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O cacique consternado

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29 de Abr de 2019

Em setembro do ano passado, André desapareceu. Ele saíra para uma caçada no mato com os parentes, quando decidiu por conta própria averiguar a presença de invasores na terra Karipuna. Não voltou mais.

Sabendo da entrada de madeireiros no território indígena, logo pensou-se o pior: o cacique havia topado com invasores. Chefe da Aldeia Panorama, a única restante do povo Karipuna, André já havia sofrido ameaças por denunciar a extração ilegal de madeira e a grilagem dentro da terra indígena.

Por dias, seus primos o procuram pelas matas que bordeiam o rio Jaci Paraná. Voltavam para casa de noite, sem novidades. A mãe do cacique, Katsiká, uma senhora sempre falante e sorridente, ficava desconsolada . Seu outro filho, Adriano, também uma liderança entre os Karipuna, havia apenas três meses denunciado na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, o risco iminente de um ataque aos indígenas.

No fim da tarde do terceiro dia, André foi encontrado. Estava cambaleante em uma barranca do rio depois de ter andado dentro da mata por 72 horas, sem qualquer comida. O que havia passado, fora mesmo um caso de desorientação. A paisagem de árvores tombadas confundiu o cacique que não achou mais o caminho por onde tinha vindo. Preocupado com um encontro cara-a-cara com madeireiros, fez inúmeros desvios tentando chegar em casa.

Quando André nos recebeu em fevereiro na Aldeia Panorama, ele nos contou sobre o episódio sem muito drama. Para um rapaz de 26 anos, o cacique carrega um semblante sério, de poucos sorrisos. A carga de ser o chefe da aldeia parece pesar. "Eu já não tenho a minha paz", ele contou. As ameaças começaram exatamente quando ele se tornou cacique, há apenas um ano. "Pensei em desistir, ir embora daqui. Mas pensei na minha mãe, na minha família".

Nos dias de nossa visita ao território Karipuna, saímos em uma longa caminhada com André para verificar se havia novos desmatamentos dentro da reserva. A jornada de oito quilômetros em meio a mata fechada foi aos poucos desembocando em pequenas clareiras com marcações nas árvores; antigos acampamentos de invasores.

Na beira de um rio encontramos mudas de café plantadas há pouco tempo. A última vez que André andou por ali havia sido em setembro. Cruzamos o igarapé e passamos a andar numa trilha aberta pelos próprios invasores. Apenas poucos quilômetros percorridos, ouvimos um barulho intermitente de máquina. Parecia uma motosserra. A tensão se instalou e mesmo sem saber a que distância estávamos dos possíveis madeireiros, passamos a nos comunicar por sinais, para não fazer barulho.

Quando chegamos ao fim da trilha, nos deparamos com uma grande área desmatada. Não havia sinal visível de atividade. Mas o barulho seguia. Agora, mais próximos, podíamos notar tratar-se de um caminhão ou trator. Era um skid, uma máquina utilizada para desmatar e abrir estradas, garantiu o cacique.

Isso apenas confirmava o que ele já sabia: que os madeireiros estavam abrindo mais uma estrada para entrar na Terra Indígena e já estavam bem no centro do território de 152 mil hectares. No dia seguinte, de volta à Aldeia Panorama, André contou a sua mãe, Katsiká, o que havia visto. Consternada, ela murmurou: "Nunca a nossa terra foi tão pequena."

O menino cacique e o tio guerreiro
Bahira será cacique. Ninguém sabe quando, mas como um pequeno príncipe, seu futuro é certo: ele já foi escolhido para chefiar a aldeia. Hoje, seu pai, Taroba, é o cacique.

Bahira é o caçula de quatro filhos. Na Aldeia Alto Jamari, além dos pais, vivem sua avó, suas três irmãs, tios, tias, primos, primas e um sobrinho, Thalison, um bebê de um ano que vive pendurando-se carinhosamente nas pernas dos adultos.

Bahira tem 11 anos e na aldeia é ele quem pesca. No igarapé de água leitosa que margeia as seis casas de madeira existem piabas. Não só isso: ele pastoreia os seis bois que possuem os índios. Logo cedo, todos os dias, ele ordenha as vacas para trazer leite para seus parentes.

O futuro cacique vai à escola, construída bem na aldeia, ao lado de um posto de saúde. Ele é o único menino de sua idade. Embora em outras aldeias dos Uru-Eu-Wau-Wau existam outros garotos de sua idade, eles estão a quilômetros de distância.

Seis aldeias Uru-Eu-Wau-Wau estão espalhadas em um território de 1,8 milhão de hectares. Há também três aldeias de indígenas da etnia Amondawa, além de três grupos de índios isolados.

