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O fuzil e a cruz

CIMI
Autor: Egon Heck
10 de Nov de 2007

"Já o fazendeiro Pio Silva Filho, ao avaliar a homologação das terras pelo presidente Lula, disse que foi um ato de imbecilidade", referindo-se a Ñanderu Marangatu.(Correio do Estado, Campo Grande, 9/11/07)

"Nós temos o direito dessas terras. Será que a palavra do presidente da República não vale mais do que a decisão de um juiz?".(Dorvalino Rocha - Nhanderu Marangatu - assassinado poucos dias depois de ter feito essa afirmação- Correio do Estado, 9/11/070)

Loretito se agita, gesticula e açoita o ar com bravas palavras Guarani. Não agüenta mais. Chegou ao limite de sua paciência histórica. Os tiros de fuzil, as câmaras filmadoras nas mãos dos jagunços encima das serras que rodeiam a aldeia dão a dimensão do cerco a que está submetidos. Não bastasse isso tudo, a cada pouco chega alguém correndo, chorando, contando que foi agredido pelos seguranças. Como líder de seu grupo na resistência sabe que tem a responsabilidade de ir até as últimas conseqüências. Fica pensativo. Caminha alguns metros e avista o túmulo e a cruz em que jaz Dom Quitito, seu pai. Ao morrer, repentinamente, em Coroa Vermelha(BA), naquela memorável luta pela vida e futuro dos povos indígenas no país, ele pediu que continuassem sua luta pela terra e vida de seu povo. Olha firmemente para as demais cruzes, de Dorvalino, Hilário(rezador recentemente morto por atropelamento no asfalto novo) e outras dezenas que cruzes de vários tamanhos e tempos. Recobra ânimo e retorna mais tranqüilo e decidido para seu barraco. Olha ao redor. Fixa firmemente o cerro Marangatu na certeza da vitória. Essa terra que lhes pertence, que sempre foi de seu povo, voltará um dia a ser dos Guarani Kaiowá.

Hamilton encosta a enxada na beira do rancho. A terra é boa e a semente foi lançada. A terra é pequena mas é alimento da esperança. Começa a rememorar o sofrimento, as décadas de luta, as pequenas vitórias e o longo caminho da vitória final. Lembra daquela luta ferrenha e sabia da recuperação da terra do Pirakuá. Foi lá que tudo começou, depois de séculos de dominação. Foi a primeira vitória de terra retomada. Foi por causa dela que Marçal Tupã'y foi assassinado pouco tempo depois. Foi a partir daí que um grupo de lideranças, especialmente nhanderu (caciques, rezadores) pensaram as estratégias de reconquistar espaços de seus tekohá(terras tradicionais). A memória é importante. Precisa passar isso para as novas gerações. Hoje a luta também se dá com a caneta. Resoluto marcha até encima da serra, na aldeia de Campestre.

Leia é a líder da escola (diretora). Ali está entretida com papéis, pincéis, dando visibilidade ás lutas. Agora tem uma nova arma, ferramenta - a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, aprovada recentemente pela ONU. Mais uma semana importante está pela frente. A polícia federal recolheu algumas armas dos pistoleiros, mas o problema ainda continua. Seu povo confinado em poucos hectares e os fazendeiros barbarizando, destruindo o pouco de mata que resta, enquanto sua gente nem lenha tem, para cozinhar o parca comida da cesta básica. Já morreu muita gente, fomos jogados à beira da estrada, passamos fome e comemos poeira, mas não desanimamos, lutamos sempre. E vamos continuar. Talvez o pior já tenha ficado para traz. Agora tem mais amigos, mais aliados, e o drama e a luta estão sendo conhecidas no mundo inteiro. Não vai ser agora que vão desanimar. É preciso exigir a continuidade da regularização da terra. É preciso exigir que o Supremo Tribunal Federal julgue logo a ação que questionou a homologação.

Esta foi a semana do fuzil (exclusivo das forças armadas, mas na mão dos pistoleiros) apreendidos pela policia federal. A próxima será da cruz de Dorvalino, que vamos plantar no lugar em que foi assassinado, na beira da BR 384.

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