VOLTAR

O caminho da degradação nas águas da Baía

O Globo, O País, p. 3
11 de Nov de 2007

O caminho da degradação nas águas da Baía
Livro conta como agressão, iniciada com desmatamento e caça às baleias, deságua num mar de esgoto e lixo industrial

Tulio Brandão

O poeta inglês Richard Flecknoe não resistiu, ao entrar na Baía de Guanabara, em 1655: "Deparamos com a mais sedutora paisagem do mundo: um lago, com umas 20 milhas de extensão, todo salpicado de ilhas verdejantes de diversos tamanhos". Hoje, longe do olhar inspirador de poetas, a Baía preocupa apenas aqueles que vivem dela, como o pescador Adherbal Rabello Júnior, de Magé. "Dá até tristeza. Está tudo assoreado, tem lama de uma ponta a outra.

Dos rios, além de esgoto, descem sacolas, garrafas PET, pneus. Em volta, vemos apenas indústrias e favelas."
O tortuoso caminho do paraíso ao inferno, percorrido em nome do progresso, é contado no livro "Baía de Guanabara - uma história de agressão ambiental" (Casa da Palavra), de Victor Coelho, lançado na última quinta-feira. O autor, profundo conhecedor das águas da região, lutou por décadas, como diretor da Feema, para combater a poluição. Ele explica o começo de tudo:
- O Rio foi fundado ali. E, desde o início, a par de toda a beleza natural, o homem olhava para a Baía em termos de uso. O problema começou com a extração de pau-brasil, a caça às baleias, o transporte, a agricultura, os aterros... Hoje é melhor ver os seus contornos de cima do Pão de Açúcar.

Matas de pau-brasil foram dizimadas
No século XVI, Estácio de Sá dividiu as margens da Baía em sesmarias e as distribuiu a quem estivesse disposto a explorálas. Era a senha para o início da extração de pau-brasil nos recôncavos e nas ilhas. Nas décadas seguintes, as matas litorâneas foram dizimadas para alimentar engenhos. O professor de história Milton Teixeira conta que os jesuítas queriam proteger o recôncavo - não por consciência ambiental.

- Eles eram donos de muitas áreas no recôncavo e, entre os séculos XVI e XVIII, tentaram proibir que as pessoas retirassem madeira das margens.

Tiveram entreveros com a população por isso - disse ele.

Câmara proibiu lançamento de tripas de baleia
Na seqüência, vieram os engenhos, que descarregavam vinhoto nas águas, e a caça às baleias. A Baía era um enorme criadouro desses cetáceos gigantes. Em 1581, há o primeiro registro de armação baleeira na região, provavelmente onde é hoje a Ponta da Armação, em Niterói. Segundo o mestre em história Pedro Paulo Soares, coordenador do Museu da Vida, da Fiocruz, conta que ali funcionou a Armação de São Domingos até 1826, quando foi incorporada à Fazenda Nacional.

Do animal se retirava o óleo, para iluminação pública e fabricação de cimento; as barbatanas, para a produção de espartilhos; e a carne, para alimentar a população. Em pouco tempo, o crescimento desordenado da atividade fez com que a Câmara baixasse seu primeiro ato para conservar a Baía: passou a ser proibido despejar as infectas tripas e restos de baleia. A multa era de dois mil réis.

Já no século XVII, outros problemas assolavam aquelas águas, como mostra o livro. O esgoto gerado com o crescimento da cidade chega finalmente às águas da Baía, através da primeira vala do Rio, construída na Rua Uruguaiana, para desafogar a poluição. Cem anos mais tarde, os escravos, chamados de tigres, foram usados para descarregar a poluição. Eles levavam os rejeitos humanos em barris até as praias, na região onde é hoje a Praça Quinze.

Alguns autores afirmam que os escravos eram chamados de tigres por afugentarem a população, já que estavam sempre infectados. Outros dizem que o nome foi dado porque a pele deles ficava listrada com o vazamento dos excrementos.

No século XIX, a inglesa City constrói a primeira rede de esgoto do Rio, com elevatórias e estações de tratamento. As obras, no entanto, começam com um atraso de cinco anos - o primeiro da história do saneamento da cidade. Com o aumento do volume de esgoto, as estações passam a não funcionar adequadamente. A empresa sofre punições, como uma multa em 1887, por lançamento de esgoto na Baía "sem desinfecção".

Com o fim do contrato com a City, a então prefeitura do Distrito Federal assume o saneamento. A pasta passa por dois órgãos até chegar, em 1975, à Cedae.

Durante o século XX, a Baía conhece o impacto dos resíduos industriais. Na história, 14 mil indústrias se instalaram na região. A mais importante, segundo o autor, foi a Refinaria Duque de Caxias, inaugurada em 1961, que, durante anos, lançou óleo naquelas águas. Em 2002, a empresa anunciou que seus efluentes estavam dentro dos limites da lei.

