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O capitalismo vai à aldeia

Estado de S. Paulo-Sâo Paulo-SP
Autor: Lúcio Flávio Pinto
29 de Out de 2002

Índios buscam inserção mais favorável no mundo dos negócios da sociedade que os envolve (e, freqüentemente, os sufoca)

Já vai fazer 30 anos que os Gaviões realizaram o feito inédito: foram os primeiros índios em toda a história brasileira a lidar com o mercado financeiro. Num certo dia de 1976 o índio Cutia (que, a bem da verdade, era Potiguar e não Gavião) abriu uma conta em nome da tribo na agência do Banco do Brasil em Marabá, distante 30 quilômetros da aldeia, no violento sudeste do Pará. O dinheiro provinha de uma indenização que a Eletronorte (Centrais Elétricas do Norte do Brasil) pagou para que a linha de transmissão da hidrelétrica de Tucuruí atravessasse a área da reserva Mãe Maria ao longo de 15 quilômetros, levando energia para o Maranhão. Era dinheiro suficiente para que os Gaviões passassem a ser tratados como clientes especiais pelo gerente do banco.

Muita gente, na época, achou que era dinheiro demais para entregar nas mãos dos índios, mas os Gaviões já não eram mais jejunos no assunto. Em mais um pioneirismo, eles haviam conseguido se livrar da instância patrimonialista que engordava no vasto ventre da Funai, aproveitando-se da tutoria que a fundação exerce sobre os índios. Dando o brado de independência, os Gaviões afastaram o DGPI (Departamento Geral do Patrimônio Indígena) da aldeia e passaram a tratar da comercialização de sua safra de castanha, o principal produto da aldeia, diretamente com os exportadores da valiosa amêndoa, negociando quantidades e preços. Essa difícil negociação, empacada no mau hábito dos exportadores de ganhar o máximo e ceder o mínimo, adestrou alguns líderes da tribo, especialmente Cutia, uma espécie de ministro da fazenda entre os Gaviões.

A indenização da Eletronorte, que construía a segunda maior hidrelétrica brasileira, também não caiu do céu. O então presidente da subsidiária da Eletrobrás, coronel (da reserva do Exército) Raul Garcia Llano, era duro na queda. Para vencer a resistência dos índios, ele decidiu fazer uma reunião na casa do cacique Kokrenum. Chegou senhor das ações, sentou-se à cabeceira da mesa e falou grosso e alto. Jokrenum, irmão do cacique, achou que era petulância demais. Enquanto o coronel ditava as regras, levantou do seu banco e foi lá dentro. Pressentindo o lance, Cutia me pediu para acompanhá-lo, nervoso. Tinha razão: Jokrenum fora buscar uma borduna. Queria abrir a cabeça do ofensor, que deslocara o cacique do seu cerimonioso poder. Demorou, mas afinal foi convencido a não lavar com sangue a injúria, que era involuntária. O coronel não estava humilhando o capitão tribal: era seu modo de ser, plantado em bom terreno naquela época de autoritarismo castrense.

Depois da indenização da Eletronorte, veio o programa de assistência imposto pelo Banco Mundial para aprovar a extração de minério da Serra de Carajás e uma nova indenização, a da Companhia Vale do Rio Doce, para que os trilhos da Ferrovia de Carajás também cruzassem a reserva Mãe Maria, uma ilha de floresta, com suas belas castanheiras, num mar de desmatamento por todos os lados.

Para manter essa integridade vegetal, aliás, os bravos Gaviões tiveram que jogar duro com os posseiros e seu tutor ad-hoc de então, o Getat (Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins), na infindável farra de siglas da burocracia brasileira. Em meio a trapalhadas, ambos ameaçavam abrir uma cunha de devastação no único oásis de árvores da região.

A conta dos índios em Marabá cresceu muito - e rapidamente. O volume de dinheiro deixou de guardar proporção com a maestria da tribo nos princípios de gestão e gerência. Veio mais frouxamente do que esperavam. Gastaram também à larga, para o padrão espartano de antes. Remanejaram a aldeia para o outro lado da estrada e, num lugar mais protegido da curiosidade dos passantes, consumaram outra façanha: a construção da primeira aldeia indígena em alvenaria do Brasil. Infelizmente foram enganados pelo arquiteto contratado. As casas eram ruins e o projeto, deficiente.

Outros erros se seguiram, estimulados pelo princípio do mando verticalizado do chefe e pelo sistema hierárquico da sociedade tribal. Críticas não são bem-vindas na tribo, mesmo que oriundas de amigos, que, por isso mesmo, se tornam menos amigos e acabam se afastando. Ainda assim, entretanto, os desvios de dinheiro, as aplicações supérfluas e os erros de concepção dos Gaviões não foram nem um pouco mais graves do que os dos chamados civilizados, metidos na pedagogia do comércio há milênios. Marcos na história dos povos indígenas no Brasil, os Gaviões continuam a tocar sua vida com autonomia às margens da antiga PA-70, agora BR-222. Não fariam a felicidade de Rousseau, mas são de uma carne e de um osso de grande valor.

Os bravos xikrins

Deixaram, porém, de estar sós nessa crônica da aproximação de sociedades primitivas com uma das mais diabólicas das invenções do dito mundo civilizado: o dinheiro. O mais recente dos capítulos dessa movimentada novela foi escrito duas semanas atrás, uns 300 quilômetros a oeste da aldeia Mãe Maria, pelos bravos Xikrin do Cateté.

