÃO PAULO

O HOMEM QUE DESCOBRIU COMO ACABAR COM A SECA O AUTOR E SEU INVENTO: Manoel Apolônio de Carvalho, o Nel, faz pose na frente de uma das cisternas rurais que ensinou a construir em Lagarto, Sergipe: homenagem de Frei BettoManoel Apolônio de Carvalho tinha 17 anos quando resolveu pegar um pau-de-arara e se aventurar no Sudeste, deixando para trás as mazelas do sertão. O ano era 1955 e Nel, apelido que traz da infância, teve sorte. Logo, estava empregado em construções em São Paulo. E teve uma idéia ao acompanhar o trabalho de colegas revirando massa para moldar e fazer piscinas. Na sua terra aquilo podia ter outra serventia. No período da cheia, era só deixar a água da chuva cair ali, tapar e guardar para a seca. Ia acabar com o sofrimento de muita gente.Eu tenho certeza de que fiz uma coisa de grande autoridade para a humanidade” MANOEL APOLÔNIO DE CARVALHO PedreiroGra um sonho. E Nel tomou a postura dos sonhadores. Ficava parado, dando tratos à bola, horas a fio. A pose de pensador começou a irritar o chefe da obra. Para a maioria dos patrões, operário parado é dinheiro jogado fora. Até que um dia Nel ganhou uma bronca feia, se enfezou, pediu as contas e foi embora. Chegou de volta a Tingui, município de Jeremoaba, na Bahia, de bolsos vazios mas com uma bela idéia na cabeça. Posto em prática, o projeto de Nel deu corpo à primeira cisterna rural, que hoje serve como referência para o Programa Bolsa Família do Governo Lula. A técnica é simples: a água da chuva que escorre pelo telhado é captada numa calha e levada a um tubo que cai direto na cisterna construída com placas de cimento. O tubo tem uma espécie de filtro para livrar a água de impurezas e torná-la própria para consumo. Cada cisterna leva cerca de cinco dias para ficar pronta, e custa quase R$ 1 mil. Mas Nel continua com os bolsos vazios. Atualmente ele, 66 anos, é pedreiro aposentado e ganha um salário-mínimo por mês. Com o dinheiro que conseguiu das cisternas, construiu uma casa para morar em Simão Dias, no Sergipe, e educou três filhas. Semana retrasada, o pedreiro se emocionou contando essas histórias do seu passado. E ficou ainda mais comovido ao saber, pela repórter, que seu nome é citado por Frei Betto, assessor especial do governo Lula, em suas palestras sobre o Programa Fome Zero:---- Moça, então alguém reconheceu o que eu fiz? Eu fico com os olhos cheios d'água, sabe? Porque eu tenho certeza de que fiz uma coisa de grande autoridade para a humanidade. E fiquei na pior. Mas dizem que quem inventa não pega nada, né mesmo?A surpresa e o tom ressentido e decepcionado fazem sentido. Afinal, ao longo dos anos, a idéia de Nel se espalhou tanto pelo Nordeste que ninguém mais sabia quem tinha construído a primeira cisterna rural:— Alguém veio me contar um dia que eu tinha sido homenageado, mas era uma homenagem póstuma. Pensavam que eu estava morto — conta.A confusão, pelo visto, continua até hoje. Frei Betto, quando cita Nel em suas palestras, usa o apelido certo, mas um nome totalmente errado: Pedro Damião.— Não sei quem é esse Pedro Damião não senhora — diz Nel.Foi preciso que um repórter de uma revista de Portugal o descobrisse para que a ONG Associação para o Semi-Árido (ASA) pudesse então, finalmente, homenageá-lo em vida, o que aconteceu em novembro do ano passado.Mas o que o pedreiro mais gosta é de lembrar como foi parar de volta em Jeremoaba (Bahia), de onde saíra para tentar a vida no Sudeste. Quando contou sua idéia de guardar água da chuva num tanque gigante, o mínimo que fizeram foi chamá-lo de louco.--- Eu desafiei: faço a primeira de graça, é só alguém comprar o material. Um amigo do meu pai comprou. Choveu, a cisterna que eu tinha construído segurou a água e o pessoal começou a ficar animado. Passei a cobrar dois merréis por dia para construir cisterna na casa de todo mundo.O invento de Nel passou a ser conhecido. E ele foi ensinando os outros a fazer as cisternas. Bancos começaram a financiar o projeto para pequenos agricultores. Em Pintadas, na Bahia, tinha uma associação que chamou Nel para dar palestra e ensinar aos agricultores. No Piauí também. Em pouco tempo, o Nordeste inteiro estava mobilizado para conseguir dar corpo à criação de Nel.E o pedreiro ia ganhando seus dois merréis” por dia. Conheceu Antonia, que também morava na roça. Pediu a mão da moça, um terno emprestado, e se casou. Mulher forte, Antonia passou a ajudá-lo a fazer a massa da cisterna, a cavar buraco. Isso quando não estava grávida. Nel e Antonia têm três filhas, todas adultas, com idades que ele não consegue precisar com exatidão:--- Elas têm aí 30, 34 anos.Mas, de uma coisa o pedreiro tem certeza e se orgulha muito: todas estudaram porque ele pôde financiá-las com o dinheiro que ganhava construindo seu invento. Já Nel nunca esteve num banco de escola.--- Hoje sei escrever meu nome. Mas quando fui para São Paulo foi difícil. Tive que decorar o número do ônibus que eu pegava para ir a Santo Amaro todos os dias: tinha um 7 e dois 0. Eu morava num quarto com um cara que sabia ler e disse a ele que pagaria para me ensinar. Ele não topou. Desisti.Mas o que Nel sabe hoje dá para fazer algumas contas. E chegar a resultados nada animadores:--- Cada mil litros de água se transforma num saco de cimento que custa R$ 18,00. A cisterna que constrói custa R$ 1 mil. Segundo ele, o governo, com o conhecimento adquirido a partir do que ensinou, passou a construir as mesmas cisternas, do mesmo tamanho, por R$ 4 mil, tirando dinheiro do fundo perdido”. Por essas e outras, e agora muito bem assessorado pela filha Eliângela, graduada em Comunicação, o pedreiro patenteou sua última invenção: a mesma cisterna, só que com uma técnica muito mais rápida, que leva apenas dois dias para ser levantada, em vez dos cinco que as outras exigiam. Para isso, Nel usa molde de ferro em vez de passar o molde de pau na areia para poder pegar a curva. E mais não conta.--- Em duas horas eu levanto uma cisterna --- resume.Quer guardar o pulo do gato” só para si. Como diz, é o resultado de tanta peleja sem reconhecimento.

