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O Fórum Social Mundial tem relevância política?

FSP, Tendências:Debates, p. A3
Autor: DUTRA, Olivio;ROSENFIELD, Denis Lerrer
22 de Jan de 2005

O Fórum Social Mundial tem relevância política?

Soluções para a paz e a inclusão social

SIM

Olívio Dutra

O Fórum Social Mundial é um espaço conquistado pela humanidade que traduz o antigo anseio do homem de construir um mundo de paz e prosperidade. Esse objetivo, que acalentou a criação de organismos supranacionais como a ONU, vem se realizando pela participação intensa e persistente das entidades, organizações e pessoas que buscam, pela atuação democrática e respeito à diversidade e à pluralidade, evidenciar valores com que a solidariedade e o interesse público possam se sobrepor a interesses localizados, do lucro fácil e da exaltação do individualismo.
Nesse contexto, não é exagero afirmar que o FSM é a conquista mais recente da sociedade civil mundial de um espaço de formulação de idéias que, a cada edição, prova-se que são necessárias e possíveis de execução, em benefício de milhões de excluídos. O encontro de grupos sociais, governos locais e nacionais, além de comunidades e subgrupos culturais promove uma rica troca de experiências entre esses diversos atores que buscam recuperar a cidadania de pessoas que estão excluídas dos direitos mínimos à sobrevivência. Experiências como a inclusão digital, a economia solidária (que reestrutura grupos econômicos para sua volta ao processo produtivo) e os diversos modos de luta pelos direitos humanos são cada vez mais assimiladas e encampadas como políticas públicas e sociais.
O FSM é também uma conquista da solidariedade. A indignação contra o sistema que condena metade da humanidade à pobreza, um terço à miséria, 800 milhões à desnutrição e 1 bilhão ao analfabetismo; que deixa 1,5 bilhão sem acesso a água potável e 2 bilhões sem luz elétrica; que concentra a riqueza e a terra, fazendo com que 400 bilionários disponham de uma renda anual superior à de 45% da população mais pobre (2,6 bilhões de pessoas); que banaliza a violência aos direitos humanos; que gera o desemprego estrutural, a exclusão social e a insegurança nas grandes metrópoles; que justifica a depredação ambiental pelo imediatismo do lucro. Essa indignação conta agora com um local para expressar suas demandas pela universalização de direitos.
O FSM não é espaço, porém, para deliberações votadas para serem executadas ou impostas às autoridades, governos ou organizações supranacionais. Ele traz em sua natureza o questionamento inclusive da atuação das instituições que dão lastro aos sistemas hegemônicos vigentes. Na essência, o fórum vai mais fundo: afirma que a democracia não deve ser apenas institucional ou política, mas social e econômica. Não há como consolidar o processo democrático sem combater a miséria e a pobreza e seus efeitos.
O fórum reforça a necessidade de que as políticas públicas sejam decorrentes de uma participação cidadã crescente e qualificada de milhares de pessoas; participação essa que visa, fundamentalmente, o controle público do Estado e a transformação do indivíduo em sujeito, e não objeto, da política. Portanto o FSM não é propriedade de partido político, organização ou segmento político. Na sua essência, busca reunir todos os cidadãos do mundo (israelenses, palestinos, indianos, povos da Caxemira etc.); e o exercício dessa tolerância e desse respeito às diferenças demonstra que é possível construir um novo mundo.
Esses princípios encontram sustentação em setores públicos que, ao longo das diversas edições, vêm apoiando e apostando nas realizações do Fórum Social Mundial. Dentre esses setores estão o governo Lula e os governos do Rio Grande do Sul e da cidade de Porto Alegre. Os habitantes da capital gaúcha são protagonistas de experiências participativas demarcatórias na elaboração de políticas públicas. Compreendem-se, então, as razões para a sua escolha como sede do fórum em quatro edições.
Na edição deste ano, o FSM tem uma marca fundamental: pela primeira vez os 11 temas em debate (defesa dos bens comuns da terra e dos povos; culturas de resistência; comunicação; defesa da diversidade, pluralidade e identidades; direitos humanos; economia solidária e soberana; ética e espiritualidades; paz e desmilitarização; socialização do conhecimento; construção de uma ordem democrática internacional; e integração dos povos) foram definidos após uma ampla consulta mundial, em que mais de 2.000 entidades e redes de organizações indicaram os assuntos que deveriam ser discutidos no encontro.
Esse intercâmbio de experiências e a conseqüente formulação de propostas que sairão das intensas discussões consolidam, sem dúvida alguma, o fórum como promotor da radicalização democrática e da luta pela paz, pela justiça social, por um desenvolvimento sustentável e pelos direitos humanos.
Olívio Dutra, 63, é o ministro das Cidades. Foi prefeito de Porto Alegre (1989-92) e governador do Rio Grande do Sul (1999-2002), pelo PT.