O amigo mais próximo de Bahira parece ser o tio Awapu. Aos 28 anos, como um grande menino, ele faz piadas e provocações com o futuro cacique. Brincalhão, o tio muda de tom quando fala de ameaças. Awapu foi 'alertado' quando confiscou uma moto de um invasor dentro da terra indígena. Um dia, de um proprietário vizinho ao território, ouviu: "É bom você parar com estas coisas, pois isso vai te dar problema".

Segundo o tio de Bahira, o conselho que sempre escutam é "não se metam com os invasores, apenas busquem a polícia". E de fato, eles o fizeram. Não são poucos os delegados da Polícia Federal que compartilham seus números de WhatsApp com os líderes indígenas.

Mas de uma denuncia a uma ação efetiva de combate a invasores, parece haver um longo caminho. Os indígenas esperam ações de repressão, mas elas demoram a chegar. Por isso, Awapu e outras lideranças jovens estão quase sempre organizando rondas e missões a áreas historicamente cobiçadas por invasores.

Em fevereiro de 2017, junto com seu irmão, o cacique Taroba, e outros indígenas Uru-Eu-Wau-Wau, ele surpreendeu dois homens em uma cabana construída em uma área recém desmatada, a apenas alguns quilômetros da aldeia Alto Jamari.

Eles amarraram os invasores e exigiram informações sobre quem os tinha enviado. Em vídeo gravado no dia, os dois homens afirmam que estavam ali de boa fé, pois lhes tinham dito que os "lotes" eram documentados, poderiam ser ocupados.

Em fevereiro, quando visitamos a Alto Jamari, Awapu nos levou em nova ronda ao local onde há 2 anos há 2 anos encontraram o acampamento de posseiros, na parte norte da terra protegida. Na trilha, o indígena rapidamente notou vestígios de uma entrada recente. Além dos galhos frescos cortados a facão, havia garrafas de água, latas de cerveja e galões vazios de óleo de motosserra.

O caminho seguia uma picada nova que já se aproximava do rio Floresta, o mesmo que cruza a aldeia. Na beira do rio, eles viram também que, quem quer que fosse que havia entrado ali, jogara sal no barreiro das antas. Uma forma de atrair o mamífero e outra caça qualquer.

De volta à aldeia, Awapu contou à família o que tinha visto em nossa caminhada. "Eles estão indo cada vez mais longe", pontuou depois de mostrar, em seu celular, as fotos da picada aberta.

Bahira, o futuro cacique, acompanhou a conversa ao nosso lado. Calado.

O cerco

As invasões nos territórios indígenas em Rondônia não são algo novo. Povos que permaneceram em isolamento até os anos 1970, os Karipuna e os Uru-eu-Wau-Wau vivem desde então em constante disputa para manter sua terra protegida.

Ambas as reservas seguem questionadas, embora já reconhecidas e homologadas por decretos presidenciais. Em nível local, proprietários rurais disputam os limites da terra dos índios argumentando, com base em documentos antigos (ou falsos), que há erros de demarcação. Em uma esfera mais alta, prefeitos, deputados e até senadores defendem propostas de redução dos territórios. Em comum, estes dois grupos apoiam-se no discurso de que existe "muita terra para pouco índio".

Dados de organizações da igreja católica que desde os anos 1980 monitoram os episódios de violência no campo, como assassinatos de lideranças e ameaças a comunidades, revelam o recrudescimento desta briga.

De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), desde 2016, foram registrados oito episódios de invasão para roubo de madeira e abertura de novas áreas dentro do território indígena Karipuna. No caso dos Uru-Eu-Wau-Wau, existem quatro ocorrências de ataques registradas desde 2012.

Outra fonte de informação, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) incluiu em sua base de dados o registro de uma ameaça feita a Adriano Karipuna, o irmão de André e antigo cacique. Ele recebeu em 2017 ligações anônimas com ameaças de morte. Em abril do ano seguinte, durante a 17ª Sessão do Fórum Permanente sobre Assuntos Indígenas na sede da ONU em Nova York ele denunciou: "Nosso povo foi reduzido a cinco pessoas. Hoje somos 58, com a terra homologada desde 1998. Mas madeireiros, garimpeiros, fazendeiros e grileiros agem de forma incansável. O governo brasileiro não protege o território."

As evidências desta hostilidade contra os índios também se traduzem em desmatamento. Uma análise utilizando os dados do Programa de Monitoramento por Satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Prodes- INPE) indica derrubadas crescentes dentro e no entorno dos territórios. Os último levantamento disponível (de agosto de 2017 a julho de 2018) revela ser este o período com mais alto desmatamento dentro das terras Karipuna e Uru-Eu-Wau-Wau nos últimos dez anos - 460 hectares e 690 hectares respectivamente.

Um hectare equivale aproximadamente a um campo de futebol.

