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O gosto da origem

OESP, Paladar, p. D1-D3
27 de Nov de 2014

O gosto da origem

Por Jose Orenstein

O processo é lento, mas irreversível: o mapa das indicações geográficas (IGs) brasileiras já tem nítidos contornos. Isso quer dizer que produtos peculiares de várias regiões do País compõem um amplo panorama, digamos, enogastronômico, que, aos poucos, se dá a conhecer. E, assim, vamos descobrindo nossos terroirs - ou, em bom português, nosso território.
Nesse mapa estão o vinho do Vale dos Vinhedos, no Sul, o café do Cerrado Mineiro, a cachaça de Paraty, a carne dos Pampas gaúchos - entre outros produtos ainda pouco conhecidos. Hoje, no País, já há 41 IGs reconhecidas pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial, o Inpi - das quais 60% são relacionadas a produtos alimentares ou bebidas.
O certificação da IG protege produtos e serviços que têm suas qualidades atreladas à origem. Ele se subdivide em duas categorias, Denominação de Origem e Indicação de Procedência (leia mais ao lado), nos moldes das proteções de origem comuns na Europa.
O mais novo pedido de reconhecimento de IG brasileira foi feito nesta segunda-feira: produtores de cacau do sul da Bahia pediram certificação do fruto e seus derivados - o mais notório, o chocolate.
O assunto vem chamando cada vez mais atenção, com eventos frequentes em torno do tema e uma crescente institucionalização, como ficou evidente no 3o Simpósio Internacional de Indicações Geográficas, que reuniu mais de 200 pessoas na semana passada em Ilhéus, na Bahia.
Antes disso, no fim de outubro, dezenas de produtores rurais se encontraram em Belo Horizonte para o lançamento de um catálogo ilustrado com todas as IGs brasileiras, produzido pelo Sebrae. Já no início do próximo ano, o IBGE vai publicar o mapa com a delimitação das IGs, a ser incluído no Atlas Geográfico Escolar, usado como material didático no País.
O reconhecimento das IGs pelo Inpi cresceu em progressão geométrica nos últimos anos. A lei que criou as IGs é de 1996, mas só após seis anos foi reconhecida a primeira IG brasileira - o Vale dos Vinhedos, em 2002. Pelos seis anos seguintes, até 2008, só quatro IGs haviam sido reconhecidas oficialmente. Em 2011, no entanto, o número saltou para 14. Hoje, já são 41.
Mas, qual o impacto desse emaranhado de números e siglas? Na prática, eles significam que toda a cadeia dos produtos agroalimentares protegidos tende a melhorar. A explicação é simples: no processo para obtenção da certificação, produtores são obrigados a se associar (a IG é concedida apenas a pessoas jurídicas) e acabam afinando processos e melhorando a qualidade do produto final. As IGs envolvem majoritariamente pequenos produtores e a agricultura familiar, que se beneficiam de um maior valor nos produtos protegidos pelo selo.
"Quando criamos a associação de produtores do Vale dos Vinhedos, em 1995, a região era desconhecida no Brasil. Hoje, todo mundo que bebe vinho associa o Vale dos Vinhedos a qualidade", diz Jorge Tonietto, pesquisador da Embrapa Uva e Vinho. Ele conta que, durante o processo para o pedido da IG, uma série de testes físico-químicos aferiram a tipicidade e a qualidade do vinho. O projeto deu tão certo que mais três regiões na Serra Gaúcha seguiram o mesmo caminho e obtiveram IG (Pinto Bandeira, Altos Montes e Monte Belo; em agosto, Farroupilha fez seu pedido).
"A IG dá credibilidade no mercado. E garante ao consumidor a rastreabilidade do produto", diz Maria Helena Jesk, presidente da Associação dos Produtores de Doces de Pelotas, que recebeu a IG em 2012. Após resgatar receitas tradicionais - com a ajuda de pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) - de doces de influência portuguesa, que datavam da fundação da cidade gaúcha, em meados do século 18, as quatro produtoras da região adaptaram suas fórmulas de camafeu, beijinho de coco, olho de sogra. Aboliram o leite condensado e o chocolate, ganharam reconhecimento para além das fronteiras pelotenses e aumentaram o faturamento. Triplicaram a venda dos docinhos, segundo Maria Helena, que tem os seus nas prateleiras do Empório Santa Luzia, em São Paulo.
Os produtores de cacau do sul da Bahia buscam o mesmo reconhecimento. "O cacau costuma ser vendido nas bolsas de valores com o nome do país de onde vem. Só o nosso, que é reconhecido pela qualidade, leva o nome da região", diz Rodrigo Barretto, presidente da Associação Cacau Sul Bahia. Após seis anos de articulações, a associação conseguiu reunir 2.500 produtores de mais de 83 municípios. A meta agora é resgatar o valor do cacau local, aprimorando o cultivo e treinando a mão de obra para melhorar a qualidade. E mudar o preço: em vez de ser vendido na bolsa, como commodity, por R$ 100 a arroba, o preço passa a R$ 300, pagos por fabricantes de chocolates especiais. "A grande indústria não reconhece o valor de um cacau melhor. Então vamos abrir outros mercados", diz Rodrigo.
De norte a sul do País, os pontos de uma teia complexa, que se forma à margem dos circuitos comerciais e produtivos de larga escala, vão se ligando. "Tem gente dizendo que estamos banalizando as IGs. Ora, é justo o contrário! Está faltando IG no Brasil", diz Lucia Regina Fernandes, coordenadora-geral de IGs e registros do Inpi. O instituto, diz ela, recebe em média 20 mil pedidos de patentes e 150 mil pedidos de registro de marca por ano - e apenas 9 pedidos de IG. "Agora, vai ver a França, Portugal, Espanha: com territórios muito menores que o nosso, têm muito mais IGs reconhecidas. O potencial do Brasil é imenso."