Primos menos célebres dos Kayapós, eles tiveram no passado que exibir força para assegurar a integridade da sua reserva. Botaram para correr os fazendeiros que tentaram expandir seus limites penetrando furtivamente na área indígena. Mas não precisaram ter a mesma agressividade guerreira com um vizinho que se estabeleceu na região na segunda metade da década de 60, assumindo o domínio dos platôs que escondiam a melhor e uma das maiores jazidas de minério de ferro do mundo. A Companhia Vale do Rio Doce, que se tornou única proprietária dessa inestimável província mineral quando se desfez da sociedade com a americana United States Steel, em 1977, procurou manter sempre boas relações de vizinhança com os Xikrin.

Essa diplomacia foi agora perturbada por outro ineditismo: pela primeira vez os índios deixaram de ser vítimas para ser os autores de uma invasão. Aproveitando-se da madrugada, eles bloquearam um acesso à área de exploração de ferro. Não fizeram qualquer violência. Tinham apenas uma exigência: que a Vale lhes pagasse mais do que a cota mensal de 100 mil reais. Os Xikrin, endividados no comércio local, precisavam urgentemente de 400 mil reais para saldar dívidas que os estavam sufocando. Embora conduzam o único projeto de manejo florestal em terras indígenas que existe no país, não era por causa desse empreendimento que os índios estavam argolados. Era mesmo por consumismo.

Esse não é um problema novo, nem isolado - e muito menos singular. Ele está se multiplicando e se avolumando porque as reservas indígenas estão entre as terras mais valiosas da Amazônia. Quando os Gaviões se libertaram do jugo do DGPI, provando que atuando diretamente na atividade comercial eram capazes de gerar mais dinheiro do que seus tutores governamentais, a chamada sociedade envolvente fazia cavalo de batalha no combate ao surgimento de áreas protegidas para índios. Muitos conflitos surgiram e se tornaram sangrentos para que elas não chegassem aos papéis oficiais; chegando, não se materializassem; e, sendo oficializadas, não se tornassem realidade no terreno, através da demarcação.

Hoje, esse problema se tornou secundário. Reservas indígenas são mais fáceis ou mais baratas de explorar pelos "brancos", desde que os próprios índios sejam convencidos ou seduzidos a aceitar o uso econômico de suas áreas por terceiros, quase sempre à margem do ordenamento legal, aplicável dentro ou fora dessas reservas. Ainda há um ou outro conflito eclodindo, mas eles são a exceção e não mais a regra. Devem-se geralmente à situação de primitivismo da expansão da frente econômica naquele determinado local. Onde ela já se estabeleceu e desenvolveu, o mais freqüente é encontrar produtores defendendo as reservas e os índios do que o contrário.

Foi assim na relação entre a Andrade Gutierrez e o cacique Tuto Pombo no Xingu, entre a Paranapanema e os Waimiri-Atroari no Pitinga, entre madeireiros ou garimpeiros e os Kayapó no Xingu. A pedra de toque na mudança de atitudes (na dos índios em favor da tolerância à invasão, na dos "brancos" em apoio às reservas, que antes abominavam) foi o dinheiro. Como ele não pode, à maneira de Alice no país das maravilhas, ser "desinventado", para os índios o desafio é buscar uma inserção mais favorável no mundo dos negócios da sociedade que os envolve (e, freqüentemente, os sufoca).

Se já se tornou inviável a utopia formulada pelos irmãos Vilas-Boas num Parque Nacional do Xingu interditado ao mundo ao redor, a mecânica do cotidiano impõe o know-how aos índios. O que suas reservas contêm é conhecido e sofrerá pressão cada vez maior pelas ondas de interesse econômico que vão bater nas suas bordas. Despreparados para ardis como a formação dos preços e a valoração dos produtos, os índios têm sido vítimas tanto de espertalhões vorazes quanto até mesmo de amigos muy amigos. Num universo de competição acirrada, mesmo quando dão um passo positivo na direção do amadurecimento de suas organizações, como fizeram os Xikrin, estão sujeitos à algaravia do consumo, ao efeito inebriante de uma moeda viva se agitando em seus depósitos de guarda.

Quando um antropólogo reapareceu na aldeia Mãe Maria, muitos anos depois de ter escrito sobre os Gaviões um dos mais preciosos trabalhos da antropologia brasileira, os índios foram recebendo-o com uma pergunta acusatória: o que é que o notável antropólogo havia feito ou podia fazer em benefício, concreto e imediato, da tribo que tão bem estudara? O célebre antropólogo ficou embaraçado. Não contava que suas cobaias abandonassem o mundo ideal dos conceitos para cobrá-lo sobre eventos que estariam melhor acomodados na sociologia, na política ou, quem sabe, no jornalismo. Fez o caminho de volta quase aos tapas, arrastando consigo o câmera que registraria o momento histórico do reencontro do bwana com os nativos.

O acadêmico não fora informado que o capitalismo já havia chegado à aldeia, pulando as barreiras do isolacionismo científico (que existe para efeito de tese) e ignorando a litania da boa intenção. Armado não mais com o rústico e selvagem 38, mas com o cintilante e eficiente dinheiro. Sobre esta nova fase, silenciosa como um vírus, fala-se pouco. Talvez porque, agora, de pouco valor seja apenas falar. É preciso fazer. Se os antropólogos acham que isso é pouco científico, os índios não acham. E é eles o que, nessa história, interessa.

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