Ampliando-se a análise a um perímetro de 10 km ao redor dos territórios a pressão se torna mais visível. Desde 2008, foram cerca de 8.400 hectares desmatados no entorno da terra indígena Karipuna e 3.060 hectares ao redor da Uru-Eu-Wau-Wau. Nos últimos três anos, ocorreram as maiores extensões de desmatamento na faixa de 10 quilômetros ao redor das duas terras indígenas: em 2016, foram 1460 hectares; em 2017, 1.660 hectares; e, em 2018, 1.430 hectares.

Um dos exemplos recentes da constante disputa pelas terras indígenas é a presença de propriedades sobrepostas aos limites ou mesmo dentro das reservas. O Cadastro Ambiental Rural (CAR) é o instrumento de regularização fundiária criado pelo governo brasileiro após a aprovação do novo Código Florestal em 2012. A extensão da propriedade, bem como suas áreas de preservação permanente, são autodeclaradas.

Dados levantados pela reportagem mostram que existem 325 propriedades rurais declaradas dentro do território Uru-Eu-Wau-Wau. Além disso, 812 imóveis rurais têm intersecção com ambos os territórios indígenas.

Para combater o avanço do desmatamento, o Ibama (a agência ambiental brasileira) aplica multas e abre processos de embargo às propriedades onde se infringiu a lei ambiental. De 10.996 autuações ambientais registradas no estado de Rondônia (atualizadas até 15 de novembro de 2018), 1.073 estão a um raio de 10km de uma das reservas e 475 estão num raio de 3km.

No caso do Uru-Eu-Wau-Wau. chama atenção o fato de que das 21 áreas embargadas dentro do território, mais da metade das sanções (14) foi aplicada após 2015. Uma atuação deste período - Auto de Infração 6.944, de 16 de maio de 2017 - serve como exemplo do tipo de crime ambiental que é praticado pelos invasores nas terras indígenas.

A multa de R$ 414 mil reais (~100 mil dólares) detalha que se deve ao ato de "danificar 68,7342 hectares de florestas nativa objeto de especial preservação, não passíveis de autorização para exploração ou supressão, na área de reserva indígena Uru Eu Wau Wau, com a exploração madeireira."

Estes fatos apontam o padrão que se repete na história de Rondônia: o roubo de madeira e o desmatamento ilegal funcionando como táticas de grilagem de terras. Uma vez desmatadas, as terras se tornam mais valorizadas e por isso loteadas e vendidas. A partir daí se instalam litigâncias para a solução do caos fundiário e, não raro, os invasores recebem o apoio dos políticos locais e de seus representantes em Brasília (DF).

Em uma entrevista em Porto Velho (capital do estado), a procuradora Gisele Bleggi, do Ministério Público Federal em Rondônia, afirmou que existem evidências de que quadrilhas realizam a grilagem sistemática de terras indígenas no estado. Sem revelar nomes, ela diz que pessoas foram identificadas agindo para tomar terras em várias áreas pertencentes aos índios . Há ainda casos de grupos de invasores que partilham o mesmo advogado. "O que podemos dizer é que não se tratam de pessoas humildes em busca de terra", revelou.

O episódio mais recente de invasão na terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau ocorreu no dia 12 de janeiro de 2019. Em um vídeo gravado por moradores da aldeia Linha 623, um grupo de homens aparece em uma picada aberta dentro dos limites a leste da terra indígena. Bem na entrada deste trecho de mata, existe uma placa de metal do órgão responsável pelo cuidado aos indígenas no Brasil, a Fundação Nacional do Índio (Funai). A placa, que informa ser ali o início da terra protegida, está crivada de balas.

Juruna, um dos líderes da etnia, acompanhado de apenas mais três pessoas da aldeia, confrontou os invasores. "Aqui não pode não. Aqui nós não vamos deixar", ele diz com arco e flecha nas mãos. Seu interlocutor no vídeo afirma que as pessoas que estão ali "querem terra" e pergunta qual seria a solução. Ao ouvir Juruna repetir que na terra indígena não podiam entrar, o homem magro e barba branca ameaça: "Hoje somos nós aqui, amanhã serão mais de 200, vocês podem esperar".

O líder Uru-Eu-Wau-Wau reconheceu aquele que liderava o grupo: um vizinho de pelo menos três décadas, morador da mesma Linha 623 (estrada que corta assentamentos). Fontes mencionaram que, embora as invasões fossem frequentes no passado, a grande diferença está no fato de que os vizinhos das terras indígenas passaram a apoiar a organização de invasões.

Naquele mesmo janeiro, um episódio similar ocorreu na terra indígena Karipuna. No dia 20 do mês, dois moradores da aldeia Panorama viajavam para um tratamento agentes de saúde do governo federal quando encontraram 20 pessoas dentro do território protegido, em uma área conhecida como Piquiá, que fica a apenas 8 km da aldeia. Os invasores haviam ocupado um posto de vigilância da FUNAI e se recusaram a sair do território. Desde então, os indígenas deixaram de usar a estrada que dá acesso à terra Karipuna.

