O Globo, Política, p. 10
24 de Set de 2024
O garimpo no poder: sem energia ou água encanada, vida nas vilas de trabalhadores contrasta com a riqueza do ouro
Terceiro capítulo de série especial sobre a extração na Amazônia mostra condições precárias de quem atua na região
Eduardo Gonçalves e Cristiano Mariz
24/09/2024
A 400 quilômetros da cidade mais próxima, os cerca de cem moradores da comunidade de Vila Nova, formada ao redor de áreas de garimpo no sudoeste do Pará, convivem com esgoto a céu aberto, sem energia elétrica e nem água encanada. A realidade da superfície contrasta com a riqueza encontrada no subsolo de uma das regiões de onde sai a maior quantidade de ouro no país. "O ouro foi bem explorado, mas não fica aqui. Vai para o barãozão lá fora", lamenta Antônia Ferreira Mourão, de 65 anos, que vive há quase duas décadas no local.
O contraste da riqueza proporcionada pelo ouro com a pobreza das vilas garimpeiras pode ser visto por todos os lados - e virou tema de campanha nestas eleições municipais. Na sua área urbana, Itaituba reúne mais de 50 lojas de compra e venda de ouro, joalherias e de artigos importados. Caminhonetes 4x4 e as escavadeiras são veículos quase onipresentes nas ruas - muitos deles com adesivo "100% garimpeiro". Já nas dezenas de comunidades formadas nas margens da rodovia Transgarimpeira, uma artéria da BR-163 que corta áreas de preservação ambiental até acabar na beira do Rio Tapajós, a população forma filas para encher galões com água potável e carece de serviços básicos como atendimento de saúde e educação.
O candidato a prefeito Wescley Tomaz (Avante), que cresceu numa dessas comunidades, afirma que situação na região só irá melhorar quando os atuais garimpos forem legalizados e a população tiver alternativas econômicas. Em sua campanha, ele defende aproveitar áreas degradadas com outras formas de exploração da terra e do rio.
- Nós vamos substituir o garimpo por uma plantação de cacau, de açaí, questão da piscicultura (criação de peixes) e outras atividades que também vão gerar emprego e renda para o nosso povo - afirmou o candidato.
Segundo Rogério Lima, presidente da associação de moradores de Vila Nova, o voto nos candidatos ligados ao garimpo é a última esperança de que as condições de vida na região possam melhorar.
- Aqui na região os políticos mentem muito. Se eles (candidatos do garimpo) não fazem muito, pelo menos fazem um pouquinho - afirmou Lima, que também é garimpeiro.
Apesar de Itaituba ser o município que mais arrecadou impostos com a produção do minério nos últimos anos - R$ 350 milhões desde 2018, segundo a Agência Nacional de Mineração (ANM) -, os números não refletem essa pujança. No local, 64% da população vive abaixo da linha de pobreza, com renda familiar per capita de até R$ 218 por mês, e 43% dos habitantes recebem Bolsa Família.
Asfalto e repressão
O primeiro asfalto na região garimpeira começou a chegar apenas neste ano na Avenida do Ouro, no distrito de Moraes Almeida, em Itaituba, considerado a porta de entrada da área onde há a maior concentração de garimpos. Constituído por mais de uma dezena de cabarés, madeireiras e lojas que vendem armas de caça e artigos de garimpo, o local empoeirado parece saído de um filme de faroeste. É ali onde os candidatos chegam para os comícios, já que o acesso aos vilarejos é mais remoto.
O projeto de asfaltamento de Moraes Almeida é uma das vitrines do atual prefeito, Valmir Climaco (MDB), para eleger o seu sucessor, o vice Nicodemos Aguiar (MDB). Mais do que as melhorias na infraestrutura, contudo, o povoado da Transgarimpeira está preocupado com a paralisia atual dos garimpos em razão de operações do governo federal na região.
- Todo esse tempo aqui, nunca tinha visto duas coisas nessa região: tudo paralisado como agora, e uma seca dessas - diz o garimpeiro Francenildo Aparecido dos Santos, de 75 anos, que passou cinco décadas "cavando buraco no chão e rolando de um lado para o outro" atrás de ouro.
