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"O calo na pele que foi tantas vezes esfolada serve para alguma coisa. Ele também protege", aponta quilombola

Terra de Direitos - https://terradedireitos.org.br/noticias
25 de Jul de 2019

"O calo na pele que foi tantas vezes esfolada serve para alguma coisa. Ele também protege", aponta quilombola
Reunidas em Castro (PR), mulheres quilombolas relatam como o desempenho de múltiplos papéis e as opressões sociais as tornaram fortes e sábias.

Lizely Borges

Foi a mãe de Dona Marilene que falou à parteira da Comunidade Quilombola Serra do Apon, localizada próxima de Castro (PR), que ensinasse à menina o ofício de "pegar menino". "Ensina alguma coisa para a Marilene", disse a mãe. Ainda criança, Marilene acompanhava a já senhora parteira nas idas às casas das mulheres que carregavam bebês nos ventres. Escutava sobre uso de chás, remédios caseiros, posições mais confortáveis, rezas e preces cantaroladas. "Na minha comunidade todo mundo procurava ela, ela pegou menino até os 95 anos", relata a Dona Marilene a uma roda de mulheres atenta a fala baixinha da senhora de 100 anos, completos dois dias antes do I Encontro de Mulheres Quilombolas, realizado no mesmo município, no dia 21 de julho.

Marilene da Silva Maciel amparou mulheres da comunidade e foi, sozinha, a responsável pelo parto dos seus nove filhos. Avó de 51 netos, ela alimenta a esperança de que alguma neta assuma a tarefa que lhe marcou tão profundamente - com alegrias e dissabores. "Desconfio que tem uma [neta] que quer aprender", diz. Em paralelo à memória ativa sobre cada criança, mãe e família que acompanhou, ela carrega a tristeza de ser ignorada pelos adultos a quem ajudou a trazer para este mundo. "Ela passa por mim e me dá toco", lamenta Dona Marilene em referência à uma mulher que não a cumprimenta na Comunidade. Relata também mágoa por ser chamada, em outras ocasiões, como "nega metida", "baguá". Os conhecimentos ancestrais que durante muito tempo foram objeto de interesse e cuidado foram invertidos, aos olhos enviesados: de riqueza se tornaram ofensa dirigida à anciã.

"Percebi neste encontro que há uma memória de dor, de abafamento dos saberes ancestrais, de perseguição e isso gera uma esfera de muito medo. Antes de chegar no resgate de manutenção e valorização das parteiras, a gente precisa fazer uma limpeza nesta referência que traz medo e desvalorização", relata a parteira aprendiz da tradição, Raquel Messias de Camargo.

O percurso para valorização do ofício de parteira caminha lado a lado com o resgate da história das comunidades quilombolas. Guardiã de memórias, a parteira sabe, em profundidade, dos vínculos, da composição das famílias, da relação dos sujeitos com o território. Isto porque a relação entre as mulheres não ocorre apenas no parto - a parteira conhece as mulheres da comunidade, frequenta suas casas, media conflitos e estreita esta relação no momento da gestação e no pós parto.

De acordo com Raquel, integrante da Escola de Saberes, Cultura e Tradição Ancestral (ESCTA) o ofício surgido desde que a primeira mulher pariu, dialoga nestes tempos mais modernos, com os saberes da medicina ocidental. "Temos o acompanhamento do pré-natal na tradição, mas não se dispensa no posto de saúde, os exames. A gente hoje não precisa ser uma coisa ou outra, pode somar, mas quais valores a gente entende pro momento do nascimento, que é único?", pontua. É assentado sobre o respeito do corpo da mulher, das suas vontades e do tempo do nascimento, assim como do cuidado coletivo com o resguardo da mulher, que a parteira atua. De um conhecimento que teve acesso pelo relatos orais das mães, avós, antepassadas.

Saber sobre a terra
Com o pai que desde cedo a Vani Rodrigues da Silva, a Dona Vani, aprendeu sobre o valor das sementes. Conterrânea de Dona Marilene, a senhora de 74 anos "não gosta do serviço de casa". Ela diz preferir a lida com a terra.

