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O Governo e os Povos Indígenas

Anaí-Salvador-BA
Autor: Ronaldo Oliveira
21 de Out de 2003

Há alguns dias, a pretexto de um correio eletrônico de Escrawen Sopre, intitulado O Medo venceu a Esperança, relembrei um pouco do quão tem sido letra morta a legislação brasileira, especialmente a Constituição Federal, acerca dos direitos dos Povos Indígenas - e, progressivamente, e em certa medida, acerca da questão ambiental - . Aí estão, na ordem do dia, a diminuição da T.I. Baú; os comentários que já surgem sobre Cachoeira Seca; o plantio de trangênicos; polo industrial no pantanal; etc.

Comentei inclusive, que o esquecimento e/ou descumprimento sistemático de matérias constitucionais relativas aos direitos indígenas - especialmente no que se refere aos sucessivos prazos descumpridos para a demarcação dos territórios indígenas (Art. 65 da Lei No 6001, de dezembro de 1973 e Art. 67 do ADCT da Constituição de 1988) ou a garantia do usufruto exclusivo de tais territórios, Art. 231 e parágrafos da CF), são propositais e têm ares de genocídio, vez que, concretamente, cria obstáculos muitas vezes intransponíveis à sobrevivência física e cultural de povos indígenas - basta olhar o processo de depopulação por que passou o povo Cinta Larga em decorrência do não cumprimento de tais preceitos -.

Lembrei também acerca da má vontade dos poderes executivo e legislativo em dar curso a processos de votação e aprovação de matérias de interesses dos índios, especialmente o Estatuto das Sociedades Indígenas. Parece evidente o interesse de tais poderes em manter legislações indefinidas, não regulamentadas ou conflitantes, porquanto favorecem a todos os setores da sociedade, menos aos índios - basta observar o quanto a retórica tem sido taxativa - os índios não podem explorar recursos madeireiros porque tal atividade é ilegal; não podem fazer ecoturismo; não podem extrair ouro, prata, diamante, etc. Para qualquer iniciativa pensada há impedimentos. Paradoxalmente, com raríssimas exceções, em qualquer território indígena onde haja madeiras nobres, ouro, diamante, etc., e são muitos, tais recursos têm sido sistematicamente espoliados/dilapidados por terceiros, basta olhar os casos Cinta Larga, Yanomami, Kaxarari, Kayapó ...... E tudo sob o olhar complacente dos órgãos que têm o papel e a responsabilidade constitucional de proteger a vida, os direitos e interesses dos índios.

Muito bem, ao final daqueles comentários, ponderei ser indispensável, apesar de delicado, dada a amplitude das controvérsias, analisar e discutir o atual quadro das questões indígenas e indigenista enquanto estratégia para fomentar e revitalizar a disposição dos índios e de seus aliados, de modo a impulsionar o processo de (re) conquista e sedimentação dos direitos e interesses dos povos indígenas - tão duramente conquistados, principalmente na década de 1980.

Isto parece se tornar cada vez mais necessário, na medida em que não há indicações visíveis de que o núcleo de poder do atual governo tenha a intenção de viabilizar a implementação das teses, proposições e compromissos contidos no documento "Compromissos com os Povos indígenas". Muito pelo contrário, o fato é que este, como tantos outros governos, parece haver decidido adotar a política de "panos quentes" e de "empurrar com a barriga" os graves problemas vividos pela população indígena do país.

De fato, o atual governo não fez qualquer demonstração de que tenha compromissos ou boas intenções para com os povos indígenas. Em contrapartida, há um rosário de posturas, práticas e ações que mostram exatamente o contrário. A começar pelo tratamento que tem dado ao órgão indigenista oficial. Na prática, e por analogia, o compromisso do governo para com os povos indígenas é diretamente proporcional a atenção que este mesmo governo dá ao seu órgão indigenista oficial, na medida em que cabe a tal órgão executar ou fazer executar a política indigenista do governo.

Se é fato, e não há nenhuma novidade que o órgão indigenista oficial, a FUNAI, tem sido ao longo das últimas três décadas, sistematicamente sucateado, e hoje é um amontoado de servidores públicos mal remunerados, com capacidade operacional ínfima, com uma enorme baixo estima, e, salvo algumas exceções, afeitos a práticas clientelistas na relação com os índios e em permanentes disputas por cargos comissionados e pelo direito de viajar, enquanto instrumentos de recomposição do poder aquisitivo, também é verdade que o governo é conhecedor de tal panorama, dado que foi exaustivamente assessorado na fase de transição.

Apesar da sinalização positiva ao início do governo, com a nomeação de um indigenista altamente qualificado para a Presidência da FUNAI, através de um processo democrático, que incluiu consultas a diversos setores e organizações indígenas e indigenistas, nada mais foi realizado no sentido de dar o suporte necessário à construção da nova política indigenista, exaustivamente prometida aos índios à época da campanha e contida no documento "Compromissos com os Povos Indígenas". De fato, nenhum movimento foi realizado no sentido de viabilizar a necessária reestruturação da FUNAI, assim como para a deflagração do processo destinado à realização da Conferência Nacional de Política Indigenista, indispensáveis ao estabelecimento de uma nova relação do Estado Brasileiro com os Povos Indígenas.

Ao contrário, decidiu adotar a estratégias de governos anteriores, e que tanto o PT criticou. Ao primeiro sinal de crise, decorrente da própria indecisão e inércia do governo, substitui o Presidente da FUNAI. Em verdade, as constantes substituições de Presidentes na FUNAI tem sido uma estratégia fartamente utilizada com o único objetivo de ganhar tempo frente as demandas apresentadas pelos índios, visto que, a cada mudança, o sucessor "precisa" de um razoável espaço de tempo para conhecer a instituição e compor sua equipe - fato que invariavelmente tem demandado um período nunca inferior a seis meses - tempo necessário para se instalar o novo processo de "fritura" do Presidente de plantão. Esta tem sido a prática nas últimas décadas.

De outro lado, se bem me lembro, o final da década de 70 e a década de 80 foram extremamente férteis e significativas no processo de conquista de direitos dos povos indígenas. A criação da UNI, da SBI, da CPI-SP, CPI-RJ, CPI-AC, CCPY, CTI, CIMI e os inesquecíveis embates destas organizações, de lideranças indígenas (Marçal de Souza, Mário Juruna, Ailton Krenak, Álvaro Tucano, Manuel Apurinã, Marcos Terena...), de setores organizados da sociedade como ABA, SBPC, OAB, e de personalidades (Roberto Cardoso de Oliveira, Eunice Durham, Darcy Ribeiro, Deputado João Cunha, Deputado Modesto da Silveira, Maurício
Correia....) que se colocaram de forma enérgica contra a política genocida do governo e que estabeleceram as bases para a organização e sedimentação de um movimento indígena e indigenista que deu inestimável contribuição na conquista dos direitos reconhecidos pela Constituição de 1988.

Guardadas as devidas proporções, creio que estamos vivendo um período da história que guarda considerável semelhança ao vivido na época acima mencionada, e, por isso mesmo, está a exigir a formação de uma ampla frente, que possa oferecer o suporte necessário a que os Povos Indígenas do Brasil consigam, não só garantir a manutenção dos direitos duramente conquistados e consagrados na Constituição de 1988, hoje visivelmente ameaçados, como também para realizar o esforço necessário para chamar a atenção do núcleo do governo quanto à insensatez da política ora em curso.

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