O último suspiro veio com o Programa de Despoluição da Baía, que completa 13 anos em 2008. Apesar dos R$ 2 bilhões, nenhuma meta ambiental foi cumprida e todas as fases da obra estão atrasadas. O pescador Adherbal lamenta a sorte:
- Para azar de quem vive nela, o poder público jamais olhou para a Baía, a não ser para instalar indústrias e fábricas em seu entorno e tubulações submersas.

O Globo, 11/11/2007, Rio, p. 24

O conflito dos sem-terra
Governo cria núcleo para conter violência entre os próprios movimentos sociais no campo

Evandro Éboli

O latifúndio improdutivo e os grandes ruralistas já não são os únicos inimigos dos sem-terra. Agora, os assentados da reforma agrária estão brigando entre si, num conflito que põe em pé-de-guerra e de lados opostos os principais movimentos sociais do campo, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf). Os beneficiários da reforma agrária disputam, principalmente, os lotes das áreas desapropriadas pelo governo.

A guerra entre os assentados envolve ainda disputa pelo comando de assentamentos, rixas entre movimentos opostos e denúncias de corrupção na coordenação dessas áreas. São problemas que têm levado à retirada de famílias ameaçadas dos assentamentos, brigas internas e até homicídios.
O conflito agrário entre assentados já preocupa o governo. Há 15 dias, foi criado um grupo de trabalho para encontrar soluções para conter a violência entre eles. Na portaria publicada no Diário Oficial da União, o Ministério do Desenvolvimento Agrário admite que esses rachas têm chegado ao extremo, o assassinato de assentados. "Esses conflitos geram instabilidade nos projetos de assentamento, propiciando situações de animosidade entre os trabalhadores rurais assentados, inclusive com possibilidade de agressões físicas e até homicídios", diz o documento do governo.
A Ouvidoria Agrária Nacional vai coordenar esse grupo. A portaria prevê o "remanejamento de famílias expostas a situações de instabilidade". Foi o que ocorreu no assentamento Terra Vista, em Arataca, na Bahia. O embate ali envolveu MST versus MST. Vinte famílias dissidentes foram obrigadas a deixar o local por discordar da forma de exploração do projeto. O Incra teve que desapropriar outra terra, em Nova Galícia, e acomodar esse grupo. Essas famílias tiveram que deixar suas roças e benfeitorias.

MST ligado a quase todos os conflitos
O ouvidor agrário, Gercino José da Silva Filho, afirma que esses desentendimentos provocam prejuízos para quem tem que deixar tudo para trás. - É uma situação que preocupa muito. Não há recursos, hoje, para essas despesas. Essas pessoas querem garantia de sobrevivência e, até agora, não há como indenizá-las - disse Gercino.
O ouvidor explicou que, com a criação desse grupo, o governo irá destinar recursos para esses gastos.
Gercino afirmou que a família é removida e, até virar assentada novamente, volta à condição de acampada, vivendo embaixo da lona e dependendo de cesta básica. Principal movimento na luta pela reforma agrária, o MST está envolvido em quase todos os conflitos entre assentados.
O presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Manoel José dos Santos, acusa o MST de ser o vilão dessa história. Ele afirmou que o adversário não respeita quem montou primeiro o acampamento próximo da área a ser desapropriada.

- Um grupo chega à área, acampa, reivindica a desapropriação junto ao Incra, que inicia a vistoria. Aí, vem o pessoal do MST e tenta tomar o acampamento desse outro movimento. É um problema muito sério - disse Manoel.

O presidente da Contag citou um exemplo de conflito que ocorre neste momento: a Usina de Catende, em Pernambuco, onde funciona a autogestão de trabalhadores de vários movimentos. Fora desse empreendimento, o MST já ocupou a terra quatro vezes. Hoje, há militantes do MST dentro dessa área.

Nós, dos movimentos sociais, já temos inimigos demais. Não deveríamos brigar entre a gente - afirmou o dirigente da Contag.

A coordenadora de Reforma Agrária da Fetraf, Maria da Graça Amorim, por sua vez, critica o MST e a Contag de investirem contra suas terras. Graça reconhece que há problemas no interior dos assentamentos, e os atribui às dificuldades de relacionamento.

- Nos assentamentos, tem gente de toda natureza, com costumes, crenças e religiões diferentes. Tem gente que briga com o outro porque o porco fuça na roça dele. Porque, em vez de criar bode, cria boi. Não é fácil construir a coletividade - admite Maria da Graça.

