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O dia da cobaia

FSP, Mais, p.8-9
11 de Set de 2005

Ação de ecoterroristas no Reino Unido põe debate sobre tratamento de animais de laboratório na ordem do dia, mas cientistas dizem que não é possível fazer pesquisa sem eles
O dia da cobaia
Reinaldo José Lopes
Era para ter sido um daqueles momentos de triunfo e de céu sem nuvens para a ciência: a publicação da seqüência completa do DNA do chimpanzé, o mais próximo parente vivo da humanidade. Uma dissonância significativa, no entanto, chamava a atenção em meio à coletânea de artigos celebrando o feito no periódico científico britânico "Nature" (www.nature.com): enquanto um classificava os chimpanzés como "recurso biomédico único", outro chegava perto de pedir uma moratória dos estudos invasivos com eles e os outros grandes macacos.
Seria um tanto exagerado dizer que a atitude em relação a chimpanzés, bonobos, gorilas e orangotangos reflete o que se vê em outras áreas da pesquisa com animais. Mas o fato é que a ética de minimizar a utilização e o sofrimento de outros seres vivos em experimentos parece estar sendo incorporada ao trabalho dos cientistas, embora a própria necessidade de usá-los divida os pesquisadores. Muitos admitem que é necessário e desejável encontrar alternativas ao uso de animais vivos, ressalvando que a ciência básica provavelmente nunca conseguirá eliminar sua presença nos laboratórios.
Em países como o Reino Unido, o momento não poderia ser mais polarizado. Ativistas radicais de organizações dos direitos dos animais conseguiram, no mês passado, o fechamento de uma fazenda de porquinhos-da-índia, a Darley Oaks, em Staffordshire, depois de anos de uma verdadeira guerra suja.
Um dos lances mais dramáticos envolveu o roubo dos restos mortais de Gladys Hammond, sogra de Chris Hall, um dos donos da fazenda. Antes disso, as táticas de intimidação dos ativistas já tinham conseguido fazer com que o jornaleiro desistisse de entregar jornais para a família; que o clube de golfe do qual Chris Hall era sócio pedisse sua saída; e que o pub que os Halls costumavam freqüentar tivesse seu contrato com uma cervejaria cancelado, de acordo com o jornal britânico "The Independent".
Contra a dor
Os cientistas brasileiros passam longe de ter de lidar com atos de ecoterrorismo como esse, mas fazem questão de afirmar que a imagem de crueldade atribuída a esse tipo de experimento passa longe da realidade. "O princípio básico é prover o bem-estar do animal", afirmou à Folha Dolores Rivero, bióloga do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP. Ela estuda, em ratos, os efeitos fisiológicos da poluição da Grande São Paulo.
"Toda publicação científica tem de conter informações sobre os procedimentos de anestesia e sobre a aprovação deles por um conselho de ética da instituição", diz Rivero. Segundo o veterinário Stelio Luna, da Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Botucatu, a exigência é especialmente forte para quem deseja publicar seu trabalho em revistas científicas internacionais, de maior prestígio, e também é indispensável para doutorandos.
Para a bióloga da USP, não há como questionar a importância da experimentação com animais para o avanço dos estudos sobre a saúde humana. Ela destaca a contribuição para os transplantes e para o conhecimento básico dos fenômenos fisiológicos. Rivero diz estar consciente da necessidade de reduzir ao máximo o número de animais necessários para um experimento. Segundo ela, métodos alternativos, como estudos em culturas de células ou tecidos, são tão úteis quanto testes in vivo quando se deseja entender a ação de determinada substância em nível celular ou molecular.
"Uma coisa é quando você conhece o mecanismo fisiológico até chegar à célula. Se você não sabe como funciona esse mecanismo, o caminho que leva ao dano celular, não adianta fazer a cultura de células", diz Rivero. "Em suma, depende da pergunta que você faz e do que você quer estudar." Ela exemplifica com a própria pesquisa.
"Roedores são muito similares a humanos em vários aspectos. O epitélio pulmonar, por exemplo, é idêntico. Por outro lado, não adiantaria nada tentar estudar doenças cardíacas em répteis, porque o coração deles é diferente do nosso", compara a pesquisadora da USP.