Tanto os indígenas como seus defensores nas ONGs e nos órgãos públicos de proteção dos índios identificam a crescente ameaça aos territórios com o discurso inflamado do novo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Durante a campanha eleitoral, uma de suas promessas foi a interrupção dos processos para a demarcação de novas terras indígenas, além da revisão das já existentes. Vitorioso, o governante vem anunciando medidas que enfraquecem ainda mais a Funai, transferindo os poderes de demarcação de terras indígenas, antes pertencentes ao Ministério da Justiça, para o Ministério da Agricultura.

A promissora Rondônia

O marechal Cândido Rondon (1865-1958) talvez não imaginasse que um século depois de suas expedição às matas dos rios Guaporé, Mamoré e Madeira, a terra que hoje leva seu nome se transformaria em um experimento econômico com manchas de genocídio.

Ele mesmo um descendente de indígenas, tornou-se o criador do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em 1910, que anos mais tarde daria origem à atual instituição do governo brasileiro para as questões indígenas, a FUNAI. Após as expedições no fim do século 19 para a instalação de linhas de telégrafo e reconhecimento de territórios brasileiros fronteiriços à Bolívia, o militar dedicou-se ao extremo oeste brasileiro com o intento de contatar tribos isoladas.

Hoje Rondônia é o único estado brasileiro que homenageia um personagem da História. O território de 'índios bravos', no entanto, se tornou rapidamente a 'porta de entrada da Amazônia' quando o governo de Juscelino Kubitschek iniciou a construção da rodovia BR-364 ainda nos 60. As linhas de telégrafo de Rondon deitaram o caminho que seria seguido para abertura da estrada. Este foi o principal eixo de ocupação do oeste da Amazônia brasileira durante os anos 1970, quando a política de colônia agrícolas foi impulsionada pelo recém instalado governo militar e por seu novo órgão encarregado de distribuir terras, o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

A chegada dos colonos significou o contato com diversas etnias, entre elas muitas de grupos de "Tupi-centrais", ou Kawahib, como os Piripkura, os Karipuna e os Uru-Eu-wau-wau. Hoje, estas etnias têm um fato em comum: estão reduzidas a algumas centenas de pessoas. Entre os Uru-Eu, que também são conhecidos como Jupaú, ou "bocas negras", estima-se uma população de 85 indígenas. Já os Karipuna, que também em algum momento foram conhecidos como bocas negra, por usarem as mesmas tatuagens de jenipapo ao redor dos lábios, tiveram uma redução mais drástica. Hoje, apenas 58 habitam uma única aldeia no rio Jaci Paraná.

Os grupos Kawahib (ou Cauaíbe) ocuparam a bacia do rio Madeira e seus afluentes no século XIX e passaram, ainda que de forma involuntária, a proteger terras de grande importância ambiental. Eles estão em uma zona de transição entre o Amazônia e o Cerrado, onde a vegetação densa mistura-se a gramíneas e árvores mais baixas. Porém, a característica ambiental mais importante é o relevo montanhoso que abriga as nascentes de todos os rios mais vitais ao estado de Rondônia. Alguns, os maiores afluentes de três importantes sub-bacias amazônicas, do Madeira, Guaporé e Mamoré.

Os antropólogos e sertanistas que participavam do contato nos anos 70, sabiam da existência de um ciclo de ataques e contra ataques entre os índios e os seringueiros. Por isso, quando se anunciou a chegada dos colonos, solicitaram, através da FUNAI, a interdição das áreas a oeste de Rondônia, por onde perambulavam os Uru-Eu-Wau-Wau e os Karipuna.

Naquele momento, o ciclo de ocupação da Amazônia promovido pelos militares e a criação das colônias agrícolas caminhava a todo vapor. Hoje dos 52 municípios de Rondônia, 48 surgiram a partir de assentamentos agrícolas.

A homologação dos territórios indígenas apenas ocorreu nos anos 90, através de decretos dos presidente Fernando Collor de Mello, no caso dos Uru-Eu-Wau-Wau em 1991, e de Fernando Henrique Cardoso, em 1998 no caso do Karipuna. No intervalo de 20 anos - entre o pedido de interdição e a efetiva demarcação dos territórios, a disputa entre colonos e indígenas pela terra já havia se aprofundado. Ela segue até hoje.

"Passados 47 anos (da criação de colônias agrícolas), estamos vivendo problemas que poderiam ter sido resolvidos, e a coisa foi se acomodando e acomodando por se tratar de terra indígena", disse o antigo superintendente do INCRA em Rondônia, Cletho Muniz Britto, ao criticar a FUNAI em uma audiência pública no dia 27 de março de 2018 realizada pela Comissão de Agricultura do Senado Federal. A sessão foi convocada pelo ex-governador do estado, o senador Ivo Cassol, para debater a situação fundiária conflituosa entre os assentados e os indígenas Uru-Eu-Wau-Wau.