'IG não se cria, se reconhece'

Por Jose Orenstein

A maior parte dos produtos certificados com Indicação Geográfica não pode ser comprada no mercado no Brasil. O arroz do litoral norte gaúcho, por exemplo, primeiro produto a receber uma Denominação de Origem, ainda em 2010, não está à venda.
Produtores atribuem o problema à dificuldade de investir na promoção da marca e ao pouco conhecimento que o consumidor tem das IGs. "Somos recém-nascidos nessa área. Na Europa, estão pelo menos 200 anos na nossa frente", diz Clovis Terra, presidente da Aproarroz, que zela pela Denominação de Origem do arroz gaúcho, e vice-presidente da Origin, organização que dá suporte a IGs em todo o mundo.
Existem, porém, casos bem-sucedidos, que mostram o potencial do selo - como o dos vinhos do Vale dos Vinhedos (RS), o do café do Cerrado Mineiro ou o do queijo da Serra da Canastra. Os vinhos, certificados desde 2002 e encontrados em mercados por todo o País, são um marco do salto de qualidade proporcionado pela associação em torno da promoção de sua região.
Os cafés mineiros com IG desde 2005 vêm com um selo com QR Code, por meio do qual o consumidor, com o celular, pode saber exatamente onde e por quem aquele grão foi produzido. "A Suplicy Cafés Especiais já tem uma linha com nosso selo e a Três Corações e o Café do Centro vão lançar uma também", diz Juliano Tarabal, da Federação dos Cafeicultores do Cerrado Mineiro.
Já o queijo canastra não só se fez conhecido pela qualidade como levantou a discussão que opõe métodos tradicionais e leis sanitárias. "Não adianta tentar fazer padronização industrial do nosso queijo. A nossa diferença é justamente o saber fazer antigo, que se traduz em qualidade. A IG reconhece isso", diz Paulo Henrique Almeida, da Associação dos Produtores de Queijo da Serra da Canastra. Ele conta que, depois do selo, produtores passaram a receber três vezes mais pelo queijo - e gerações mais novas agora consideram ficar no campo, tocando o negócio da família.
Assim, em que pesem os obstáculos para que as IGs vinguem, há bons exemplos a seguir - e é notável a disposição e empenho de grandes instituições em torno do tema.
O Ministério da Agricultura (Mapa) trabalha desde 2005 no fomento às cadeias produtivas agropecuárias para obtenção de IGs. Com ao menos um técnico em cada Estado e uma coordenação em Brasília, identificou já 230 regiões com potencial para reconhecimento de IG - e trabalha diretamente com 75 delas. "Não se cria uma IG, se reconhece. Temos tido cuidado na relação com produtores para preservar especificidades locais. O Estado não pode impor dinâmica que desrespeite a tradição", diz Beatriz Junqueira, coordenadora de Incentivo à Indicação Geográfica de Produtos Agropecuários do ministério. Tal visão marca entendimento mais compreensivo por parte do Mapa, que leva em conta o conflito entre leis sanitárias pensadas para a grande indústria e a realidade de pequenos produtores.
Outro peso-pesado envolvido na questão é o Sebrae, que promete investir R$ 43,3 milhões até 2018 na área. Atualmente, apoia 16 regiões em diferentes Estados no processo para obtenção da certificação. "Os produtos com IG entram nos mercados de forma diferente. Contam histórias, revelam o saber fazer de gerações, resgatam experiências, emoções. O consumidor está disposto a pagar mais por um produto que lhe proporcione tudo isso. O importante não é quantidade e sim qualidade", diz Enio Duarte Pinto, gerente da Unidade de Acesso à Inovação e Tecnologia do Sebrae.

O que é Indicação Geográfica?

A Indicação Geográfica (IG) é uma forma de proteção de produtos e serviços que têm uma origem determinada.
Pense no presunto de Parma, no champanhe francês, no vinho do Porto: certos produtos ganharam fama pelo mundo por sua qualidade. E foram imitados. Para garantir, então, que eram mesmo verdadeiros, criaram-se formas oficiais de reconhecimento da origem, relacionada a um território, desses produtos.

No Brasil, a IG foi instituída em 1996 (no âmbito de negociações de acordos comerciais de propriedade intelectual, os Trips). É por isso que a IG é concedida pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), responsável também pela salvaguarda de marcas e patentes.