Convescote
Não

Denis Lerrer Rosenfield

A política , no sentido nobre da palavra, pressupõe o pluralismo, a divergência de opiniões, o confronto de pensamentos e concepções. Os gregos já ensinavam que a ação propriamente política é aquela que se faz pela razão e se abre ao seu exercício, na prática do "logos", no confronto articulado por discursos. A violência, nessa perspectiva, fica contida pelo comportamento racional, que se coloca como uma espécie de "substituto" do uso da força bruta. Discursos de confronto, que apregoem abertamente a violência ou dela se utilizem sob os mais diferentes subterfúgios, mesmos legais, não são, no sentido estrito da palavra, políticos.
Um evento é constituído por seus ícones e símbolos. Em suas diferentes etapas, o Fórum Social Mundial sempre se caracterizou pelo convite a personagens que encarnavam a intolerância, a recusa do pluralismo, senão a apologia da violência e o desrespeito às leis de nosso país. Personagens propriamente alternativos e não dogmáticos foram relegados a mesas e seminários secundários, de pouca visibilidade pública. Os "políticos" não foram considerados centrais na "política" do fórum.
Ricardo Alarcón, presidente do dito Parlamento cubano, é um exemplo particularmente claro de uma escolha, a escolha por Cuba, a escolha por uma ditadura que oprime impiedosamente os seus cidadãos e elimina ou prende em processos sumários os seus adversários, chamados eufemisticamente de "dissidentes". Entenda-se: dissidentes em relação aos dogmas ideológicos oficiais, heréticos em linguagem religiosa, doentes mentais em linguagem psiquiátrica.
O célebre Bové, em sua cruzada santa contra os transgênicos, notabilizou-se por participar da destruição de uma unidade de pesquisa da Monsanto, com a colaboração do MST e o apoio dos governos petistas do Estado e do município. O MST, cujas ações pregam abertamente o desrespeito à lei, faz uso sistemático da violência, lutando para que o Brasil se torne um país socialista/comunista. Logo, um país que institucionalizaria a violência como modo de governo e partiria para o silenciamento dos opositores.
Nessa nova edição do fórum, o líder Hugo Chávez surge como convidado especial. A sua revolução, dita bolivariana, caracteriza-se pelas reiteradas e sistemáticas tentativas de suprimir a oposição, perpetuando-se por diferentes mecanismos, alguns tidos por "legais", no poder. A sua caminhada em muito se aproxima das fascistas, utilizando-se de artimanhas "legais" para eliminar toda a Constituição baseada no pluralismo e na convivência democrática. Como chamá-lo de fascista ou nazista poderia ainda chocar consciências ingênuas, melhor seria dizer que ele procura ser um discípulo de Fidel Castro e de tantos outros ditadores sanguinários, agora de esquerda, que povoaram o imaginário de boa parte da intelectualidade e dos jornalistas no transcurso do século 20.
É esse o outro mundo possível, tanto almejado?
O Fórum Social Mundial, apesar das aparências, não é um evento privado, mas público, pois os contribuintes deste país pagam R$ 10 milhões dos R$ 14,5 milhões estimados para a realização do evento. O dinheiro aí gasto é de todos nós, e não apenas dos que dele se apropriaram para defender idéias dogmáticas que se recusam à liberdade.
Se todos pagamos, seria natural que o pluralismo de nossos cidadãos aí também estivesse representado. Trata-se de uma questão política e ética. Política, pois não se pode compactuar com a intolerância ideológica no uso de recursos públicos. Ética, pois há um processo em curso, na polícia do Rio Grande do Sul, sobre o uso indevido de recursos públicos numa obra de instalação elétrica do fórum, que seria superfaturada. Transparência deveria ser palavra de ordem.
Durante anos ouvimos que o fórum não era partidário. Leia-se: o fórum não pertenceria ao PT. No entanto, quando o PT foi derrotado no governo do Estado, e agora também em Porto Alegre, alguns organizadores e promotores do evento reagiram indignados a essa manifestação da soberania popular. Como? O povo votou contra o PT? Sacrilégio, crime de lesa-majestade! Uma punição exemplar se faz necessária. Os mais afoitos, no calor do resultado das eleições, propuseram a imediata transferência do fórum para alguma outra capital petista do país. Os mais cautelosos, talvez por razões logísticas e de recursos, preferiram manter, para este ano, a programação original. Já anunciam, porém, que o fórum não teria mais como sede a sua cidade ícone.
A descortesia e a intolerância chegam ao seu ápice por o próprio prefeito de Porto Alegre, José Fogaça, do PPS, não ter sido, até agora, nem convidado para o ato oficial de inauguração do evento. Lembremos que Fogaça destinou R$ 2 milhões para o fórum. Nos outros anos, os prefeitos petistas eram sempre convidados. Por que essa discriminação? Por que o povo de Porto Alegre não é respeitado no seu uso soberano, democrático, popular e político do direito de voto?

Denis Lerrer Rosenfield, 54, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da UFRGS.

FSP, 22/01/2005, p. Tendências/Debates, p. A3

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