Desperdício
Luna, da Unesp, que tomou contato direto com a truculência dos ativistas britânicos ("fiz meu doutorado na Inglaterra, e lá a gente era instruído a verificar o pneu do carro para ver se não tinha bomba", conta, bem-humorado), aponta outro ângulo importante. Segundo ele, a qualidade de muitos estudos com animais é questionável e precisa ser revista, de forma evitar o sacrifício desnecessário dos bichos.
"No Reino Unido, apenas 25% das pesquisas feitas com animais acabam sendo publicadas", afirma. Muitos dos testes mais triviais, como os de substâncias cancerígenas, cosméticos ou os sobre a presença do vírus da raiva, continuam sendo feitos in vivo mesmo com a presença de alternativas já estabelecidas, critica ele. "As pessoas têm uma certa relutância em mudar e mantêm o paradigma." Luna também relativiza a relação direta entre pesquisa médica em animais e a melhoria da saúde de seres humanos.
"Há estudos mostrando que a queda da mortalidade humana conseguida entre 1900 e 1984, por exemplo, se deveu principalmente ao saneamento básico e às normas de higiene. Só 3,5% dele é resultado de intervenções médicas", afirma, com a ressalva de que, em áreas como a cardiologia e os transplantes de órgãos, a contribuição direta dos estudos com animais foi fundamental.
O pesquisador da Unesp questiona a utilização, ainda comum nas escolas veterinárias do Brasil, de animais vivos para o treinamento de estudantes. "Já está provado que não há diferença significativa de desempenho entre quem aprende com o animal in vivo e quem usa recursos audiovisuais ou cadáveres", afirma.
Silvia Barreto Ortiz, pesquisadora da Faculdade de Medicina da USP e presidente do Cobea (Colégio Brasileiro de Experimentação Animal), discorda. "Como é que você vai aprender a fazer uma sutura num animal que não sangra?", diz, referindo-se ao treino com cadáveres.
Ortiz costuma cobrar "coerência" das pessoas -quem pede a proibição total de experimentos com animais não deveria nunca mais tomar uma aspirina ou se vacinar contra poliomielite, sustenta ela. "É muito difícil abolir completamente os experimentos. O que podemos fazer é zelar pela analgesia e pelo bem-estar do animal", continua.
Quase iguais?
Alternativas ou anestésicos à parte, no entanto, a questão mais espinhosa de todas permanece em aberto. Haverá ocasiões nas quais é eticamente injustificável usar animais em experimentos? Se sim, será que essa barreira deveria ser traçada com base na semelhança entre a possível cobaia e os seres humanos, como propõe um dos artigos da "Nature" ao tratar dos grandes macacos?
"Não sei se a semelhança entre os macacos e os seres humanos justificaria uma abstenção do uso para testar uma vacina por exemplo. Depende muito das características que as pessoas atribuem ao animal. Quem se afeiçoa ao seu cachorro e acredita que ele tem uma personalidade jamais aceitaria que ele fosse usado, mas talvez não tivesse problemas com um macaco", diz Rivero.
Categórico, Luna vai em outra direção: "Em poucas palavras, eu diria que é inquestionável o fato de que, no sofrimento, humanos e animais são iguais. Os animais sofrem física e emocionalmente, assim como nós. Eles foram extremamente úteis, mas talvez haja um momento no qual tenhamos de parar de usá-los."

"Não basta aumentar as gaiolas"
Vinicius Mota
Editor de Mundo
Depois de cuidadosa avaliação, a Secretaria de Estado chegou a uma decisão final e expediu ordem pessoal para que o sr. seja excluído do Reino Unido, com base em que a sua presença não é compatível com o interesse público." O destinatário da carta do Ministério do Interior britânico não é nenhum clérigo islâmico acusado de propagar o ódio terrorista.
Trata-se do norte-americano Steven Best, 49, professor de filosofia na Universidade do Texas em El Paso. Organizador de "Terrorists or Freedom Fighters? Reflections on the Liberation of Animals" [Terroristas ou guerreiros da liberdade? Reflexões sobre a libertação dos animais], Best é um dos mais citados teóricos da "ação direta" e do "abolicionismo", duas das facetas radicais do movimento por direitos dos animais.
O filósofo banido do Reino Unido há 11 dias que, em pleno Texas dos cowboys carnívoros, luta para convencer as pessoas a se tornar vegetarianas, falou à Folha por telefone. Leia trechos da conversa.