ARTICULAÇÃO NO SEMI-ÁRIDO BRASILEIRO É UMA ASSOCIAÇÃO QUE ACREDITA EM PARCERIAS PARA AJUDAR A CONSTRUIR CISTERNAS RURAIS E ACABAR COM O MAIOR PROBLEMA DA REGIÃO, QUE É A SECA
Um olhar atento para uma região muito carenteCriada há cerca de cinco anos, a Articulação no Semi-Árido Brasileiro (ASA), um fórum de organizações da sociedade civil, é a dona do projeto Programa 1 Milhão de Cisternas Rurais (P1MC). Para desenvolvê-lo, a organização acredita em parceria e tem recebido o apoio de empresas, sindicatos, associações de moradores. E , desde abril do ano passado, ganhou o apoio também da Febraban (Federação Brasileira de Bancos), que ajudará a construir dez mil cisternas.A prioridade da ASA é a família rural que vive no semi-árido brasileiro, território de quase 900 mil quilômetros quadrados que atinge 11 estados e onde vivem 22 milhões de pessoas. Apesar de ser uma região com um clima muito adverso, a organização acredita que o semi-árido é perfeitamente viável, desde que conte com vontade individual, coletiva e política.Com a ajuda de especialistas no assunto, a ASA desenvolveu um programa de convivência com o semi-árido, que se constitui de seis pontos principais: conviver com as secas; orientar os investimentos; fortalecer a sociedade; incluir mulheres e jovens; cuidar dos recursos naturais e buscar meios de financiamentos adequados. Tudo isso, com o objetivo de tornar menos dramática a sobrevivência de famílias na região, principalmente durante os períodos de seca. Muitas vezes estas pessoas precisam consumir água contaminada com urina ou esterco. Há ocasiões em que são obrigados a esperar dias, às vezes até semanas, pelo abastecimento do caminhão-pipa. Todos os anos há um encontro nacional dos membros associados à ASA. Ano passado foi em novembro, na cidade de Campina Grande, na Paraíba, quando quase 600 associados homenagearam o pedreiro Manoel Apolônio de Carvalho, primeiro a construir uma cisterna rural. Para ele, um momento de raro reconhecimento:— Fiquei emocionado, eu não esperava por isso. Eles estão querendo fazer um filme para ver se apresentam a técnica de construir cisternas. Estou até com um material que eles filmaram de mim. Depois que eu recebi a homenagem lá na ASA é que as pessoas passaram a me reconhecer — disse ele.

METAS ATINGIDAS
FAMÍLIAS
MOBILIZADAS: 34.075
FAMÍLIAS
CAPACITADAS: 23.849
PEDREIROS
CAPACITADOS: 1.789
CISTERNAS
CONSTRUÍDAS: 28.537
CISTERNAS EM CONSTRUÇÃO: 919
MUNICÍPIOS
ATENDIDOS: 533

O Globo, 06/03/2004, p. 12-14

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