O entendimento do INCRA é que o próprio governo errou ao demarcar a terra indígena em área que já havia sido decretada como assentamento da reforma agrária. Em 1975, um decreto (75.281) desapropriou milhares de hectares pertencentes a oito seringais existentes na área, somando um total de 533,9 mil hectares. Parte deste território foi destinado ao Projeto de Assentamento Dirigido (PAD) Burareiro, onde foram assentadas 1500 famílias.

A FUNAI, no entanto, apoiando os pedidos de seus antropólogos e sertanistas, que testemunhavam a morte dos indígenas por doenças e conflitos, decidiu pela criação da terra através de uma portaria (508) em 1978, três anos depois que os assentamentos do INCRA tinham sido criados. Mas documentos do órgão provam que a interdição da mesma área destinada a assentamentos já havia sido interditada em 1974. Portanto, antes do INCRA criar Burareiro.

Assim, 105 famílias foram afetadas pela sobreposição com a terra indígena. O litígio em torno desta área abriu uma frente de invasão. O INCRA em desacordo com a FUNAI, seguiu emitindo títulos para lotes dentro da Terra Indígena. Basta comparar os dados dos antigos lotes criados, com os pedidos de Cadastro Ambiental Rural e o atual desmatamento ao norte da terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau para notar a similitude dos polígonos.

Na sessão liderada pelo senador Ivo Cassol em março de 2018, o advogado Ermogenes Jacinto de Souza, representante de assentados do município do Jorge Teixeira, apresentou um requerimento para o desmembramento de uma área de 52 mil hectares da área indígena. "Se você for fazer uma comparação, de seiscentos e poucos índios, ou que haja mil índios, para 2 milhões de hectares, dariam 2 mil hectares para cada índio", disse enquanto apresentava o argumento pela redução.

Este mesmo pedido parece ter sido endossado um mês antes pelo deputado federal Lúcio Mosquini do MDB de Rondônia através do Ofício 110 de seu gabinete, enviado no dia 15 de fevereiro de 2018 ao presidente da FUNAI. No documento, o parlamentar requer uma posição do órgão indigenista sobre a possibilidade de redução de 52,600 mil hectares da terra Uru-Eu-Wau-Wau. Um mês depois, na audiência pública ele defendeu seu ponto de vista: "A Funai deveria flexibilizar a área antropizada (na terra indígena)."

Quando estávamos em Rondônia, na cidade de Jaru, reduto eleitoral de Mosquini, pedimos aos seus assessores uma entrevista com o deputado. Ele não pode nos atender. Mas o assessor parlamentar Sigmar Rodrigues Nunes afirmou em uma conversa por telefone que não existe por parte do parlamentar até o momento uma proposição legislativa para a redução da reserva indígena.

No Congresso os senadores cobraram o presidente da FUNAI, o general Franklimberg Ribeiro de Freitas, sobre a demora do órgão em solucionar conflitos com colonos. Na época ainda sob o governo do presidente Michel Temer, ele afirmou que o órgão seria incapaz de rever os limites criados por um decreto presidencial. Pela constituição, terras indígenas homologadas pelo presidente só podem ser revistas com projeto de lei aprovado no Congresso Nacional.

Recentemente, Freitas foi reconduzido, por Jair Bolsonaro à presidência da FUNAI.

Na linha de frente

Depois de 35 anos vivendo em Rondônia, o frei Volmir Bavaresco ainda mantém o sotaque de gaúcho. Pouco afeito à conversa fiada, o dominicano de longa barba e compridos cabelos grisalhos é o coordenador regional do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) em Rondônia. Depois de anos trabalhando em outras frentes do estado, ele abraçou a defesa dos Karipuna. Desde 2016, coordena ações com os indígenas desta etnia.

"Nossa percepção é de que se cair a Karipuna, cai toda a proteção a terras indígenas em Rondônia, quem sabe no Brasil", ele alerta. O CIMI, organização da igreja católica fundada em 1972, está desde seu início na linha de frente dos conflitos com índios gerados pela colonização da Amazônia.

Além da organização católica, o Greenpeace está ajudando os indígenas. Através de um projeto chamado "Todos os Olhos na Amazônia" tem monitorado novos desmatamentos na terra indígena através de sobrevoos e imagens de satélite.

A iniciativa de pedir ajuda ao CIMI e ao Greenpeace partiu do próprio povo indígena. Segundo o cacique André, a solicitação surgiu no momento em que eles, os Karipuna, se sentiram mais isolados, sem mesmo o apoio da FUNAI. Na percepção do líder Karipuna nos anos recentes, o órgão federal abandonou os índios. Nos últimos cinco anos, o orçamento do fundação caiu de cerca de 757 milhões de reais (200 milhões de dólares) para 597 milhões de reais (157 milhões de dólares).

Embora também originado pelo conflito com antigos assentamentos, a ameaça aos Karipuna é distinta dos Uru-Eu-Wau-Wau. As invasões ao longo dos anos têm ocorrido para a retirada de madeira e, por essa razão, a abertura de estradas ilegais dentro do território.