Nomeada de guardiã das sementes ela credita o termo ao fato de ser "a mais velha". "O povo quer saber as coisas comigo, daí eu conto. Eu sei das coisa porque me criei lidando com a semente desde criança, conheço o nome das sementes. Tem semente nova que não conheço, mas as antigas eu conheço tudo", diz.

É na sequência da conversa que a gente entendo o porquê do título ser concedido a Dona Vani. "O que a gente planta pode comer sossegado", diz sobre a mandioca, a batata doce, o milho, o feijão, a verdura e outros tantos alimentos presentes na hora vizinha à sua casa. "Eu vou lá no mato, junto as coisas de árvore e levo tudo os ciscos pra horta". O cisco (gravetos, grama, etc), as folhas secas e as sementes nativas fazem parte de uma prática agroecológica que dispensa venenos e produtos geneticamente modificados. "O que faz mal é essas coisas que compra no mercado, que tem veneno, tem tudo. A nossa [plantação] não tem nada de veneno", diz.

A relação diária com a terra só não é ainda melhor porque o pedaço de chão para cada família é pequeno, diz Dona Vani. "A terra foi tomada, não tem nem lugar pra plantar uma lavoura que preste, daí sobrou bem pouco que não dá. Se a gente plantar toda hora a terra enfraquece e não dá mais nada". Herdeiros de trabalhadores escravizados da Fazenda Capão Alto, as 50 famílias residentes na comunidade, algumas instaladas em casas de piso de terra batida e de tijolos feitos da mistura de argila, água e areia, aguardam a publicação da portaria de reconhecimento do território quilombola.

Mulheres que organizam o território
Em processo da titulação da área mais avançado do que a Serra do Apon, as 56 famílias da Comunidade Quilombola João Surá, localizada no Vale do Ribeira (PR), aguardam a publicação do decreto de desapropriação - etapa em que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) inicia o procedimento de desapropriação de imóveis privados que estejam dentro do território da comunidade.

Mesmo diante do mais alto representante do Executivo, que no discurso "nenhum palmo de terra para quilombolas" e na prática mostra-se oponente à garantir o que é de direito das comunidades, as mulheres quilombolas de João Surá seguem adiante, no esforço diário em garantir a vida no território. "As mulheres estão ali, no dia a dia produzindo alimento pra subsistência e para comercializar. Parte é professora da comunidade", diz a jovem Carla Fernanda Galvão Ferreira.

Com o trabalho dos homens na lida nas fazendas fora da comunidade ou no Parque Estadual das Lauráceas, tem sido as mulheres que pensam a comunidade e organizam o território. "Nos últimos anos a gente tem percebido que as mulheres tem tomado mais este espaço de organicidade da comunidade - mais a frente na igreja, na associação, na tarefa de ir pra fora e buscar recursos para comunidade", conta Carla. Presidem a associação, são maioria nas reuniões e as que batem à porta do prefeito quando reivindicam um médico ou uma escola.

"Essas mulheres cuidam da comunidade toda, de todos, dos filhos, dos netos, dos sobrinhos. Cuidam de pessoas com deficiência e muito bem. Elas plantam o que a gente come, colhem, trabalham fora, estudam. Se tem uma coisa que mulheres quilombolas são é que são fortes porque aprendem a sobreviver dia a dia", diz a estudante em direito, Isabela da Cruz. Ela, uma liderança e integrante da Comunidade Paiol de Telha - a primeira do Paraná a ter o título parcial da território - relata a conjugação de um cotidiano de mulheres que contempla a roça, a lida, os estudos, a maternagem, a denúncia e não aceitação das violências e a resistência, em primeiro lugar.

"A sociedade nos obrigada a sermos múltiplas. Uma mulher quilombola não pode se dar ao luxo de não saber se defender, por exemplo. São diversas ameaças que se dão a todo momento, o dia todo, e isso nos torna mais forte. Isso não é pra ser romântico ou bonito, mas nos torna mais fortes. O calo serve para alguém coisa, não é só pra dizer sobre o tanto de trabalho, ele serve pra proteger a pele de tanto ser esfolada. Ainda assim, a gente resiste, faz festa, faz encontros bonitos como este".

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