A diretora da Fetraf apontou como problema a demora do governo em criar infra-estrutura e condições de plantio para os assentados, que ficam parados, no assentamento, até que essas condições sejam garantidas. Segundo ela, para alguns deles, a vida no acampamento era melhor que a de assentado:
- O governo assenta, mas leva dois anos para instalar a casa e garantir o crédito. Isso tudo gera ociosidade, e mente desocupada é oficina do satanás.

O Globo procurou a direção do MST por intermédio de sua assessoria de imprensa. Foi informado de que seus dirigentes não iriam comentar os conflitos entre assentados nem as críticas da Contag e da Fetraf.

Um dos líderes da bancada ruralista, Abelardo Lupion (DEM-PR), atribui essa disputa entre movimentos a tendências políticas.
- Isso é briga por terra e dinheiro. É preciso impor regras para esse pessoal, que não se mata só entre eles, mas atinge também outras pessoas, que não têm nada a ver com a história - acusou Lupion.

Para o deputado Raul Jungmann (PPS-PE), ex-ministro do Desenvolvimento Agrário do presidente Fernando Henrique (PSDB), a culpa é do governo, que não seleciona devidamente os beneficiários do programa:
- O processo de seleção de famílias foge ao controle. Todo mundo quer terra e acesso ao orçamento público. E essa briga está gerando morte. É preciso harmonizar.

MST intensificou invasões este ano
Deputados da bancada ruralista querem que ministro da Justiça justifique falta de ação da Polícia Federal

Assegurada a reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua posse para novo mandato, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) intensificou as invasões no país em 2007. O balanço da Ouvidoria Agrária Nacional revela que o número de ocupações nos primeiros seis meses - 215 invasões - só foi inferior, nos cinco anos da gestão Lula, ao mesmo período de 2004, quando foram registradas 230. Naquele ano, os sem-terra promoveram o "abril vermelho", mês recorde do volume de ocupações nos 13 anos que a Ouvidoria contabiliza os números. Em abril de 2004, os sem-terra promoveram 109 invasões.

A trégua do MST com Lula começou no segundo semestre de 2006, período da campanha eleitoral. O número de ocupações foi pífio e a Ouvidoria contabilizou apenas 81 invasões entre julho e dezembro do ano passado. Se comparado com o primeiro semestre deste ano, a diferença é de 134 a menos.

Das 215 ocupações ocorridas entre janeiro a junho de 2007, 161 invasões, que representam 75% desse total, foram realizadas pelos militantes, sem-terra e acampados do MST. No mandato do petista, os primeiros semestres registraram os seguintes números de invasões: 117 (2003), 230 (2004), 127 (2005), 185 (2006) e 215 (2007).

Outra demonstração de que as invasões aumentaram este ano é que o volume de ocorrências nos meses de janeiro (35 invasões), fevereiro (33 invasões) e junho (21 invasões) foi superior a esses mesmos períodos nos outros quatro anos. Março apresentou o segundo maior registro, com 27 ocupações, e abril, com 74 invasões, é inferior apenas ao "abril vermelho".

Os relatórios da Ouvidoria Agrária, vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, com o balanço das ocupações, não eram divulgados há sete meses. O ouvidor agrário, Gercino José da Silva, disse que a greve dos servidores do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), ocorrida no meio do ano, impediu a apuração e confirmação das invasões.

Irritados com o volume de invasões ocorridas este ano, os deputados da bancada ruralista decidiram convocar o ministro da Justiça, Tarso Genro, para que justifique suposta falta de ação da Polícia Federal nas ações do MST. A assessoria parlamentar do ministro e os deputados da base do governo que integram a Comissão de Agricultura da Câmara, um espaço ocupado majoritariamente por ruralistas, não conseguiram evitar a aprovação de sua convocação. Tarso chegou a convidar esses grupo para uma audiência no ministério.

- Eu não vou. Não sou menino de recado do ministro. Ele que venha aqui dar, em público, as explicações devidas - reagiu o deputado Ronaldo Caiado (DEM-GO), autor do requerimento de convocação de Tarso Genro, que está obrigado a comparecer ainda este mês à audiência com os parlamentares.

Autor do Plano Nacional de Combate à Violência no Campo, o ouvidor agrário afirma que o padrão de violência está diminuindo. Ele diz que o Estado está mais presente nas regiões de conflito e cita como exemplo a criação de varas agrárias federais e estaduais, promotorias agrárias e delegacias e ouvidorias agrárias regionais.

A Ouvidoria registrou 34 mortes no campo no primeiro semestre, mas 19 delas ainda estão sendo investigadas e 15 foram não-decorrentes de conflito agrário, ou seja, não foram na luta pela terra ou em confronto entre policiais ou jagunços contra os sem-erra.

O Globo, 11/11/2007, O País, p. 3

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.