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Autor: João Marcello Santos
19 de Ago de 2024
O curso da vida às margens do Rio Negro
Documentário O Contato acompanha famílias de quatro etnias em São Gabriel da Cachoeira: Yanomami, Arapaso, Baniwa e Hupda
Quando procurou a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) para viabilizar a filmagem do documentário O Contato no Alto do Rio Negro, na Amazônia, em 2019, a produtora de cinema Juliana de Carvalho encontrou resistência. Foi o indigenista Bruno Pereira quem intermediou a negociação, consultando as lideranças locais sobre a ideia de protagonizarem um documentário. Retornou com o aval e uma condição. "Os indígenas teriam autonomia de escolha. Foi feita, então, uma assembleia para decidirem se queriam ou não a nossa ida até a lá, e se gostariam ou não de participar do filme. Todos disseram que sim, com a contrapartida de receber uma escola. E Bruno nos deu essa autorização", detalha Juliana.
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O filme foi rodado antes da pandemia de covid-19, em São Gabriel da Cachoeira, município com maior diversidade étnica do Brasil, onde convivem 23 etnias e 18 idiomas nativos, e também, uma das cidades com maior extensão territorial do mundo, com aproximadamente 109 mil km², área ameaçada pelo narcotráfico e pelo garimpo ilegal. Em junho de 2022, Bruno intermediava outra produção, um livro do jornalista britânico Dom Phillips sobre os povos indígenas, quando ambos foram assassinados por pescadores ilegais no Vale do Javari. O filme O Contato, lançado nacionalmente neste 15 de agosto de 2024, dois anos depois do crime ainda sem julgamento, é dedicado à memória de Bruno. "O Bruno era um amigo dos indígenas, tinha o dom especial de compaixão por essas pessoas", afirma a produtora.
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O convívio nas aldeias foi marcante para ambos os lados, conta Juliana. São Gabriel é uma região onde 90% da população é indígena, com raro contato com não-indígenas. A comunicação contou com a ajuda de intérpretes regionais, mas em pouco tempo criaram-se laços de amizade, com a comida feita em conjunto, cobertores compartilhados, noites dormidas em redes. A logística exigiu adaptação às chuvas torrenciais e à falta de luz elétrica. A captação das imagens seguia o nascer e o pôr do sol, além do curso dos rios, que regem a vida nas aldeias: "Foi uma experiência de mão dupla. A gente, por trás da câmera, também estava vivendo uma aventura de contato. De se conhecer, se respeitar, às vezes sem o uso de palavras e apenas com olhares e gestos", destaca.
Falado em quatro línguas indígenas, o documentário acompanha o cotidiano de famílias de diferentes etnias: os Yanomami, os Arapaso, os Baniwa e os Hupda. A narrativa é conduzida em torno de questões de identidade. A líder Arapaso Maristela Cordeiro, professora bilíngue de ensina português e tukano, se despede do marido e do filho em casa, e dos alunos na escola. Vai se ausentar da aldeia por tempo indeterminado, para acompanhar o tratamento da filha, com depressão, em São Gabriel da Cachoeira. A jovem é uma dos muitos filhos das aldeias que vão morar na cidade, em busca de trabalho, estudo ou outros modos de vida, planos que muitas vezes não se realizam, causando grande frustração. "Ela anda muito mal. O médico disse que é depressão, receitou remédio controlado. Queria que ela fosse benzida, seria melhor. Se cuidem, não sei quando volto"
Jacinta, uma mulher Hupda, casada com Graciliano, Baniwa, etnias que não se relacionavam até 2013, se prepara para apresentar o filho Luan à família paterna. "Não faz muito tempo que os Baniwa começaram a casar com os Hupda. Alguns Hupda dizem que são de outras etnias, que são Tukano, porque têm vergonha. Mas meu pai me ensinou a ter orgulho do meu povo", conta. A mãe dela lamenta: "Filha, meu neto não entende a nossa língua. Acho que ele é mais do outro povo".
Valdir, líder Yanomami busca manter viva a memória de seu pai, para si e entre a comunidade, por meio de antigos registros audiovisuais. Guarda uma antiga fotografia dos dois. "Uma vez, um branco chegou na aldeia com uma câmera e tirou uma foto de nós dois juntos. Pedi a ele pra mandar essa foto. Quando meu pai morreu, fiquei apenas com uma imagem dele", conta o líder, que organiza na aldeia uma exibição de fotos e vídeos.
Muitos depoimentos no filme abordam as agressões culturais impostas por brancos às diferentes etnias indígenas. Histórias familiares sobrevivem há gerações e relembram a violência que marcava a exploração comercial dos territórios do Alto do Rio Negro. Um comerciante em específico, Manoel Antônio de Albuquerque, o "Manduka Albuquerque", é frequentemente citado pela perversidade no trato com os nativos das margens do Rio Uaupés, os quais eram presos e submetidos a trabalho escravo na produção de borracha e farinha.
"É importante visitar essas comunidades, conhecer essas histórias e colaborar, seja como realizador de algum projeto, turista, doador ou como alguém que defende ideologicamente as bandeiras desses povos. Devemos ter consciência de que eles estão trabalhando muito pela sobrevivência e pela manutenção da sua cultura. Temos que chegar junto", comenta o diretor, Vicente Ferraz, que, assim como a produtora Juliana, tem se dedicado a produções ligadas a temas socioambientais: "Sempre tive essa preocupação não só com a natureza, mas também com as populações locais. Já estou no quarto filme seguido com temática indígena".
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