Folha - No Reino Unido, ativistas pelos direitos dos animais, durante campanha para fechar uma fazenda que criava porquinhos-da-índia para pesquisa médica, chegaram a roubar da sepultura os restos mortais da sogra de um dos proprietários. Você concorda com esses meios?
Steven Best - Essa campanha foi talvez a mais dura já travada. Além de terem alvejado a família destruindo sua propriedade, [os ativistas] alvejavam todos no vilarejo que tinham relação com a família. Isso mostra o quão longe esse movimento está disposto a ir para fechar uma fazenda de criação -já fecharam cinco desse tipo no Reino Unido.
Sem levar em conta o contexto da ação, parece que essas pessoas são más ou terroristas. Mas, sejam quais forem os danos que eles tenham imposto à família e à comunidade, eles não se comparam aos que todas as famílias de criadores e os laboratórios têm feito aos porquinhos-da-índia. Os ativistas não fizeram isso porque gostam de produzir dor nas pessoas, mas porque queriam impedir que a família infligisse mais dor a um sem-número de animais. Outro aspecto importante é que o governo [britânico] se aliou às grandes empresas de biotecnologia. Ignora as leis de bem-estar animal e protege criadores e laboratórios de toda forma possível. Os ativistas abandonaram a ilusão de que o governo protegeria o bem-estar animal.
Folha - Então a ação se justifica?
Best - A verdadeira fonte de violência e de terrorismo é a que é aplicada a esses animais. Há momentos em que a violência é necessária. Nós a usamos para dar cabo da 2ª Guerra Mundial, a usamos em casos de autodefesa e quando os animais não podem defender a si mesmos e exigem defesa. Não é justo usar violência para defender seres inocentes? Não questionamos isso quando se trata de seres humanos. Mas, quando esses seres inocentes são animais, isso se torna terrorismo.
Folha - Você se refere muito a Karl Marx em suas obras. Animais constituem alguma classe social ou política?
Best - A analogia tem de acabar em algum ponto, pois os animais não são seres capazes de auto-organização política. Isso é o que fortalece o argumento de utilizar a sabotagem e outras táticas para defendê-los, pois eles não podem se defender.
Já a categoria marxista de "exploração", por exemplo, é muito importante. Grupos são explorados quando seu trabalho e seus corpos são utilizados para gerar lucro para outros. Os animais, nesse sentido, são explorados e são escravos, pois não consentem com a sua exploração.
Folha - Uma sociedade em que os animais estivessem todos libertados seria também livre da exploração de grandes empresas?
Best -Há uma luta mais geral, contra hierarquias e explorações de todo tipo. Algumas vezes, dentro da comunidade que luta pela libertação animal, há influência anarquista muito pronunciada. As pessoas compreendem que a libertação humana e a animal são um projeto comum. Se tiverem sofisticação teórica, entenderão que as indústrias que exploram os animais são capitalistas, obedecem à lógica capitalista.
O único argumento que as indústrias capitalistas escutam é o econômico. E o argumento econômico que [grupos pela libertação animal] impõem é o da sabotagem e o da pressão incessante.
Mas o movimento pelos direitos dos animais como um todo é em geral apolítico e abriga todo tipo de variação. Há ativistas republicanos [do partido de Bush]. Acredito, porém, que precisamos de uma teoria e uma política anticapitalistas para lutar pela libertação de todo ser oprimido.
Folha - Trinta anos se passaram desde que Peter Singer publicou pela primeira vez o clássico "Libertação Animal". O que disse permanece correto?
Best - Peter Singer é um [pensador] utilitarista, não é um filósofo nem um ativista dos direitos dos animais. Quando ele acredita que o sacrifício dos interesses dos animais e dos seres humanos pode gerar uma quantidade maior de felicidade, esses animais podem ser sacrificados.
Não podemos sacrificar interesses humanos nem dos animais sob nenhuma hipótese, e isso inclui a vivissecção [operação com animais vivos]. Ninguém no movimento antivivissecção segue Singer, porque essas pessoas são teóricas dos direitos dos animais, são abolicionistas.
Não estamos interessados em afrouxar as correntes dos escravos nem em aumentar o tamanho de suas gaiolas. Queremos arrebentar as correntes e abrir as gaiolas.