A exemplo de Francenildo, Maria da Luz, dona de uma vendinha na comunidade de Vila Nova, já faz planos para se mudar da área.
- A gente não mora aqui porque quer. Viemos para ganhar o pão de cada dia trabalhando nos garimpos, porque tinha uma renda melhor do que na cidade. Aqui ninguém trabalha de roça, nem tem vaca leiteira, a sobrevivência é toda do garimpo.
'Bamburrados'
A possibilidade de "bamburrar" (enriquecer com o garimpo, na gíria local) leva muitas pessoas a se embrenhar na selva em busca de uma pepita. Como muitos pagamentos na região são feitos em ouro, o custo de vida é alto se comparado a outros municípios amazônicos. Dona de uma lanchonete na área urbana da cidade, Soraia Paschoal afirma que, muitas vezes, tem dificuldade de contratar uma auxiliar para a cozinha por dois salários mínimos, pois no garimpo elas costumam ser remuneradas com 30 gramas de ouro mensais. Isso equivale a R$ 10 mil.
- É difícil de competir. Elas acabam preferindo ficar no meio do mato, longe da família, do que ganhar menos na cidade - disse ela.
Das últimas seis eleições em Itaituba, cinco delas foram vencidas por candidatos ligados ao garimpo do ouro. Um dos mais populares foi Wirland Freire, prefeito de 1993 a 1996, numa época em que ainda não havia reeleição, e que voltou ao comando da cidade em 2001. Freire foi um dos principais fornecedores de combustível da região, responsável por abastecer máquinas que atuavam nos garimpos em torno das rodovias Transgarimpeira e da BR-163, que liga Santarém (PA) a Cuiabá (MT). Morto em 2002, seu nome batiza o aeroporto da cidade.
O atual mandatário, Climaco, por sua vez, está em seu terceiro mandato na prefeitura. Nascido no Ceará, ele migrou para Itaituba, onde se tornou comerciante de artigos de garimpo e virou um dos principais donos de áreas de extração de ouro na cidade.
O cientista político Carlos Augusto da Silva Souza, professor da Universidade Federal do Pará, avalia que a defesa do garimpo nessas regiões tem um "peso importante" na decisão do voto. Para ele, há uma percepção de que, se a atividade for interrompida, não haverá alternativas.
- O que mobiliza o eleitorado nesses locais é justamente a geração de trabalho e renda. E eles veem essa pauta ambiental como uma afronta aos interesses do lugar onde eles moram - disse Souza.
Para Larissa Rodrigues, diretora do Instituto Escolhas, associação que desenvolve pesquisas na área de sustentabilidade, as prefeituras dessas cidades deveriam usar os recursos da exploração do ouro para incentivar outros setores da economia a gerar emprego e renda.
- Estudos mostram que a atividade garimpeira não deixa impactos positivos no que importa para a população, como saúde e educação. Apesar de o garimpo existir, ele não está transformando positivamente a região - disse ela.
Segundo um levantamento do Instituto Socioambiental (ISA) de 2022, municípios que convivem com o garimpo possuem, em média, índice de progresso social 4% menor que a média amazônica, e 20% abaixo do índice do Brasil. A análise leva em conta o acesso a itens considerados necessidades humanas básicas, como nutrição, cuidados médicos, água, moradia e segurança.
Diretor de Amazônia e Meio Ambiente da Polícia Federal, o delegado Humberto Freire diz que a batalha contra o garimpo ilegal não vai se resolver apenas pela repressão, mas precisa incluir políticas públicas de desenvolvimento econômico da região.
- Nós não vamos conseguir eliminar (garimpo ilegal) se não tiver outros pilares funcionando. É preciso um engajamento na esfera municipal e estadual para buscar alternativas econômicas e levar riqueza aos amazônidas. São 30 milhões de pessoas que precisam sustentar as suas famílias - afirmou o delegado.
O Globo, 24/09/2024, Política, p. 10
https://oglobo.globo.com/politica/especial/o-garimpo-no-poder-sem-energ…
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