A certificação tem duas modalidades: a Denominação de Origem (DO) e a Indicação de Procedência (IP). À diferença de outros países, o Brasil também concede IGs a produtos não agroalimentares.

A IP reconhece a reputação de um nome geográfico na produção de serviço ou bem. Ela apresenta menos exigências - e por isso é mais comum no País (ver mapa) - do que a DO. Esta refere-se a serviço ou bem cujas qualidades se devam exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, incluídos fatores naturais e humanos.

A IG não tem prazo de validade. São as próprias associações de produtores que o detêm as responsáveis por fiscalizar se registro está sendo devidamente usado.

O movimento terroirista do Brasil

Paulo André Niederle*
Especial para o Estado

Um novo tipo de relação com a comida tem conquistado adeptos no Brasil. Ela é resultado de um fenômeno de revalorização dos atributos relacionados à origem dos alimentos. Cada vez mais queremos saber não apenas o que consumimos, mas quem produziu, em que condições e com que impacto ecológico, econômico e social.
Impulsionado por uma multidão dispersa de novos consumidores, alguns preocupados em "salvar o planeta", outros ansiosos por salvar a si mesmos, esse movimento expressa o modo como determinados valores sociais têm conquistado espaço nos cardápios, nos supermercados e lojas especializadas e nas sacolas de feira. É puxado por uma geração de amadores que defende uma cozinha natural, ecológica, orgânica, tradicional, artesanal, local, sustentável... Em comum, essas qualidades traduzem valores que expressam crítica aos padrões industriais da sociedade de consumo.
Mas não se trata apenas de crítica. Esses movimentos também servem de propulsores para práticas alimentares inovadoras. Em especial, um novo conceito de gastronomia, que está à procura de alimentos locais e regionais produzidos de maneira artesanal por pequenos agricultores familiares e suas comunidades rurais conservando-se os recursos ambientais e os conhecimentos herdados das gerações anteriores. Uma gastronomia que está redescobrindo os sabores e saberes do Brasil.
Esses movimentos terroiristas se esforçam em reconectar os alimentos a suas origens socioculturais. Para os franceses, o terroir é a expressão de um espaço geográfico onde uma comunidade construiu um saber específico para se relacionar com os recursos naturais, criando alimentos e modos de produção singulares. O território confere uma tipicidade. Nada mais "subversivo" para as tentativas de padronização que a indústria alimentar impôs ao longo das últimas décadas, cujas consequências envolvem uma profunda desconexão entre produção e consumo, além de enormes custos econômicos, energéticos, ambientais e culturais.
Uma das expressões desse tipo de estratégia são as Indicações Geográficas (IGs). Trata-se de sinais distintivos que institucionalizam o vínculo entre um bem (produto ou serviço) e seu território de origem, projetando efeitos diversos sobre a organização das cadeias produtivas, a reconversão dos processos tecnológicos, a agregação de valor aos produtos e a valorização do patrimônio natural e imaterial.
No Brasil, as IGs vêm despertando interesse em distintos segmentos. Vinho, queijo, café, algodão, arroz, carne, frutas, são apenas alguns dos produtos que já se encontram sob esse tipo de insígnia em diferentes territórios: Vale dos Vinhedos, Vales da Uva Goethe, Cerrado mineiro, Pampa gaúcho, Vale do São Francisco, entre outros. Hoje, nenhum produtor ou região que vise a construir alternativas de diferenciação nos chamados "mercados de qualidade" pode desconsiderar o potencial desse instrumento.
Em muitos casos, mais importante que o próprio selo é o modo como a criação de uma IG estimula processos de inovação organizacional, viabilizando novas redes de cooperação.
Ao mesmo tempo, o reconhecimento das IGs abre caminho para repensar alguns erros. É o caso da produção e comercialização de queijos artesanais. Por muito tempo condenado à informalidade em face de uma legislação draconiana, e em benefício das grandes empresas do setor, esse bem cultural característico da gastronomia rural brasileira têm conquistado a atenção pública para a necessidade de repensar os mecanismos de regulação dos mercados alimentares.
Entretanto, quanto mais relevantes as IGs se tornam na reconfiguração dos mercados e territórios, maiores os desafios para resguardar seu uso em face de práticas oportunistas. A construção de um arranjo institucional adequado é importante para proteger as IGs de um processo de apropriação indevida, por meio do qual alguns agentes econômicos podem utilizá-las para diferenciar seus produtos e ampliar sua fatia do mercado, mas dedicando atenção apenas secundária à valorização dos elementos socioculturais do território que definem o vínculo entre o alimento e sua origem.
Finalmente, outro desafio expressivo para a consolidação das IGs está associado ao reconhecimento por um segmento mais amplo de consumidores. Há um enorme caminho pela frente no que diz respeito ao desenvolvimento de estratégias que façam das IGs e de um conjunto de signos de diferenciação (marcas coletivas, certificações, registros) um componente cotidiano das escolhas de consumo.
*É professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e organizador do livro Indicações Geográficas: Qualidade e Origem nos Mercados Alimentares (Editora da UFRGS, 2013)

OESP, 27/11/2014, Paladar, p. D1-D3

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