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O fiasco da reforma agraria? E dificil atribuir o resultado "pifio" a "heranca maldita"

OESP, Economia, p. B2
Autor: BUAINAIN, Antônio Márcio
09 de Dez de 2003

O fiasco da reforma agrária? É DIFÍCIL ATRIBUIR O RESULTADO "PÍFIO" À
"HERANÇA MALDITA"

ANTÔNIO MÁRCIO BUAINAIN

Fim de ano é tempo de festas, compras, balanço do passado recente e planejamento do futuro imediato. Semana passada o líder do MST, João Pedro Stédile, classificou o primeiro ano da reforma agrária do governo Lula como "pífio". De fato, em 2003 foram assentadas apenas 7 mil novas famílias e concluído o processo de outras 14 mil assentadas em 2002. Do total dos novos beneficiários, 60% estão nas Regiões Norte e Nordeste, mantendo-se o padrão de assentar nas regiões mais pobres, distantes dos mercados e com maior déficit de infra-estrutura.
Ainda que não se tomem as promessas da campanha como parâmetro - afinal, vivemos em um país com larga tradição de inadimplência de promessas eleitorais -, o resultado é pobre segundo qualquer outro indicador que se considere. Até mesmo o governo Collor, reconhecidamente contrário à reforma agrária, teve melhor desempenho. O governo tampão do presidente Itamar, em meio a séria crise política e econômica, assentou 15 mil famílias, e a administração Cardoso, em seu primeiro ano, assentou pouco mais de 40 mil. E nenhuma delas tinha, segundo os atuais gestores, "vontade política" para enfrentar o latifúndio e fazer a reforma agrária. É legítimo, portanto, que se esperasse algo melhor daqueles que passaram anos na dura função de oposição, e que pareciam ser os únicos representantes legítimos desta bandeira de luta.
É difícil atribuir o resultado à "herança maldita", pois é amplamente reconhecido que, pelo menos nesta área, a gestão FHC teve o mérito de melhorar substancialmente as condições para a implantação da reforma agrária. Um conjunto de leis, decretos e normas - inclusive a revisão e regulamentação do Rito Sumário - encurtou o processo de desapropriação dos imóveis e reduziu o custo dos assentamentos. O Incra, em que pese os problemas comuns a todo o setor público, voltou a ser operante, e foi capaz de superar suas próprias debilidades e multiplicar o número de projetos.
Novos instrumentos, como o crédito fundiário, compra de terras pelo próprio Incra e mecanismos de gestão de conflitos, foram colocados em operação para facilitar as ações do governo. Claro que sempre é possível atribuir a responsabilidade à política "neoliberal, continuísta e submissa ao FMI", do ministro Palocci. Mas, mesmo aceitando que a restrição fiscal impõe dificuldades, a efetiva paralisia do processo de assentamento deve-se fundamentalmente a problemas internos do MDA e Incra.
Em primeiro lugar, parece evidente que a capacidade operacional do Incra ficou, pelo menos neste primeiro ano, substancialmente reduzida pela ampla "renovação" dos quadros técnicos da instituição. Militância é uma ótima escola para formação de cidadãos, mas pouco ensina sobre como gerir recursos públicos nos marcos de uma legislação que é reconhecidamente complexa e inadequada, pois pressupõe que os funcionários sejam desonestos, criando, desta forma, inúmeras dificuldades para a operação regular do sistema; tampouco ensina a construir, com paciência e competência técnica e política, soluções sustentáveis para os desafios enfrentados. A renovação pode ter contribuído para aproximar a instituição do movimento social, mas parece ter tido efeito negativo sobre a agilidade operacional e capacidade de resposta aos problemas cotidianos. A substituição do presidente do Incra foi o reconhecimento explícito desta realidade, e ao que tudo indica estão em curso mudanças para resgatar a capacidade de ação do órgão.
Em segundo lugar, faltou à nova administração clareza sobre seu papel como governo, e não mais como militantes do movimento social. É certo que em várias ocasiões as autoridades declararam que o governo não se confundia com o movimento social, mas na prática, também em várias ocasiões, o governo agiu como se o fora. O centro da questão foi a indecisão em relação à Medida Provisória 2.027, que proíbe por dois anos a vistoria de imóveis ocupados.
Para o movimento social a MP é antidemocrática e inconstitucional, pois restringe o direito de manifestação e impede o cumprimento da Constituição, que prevê a desapropriação de imóveis improdutivos. Do ponto de vista de governo, a MP tem outra conotação: trata-se de instrumento para reduzir a pressão provocada pelas ocupações e retirá-lo da posição de refém do movimento social, que na prática vem escolhendo terras, beneficiários e hora de implantação do projeto. Vários estudos e reportagens jornalísticas vêm revelando os resultados insatisfatórios deste modelo. Ao sinalizar que poderia revogar a MP, o governo contribuiu para reanimar os conflitos e para a própria paralisia da reforma. De um lado, pela oposição que encontrou na sociedade à continuidade da reforma por conflito; de outro, pelo desvio de energia para a gestão dos conflitos e pelo desgaste político incorrido neste processo.
Outro ponto que confirma a falta de capacidade é a dificuldade para apresentar o plano, prometido várias vezes, e até o momento não divulgado para o debate com a sociedade. No lugar de mirar o futuro e formular sua estratégia de ação, a administração gastou meses olhando o passado em busca da herança maldita, e até agora não foi capaz de transformar as promessas de campanha em programa e ações de governo. Aos que consideram que a reforma agrária ainda é essencial para construir uma sociedade mais democrática, só resta entrar no clima de final de ano e sonhar com um ano-novo melhor que o velho.

OESP, 09/12/2003, Economia, p. B2

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