A frente de destruição se concentra a oeste da terra indígena, no distrito de União Bandeirantes. Originalmente uma zona dedicada ao manejo madeireiro sustentável, União Bandeirantes teve 10 serrarias licenciadas no início de sua ocupação, no começo dos anos 2000. Mas o que prevaleceu foi a exploração ilegal. Madeiras retiradas da terra Karipuna passaram a abastecer as serraria vizinhas.

A forma e o teor dos planos de manejo autorizados pelo governo do estado de Rondônia não são acessíveis ao público. Contatada, a Secretaria de Desenvolvimento Ambiental (SEDAM) do estado afirmou que os dados referentes às autorizações não poderiam ser enviados.

O Ministério Público Federal, no entanto, pediu em Ação Civil Pública de julho de 2018 uma auditoria nos planos de manejo em funcionamento no entorno da Terra Indígena Karipuna. Até o fechamento desta reportagem, nem mesmos os procuradores tinham recebido os dados sobre os planos de manejo de União Bandeirantes.

Uma outra preocupação é o surgimento de pleitos sobre a terra Karipuna. É possível encontrar na internet, uma série de vídeos em que o representante da empresa de engenharia Amazon Gel, Ediney Holanda Santos, em encontros com produtores rurais de União Bandeirantes, detalha procedimentos para a obtenção de documentos para a posse de terra dentro da terra indígena.

Segundo ele, se trata de "algo grande" que tem gente grande por trás. "O pessoal que critica não sabe as autoridades que estão do nosso lado", diz. E ainda alerta a audiência que os grupos de WhatsApp de Bandeirante devem ser mais discretos. "Eu vejo o cara postando foto de tora de madeira, o cara nem sabe que está sendo monitorado pela Polícia Federal". Veja o vídeo.

Apesar de participar em reuniões como principal representante da empresa, Ediney não figura como sócio. Uma busca pelo registro da Amazon Gel na Secretaria da Fazenda de Rondônia revela que a empresa com CNPJ 26.244.487/0001-41 funciona com apenas um sócio, em nome da microempreendedora individual Cristiane Gomes da Silva.

Habilitada para fazer serviços de engenharia civil, não há no registro autorização da Amazon Gel para serviços de topografia, agrimensura e georreferenciamento por satélites. Estas são geralmente as capacidades requeridas para a regularização de terras.

A venda ou a facilitação de terras dentro de territórios indígenas é uma atividade comum em Rondônia. Em Ariquemes, terceira maior cidade do estado, encontramos Nelson Bispo dos Santos. Baiano de nascença, mineiro de criação, ele está há três décadas na terra de Rondon. Em 2017, ele e outras 19 pessoas foram presas em na Operação Jurerei da Polícia Federal que investigou a venda de lotes dentro da terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau.

Segundo as investigações, Santos, através da organização que coordenava, a Associação dos Produtores Rurais da Comunidade Curupira, estava incentivando a invasão da terra protegida. Uma das provas foi encontrada no celular de posseiros apreendidos pelos índios dentro da reserva em 2017. Em um vídeo filmado em janeiro daquele mesmo, Santos aparece em um discurso exortando a que proprietários rurais a "tomarem e cuidarem dos seus lotes".

À espera de uma sentença, ele vive em um bairro residencial de Ariquemes, onde cumpre prisão domiciliar. Ele utiliza uma tornozeleira eletrônica. Numa tarde do dia 22 de fevereiro, ele nos recebeu para uma entrevista e nos mostrou os documentos que embasam, em sua visão, o direito à terra dentro do território dos índios. Um deles é exatamente a emissão de um Cadastro Ambiental Rural, com pouco mais de quatro mil hectares, autodeclarado dentro do território Uru-EU-Wau-Wau

De acordo com informações da Polícia Federal, fazer loteamentos era o modus operandi de uma quadrilha que estava encurralando os indígenas. As vendas de lotes são uma fachada para o desmatamento. Nas fiscalizações já foram encontrados lotes por 1500 a 2000 reais (550 dólares) o alqueire (cerca de 24 mil metros quadrados), que é um preço ínfimo comparado ao valor da terra na região. Ali o preço do alqueire é pelo menos 20 vezes mais - 20 mil reais a 40 mil reais.

Se existe alguém em que papo de títulos de terra não cola é João Alberto Ribeiro, 61 anos, atual chefe do Parque Nacional Pacaás Novos, uma área de 765 mil hectares que está sobreposta ao território indígena. Em suas ações de fiscalização - que ocorrem a cada 15 dias - o gestor já encontrou por três vezes um mapa com desenhos de lote que ocupam 60 mil hectares dentro da terra indígena. "Isso é coisa de profissional", pontua.