Nos EUA, o movimento pelos direitos dos animais é majoritariamente legalista. Acreditam que podem vencer sempre dentro do sistema legal. Mas os libertários e os ativistas da ação direta sabem que isso é uma ilusão, uma ingenuidade, pois aqui, como no Reino Unido, as empresas controlam o Estado, e o Estado trabalha de acordo com elas.
Folha - Qual é o objetivo imediato do movimento?
Best -No Reino Unido, é abolir a vivissecção, em troca de meios alternativos de experimentos. Nos EUA, é promover o vegetarianismo e tentar mitigar o holocausto dos animais. Mais de 10 bilhões de animais morrem aqui todos os anos!
Folha - Como alcançar seu objetivo de uma sociedade 100% vegetariana?
Best - Temos de adotar todas as táticas, o que inclui ataques a fazendas, destruição de propriedade etc. Mas o mais importante é a educação para o vegetarianismo e as filosofias dos direitos animais. Não confio muito em campanhas pelo bem-estar dos animais que querem aumentar o tamanho das gaiolas ou matar galinhas em câmaras de gás em vez de cortar-lhes o pescoço.

Australiano é ideólogo da libertação dos animais
Pode não parecer, mas os métodos no mínimo duvidosos (ecoterroristas talvez fosse palavra mais exata) dos ativistas britânicos que conseguiram fechar Darley Oaks e que, antes disso, conseguiram interromper a construção de um centro de pesquisas biomédicas na Universidade de Oxford, no Reino Unido, se baseiam, em parte, no raciocínio de alguns dos maiores filósofos morais da atualidade. Entre eles, a figura mais destacada é o australiano Peter Singer, da Universidade de Princeton (Estados Unidos), autor do livro "Libertação Animal" e ideólogo-mor do movimento homônimo.
Singer é o grande difusor do termo "especismo" e, exatamente como o nome sugere, a idéia se refere a uma versão do racismo, só que extrapolada para a barreira que os seres humanos traçam entre a sua espécie e as outras. Para ele, as diferenças de capacidade mental e cultural entre as pessoas e a maioria dos animais -o principal argumento para que seja filosoficamente aceitável fazer experimentos com animais e mesmo matá-los para comer- não leva em consideração a capacidade para o sofrimento e para o prazer dos bichos. Essa não diferiria da humana.
Para ele, quem recusa esse fato incorre no mesmo tipo de erro cometido no passado -recusar direitos iguais a pessoas de outra raça ou às mulheres alegando capacidades diferentes neles. Mesmo que tais diferenças fossem verdadeiras, não seriam motivo para que os "diferentes" recebessem consideração inferior.
"O princípio da igualdade entre os seres humanos não é a descrição de uma suposta igualdade de fato existente entre seres humanos: é a prescrição de como devemos tratar os seres humanos", escreve Singer em "Libertação Animal". "Se um ser sofre, não pode haver qualquer justificativa moral para deixarmos de levar em conta esse sofrimento." Para o filósofo, esse é o limite da chamada senciência.
É baseado em tal raciocínio que Singer dá seu passo mais radical. Para ele, animais não-humanos, bebês de poucos meses de vida e seres humanos com deficiência mental grave estariam na mesma categoria ética quando se leva em conta sua capacidade de sofrimento.
Na verdade, ele chega a considerar que, como animais adultos como cães e chimpanzés têm consciência de seus arredores e capacidade de gozar a vida muito superior à de um bebê com danos cerebrais, seu direito à vida poderia até ser maior que o deste.
Singer desafia os defensores dos testes médicos em animais a dizer se estariam dispostos a realizar os mesmos experimentos que fazem em bichos com pessoas com grave deficiência mental.
Em última instância, ele considera tais testes eticamente indefensáveis, mas diz que, como a abolição imediata deles não é possível, o primeiro passo é eliminar os que já se mostraram absolutamente desnecessários -como os de cosméticos ou produtos de limpeza, por exemplo.
Nos países da Europa Ocidental, diga-se de passagem, muitas empresas de cosméticos já eliminaram os testes em animais, transformando isso numa tendência para a indústria hoje. (RJL)

FSP, 11/09/2005, p. 8-9 (Mais)

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