O exemplo citado por ele como o precedente perigoso em Rondônia, é Floresta Nacional do Bom Futuro. A área que antigamente possuía 280 mil hectares sofreu um ataque em massa de madeireiros passou a ter 97,3 mil hectares. Houve falha do Ibama ao não manter uma fiscalização à altura.Instalaram-se vilas e até serrarias dentro da reserva. Em 2008, na época do governo Cassol, um escambo legislativo entre o governo estadual e federal permitiu a redução da unidade de conservação validando a tese de quem ocupa ilegalmente em algum momento pode obter a posse da terra..

"E assim está vindo em dominó", diz Ribeiro em referência a constantes invasões ocorridas em unidades de conservação e terras indígenas no estado. Como o frei Volmir Bavaresco e a procuradora Gisele Bleggi, ele acredita em uma ação concertada para a grillagem de terras em áreas protegidas em Rondônia.

Um traço comum encontrado em todos os aliados dos índios ou funcionários públicos encarregados de defendê-los com quem conversamos é que eles também se sentem ameaçados. João Alberto tem casos cinematográficos de como saiu das emboscadas armadas por madeireiros. A situação chegou a tal ponto, que os fiscais do ICMBIo não podem mais utilizar o posto de fiscalização nas proximidades do parque. "São várias ameaças, genéricas e específicas. A gente fica sabendo por terceiros".

Ivaneide Bandeira, fundadora da ONG Kanindé, que há duas décadas defende questões indígenas e ambientais no estado de Rondônia, não tem dúvida que a situação se deteriora com a ascensão de Bolsonaro ao poder. Segundo ela os invasores se sentem "empoderados".

Ela define sua situação como extremamente frágil. Conta que no mesmo dia em que fizemos a entrevista, ela havia encontrado um grupo de indígenas que a alertaram para que não usasse uma camiseta de futebol com o logo da Kanindé. "A gente é alvo hoje", ela lamenta.

Com as mãos espalmadas sobre um mapa que mostra os limites do território Uru-Eu-Wau-Wau, Neidinha (como é conhecida) explica que o avanço pelos dois lados da terra protegida é "problemática", pois bem no centro da terra indígena existem três povos isolados. "É uma terra rica e tem um monte de gente querendo acabar com ela".

Mas se desde que foi iniciada a colonização de Rondônia, os conflito em torno das terras indígenas parece incessante, qual seria a diferença com o novo governo de Bolsonaro?

"O grande diferencial agora é que a invasão está indo para cima da aldeia", pondera a ativista.

Poucos dias antes do fechamento desta reportagem, recebemos informações da ONG de Neidinha, a Kanindé, sobre novas invasões, ocorridas ao longo de março e princípios de abril. Ou seja, logo após a nossa visita. Desta vez, as entradas ocorreram na Linha C5 próximos a aldeia Alto Jamari, ao norte da terra indígena. Está é a aldeia de Bahira e seu tio Awapu.

Em um vídeo publicado no dia 02 de abril, os próprios posseiros falam em 400 famílias instaladas na terra indígena. Dois dias depois, agentes da polícia militar ambiental e do fizeram uma ação de emergência com sobrevoo e buscas na área. Encontraram o barracão de uma associação ainda desconhecida em invasões anteriores. Até o momento, os invasores não foram retirados e não houve ação do governo federal.

Esta reportagem recebeu apoio do Rainforest Journalism Fund através do Pulitzer Center on Crisis Reporting.

Agradecimentos por apoio na logística: Kanindé e Greenpeace-Brasil

Panela de pressão
Sant'ana Júnior também foi atacado diretamente pela WPR - São Luís Gestão de Portos e Terminais. A empresa o acusou de atuar contra o porto em nome da universidade federal e exigiu a abertura de um processo administrativo contra o professor. A instituição foi ameaçada com um processo (imagem abaixo) caso não fossem "coibidas tais práticas abusivas e ilegais".

A universidade deu de ombros às ameaças. Por outro lado, vasculhando Redes Sociais a WPR encontrou combustível para acusar um defensor público e um juiz estaduais de agirem em sintonia com entidades civis em defesa da comunidade do Cajueiro. O defensor público recebia e encaminhava as denúncias dos moradores, enquanto o juiz dava seguimento às mesmas no judiciário estadual. Ambos estão afastados do caso.

Enquanto isso, a balança do Tribunal de Justiça do Maranhão segue pesando contra os moradores tradicionais. Em decisão favorável ao terminal privado, o desembargador Lourival Serejo descreveu São Luís como uma cidade com "óbvio perfil portuário". Já um pedido do Ministério Público Federal, para que o licenciamento do porto fosse debatido em audiências públicas e para que fosse esclarecida a posse das terras onde avança a obra, foi arquivado sem qualquer avaliação. A área é disputada entre a comunidade tradicional e as empresas.

Questionado pela reportagem, o Governo do Maranhão admitiu que está licenciando o porto sem uma definição quanto à posse das terras. "O Governo do Estado ressalta que o caso está pendente de diversas ações judiciais, (...) em que se discute, dentre outros, o direito de posse e propriedade do imóvel em disputa. Compete ao Poder Judiciário decidir sobre a posse do imóvel", diz em nota a Secretaria de Comunicação Social e Assuntos Políticos do Governo do Maranhão (confira a íntegra aqui).

Para o Ministério Público Federal, nenhuma licença poderia ser emitida sem uma batida de martelo quanto à propriedade do território. "A propriedade formal da área pelos moradores tradicionais não foi levada em consideração no licenciamento. A invisibilidade sobre os direitos da população alimenta o conflito fundiário. Esse é o aspecto mais grave do licenciamento", ressalta o procurador da República no Maranhão, Alexandre Soares.

Tamanho atropelo de procedimentos legais não surpreende Marco Antônio Mitidiero Júnior, doutor em Geografia e professor da Universidade Federal da Paraíba. Para ele, do período colonial até agora a violência física ou simbólica sempre foi a principal mediadora dos conflitos por terras no país, e não uma atuação isenta do Estado e do Judiciário. "Se há uma disputa entre um latifundiário com terras improdutivas e um coletivo de camponeses que lá querem produzir, o judiciário sempre pensa com a cabeça do fazendeiro, do empresário", ressaltou o pesquisador de conflitos agrários.

Terra de tantos donos
O Maranhão não é diferente do restante da Amazônia, onde o caos fundiário multiplica títulos de terras e permite que oportunistas saquem dos bolsos documentos garantindo lotes desde a época das sesmarias - grandes porções do território dedicadas à agropecuária no Brasil colônia. Prato cheio para ameaçar o futuro dos que não têm poder econômico ou político.

Puro contraste com o cenário que Massinokou Alapong encontrou no Cajueiro em meados do Século XIX. A negra trazida da Costa do Ouro (hoje Gana, na África) tanto encanto viu naquele cenário de floresta e mar que ali semeou o Terreiro do Egito. Mesmo reclamado pela mata, o local segue como referência para religiões africanas. Abrigou muitos fugidos do chicote da escravidão. Quando em vez, o som dos tambores ainda ecoa por lá.

As atividades regulares no terreiro chegaram à década de 1960. A Igreja Evangélica chegou um pouco antes. Hoje, quase todos os moradores do Cajueiro são ligados a essa religião. Sempre se dedicaram à agricultura, pesca e extrativismo. Costumes que ali cultivaram ou carregaram de diferentes regiões, do Maranhão e de outros recantos do país.

Consertando a rede de pesca na varanda de casa, Carlos Augusto Barbosa (62) conta que o acesso às praias se complicou e a quantidade de peixes diminuiu com a obra do porto. Atendendo ao chamado de parentes, chegou à região no início dos anos 1980. Migrou do município de Guimarães, a 200 quilômetros de lá. "Antes, tínhamos aqui no Cajueiro peixe e praia perto da gente. Há anos, a situação só piora. Ninguém nos apoia", reclama.

Mesmo com raízes fincadas na história, a permanência dos habitantes no local vive na corda bamba. Seguem invisíveis a projetos embalados por governos e setor privado. A brasileira Suzano, uma das maiores produtoras de celulose e papel no mundo, já teve planos para um porto na mesma área. Um alento veio em 1998, quando a posse coletiva do território pelos moradores tradicionais foi reconhecida pelo governo estadual.

À época, o Maranhão era novamente comandado por Roseana Sarney, filha do ex-presidente José Sarney. Família com forte influência na política estadual e federal. Foi eleita governadora em 1994 e 1998. Assumiu o governo mais uma vez em 2009, substituindo o governador cassado Jackson Lago. No ano seguinte, foi reeleita. Todavia, renunciou nos últimos dias de 2014, alegando problemas de saúde.

O mandato acabou nas mãos do presidente da Assembléia Legislativa, o deputado estadual Antônio Arnaldo Alves de Melo (MDB), pois o vice-governador também havia renunciado. Na véspera de Ano Novo, Melo publicou um decreto retirando o Cajueiro dos moradores e concedeu uma primeira licença para a implantação do porto privado. Naquele mesmo período, quase 20 casas na comunidade foram demolidas por jagunços.

Um dos primeiros atos do próximo governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), foi revogar a desapropriação do território do Cajueiro. Na balança pesaram os conflitos já evidentes entre comunidade e empresariado e a necessidade de mais estudos sobre os impactos socioambientais da implantação do porto.

No início de 2015, representantes do governo ouviram moradores e entidades civis e participaram de reuniões na comunidade. Em Maio do ano seguinte, Dino garantiu à subprocuradora-geral da República, Deborah Duprat, que buscaria soluções para o conflito. Na prática, foram promessas inócuas.

"O Governo do Maranhão se tornou cúmplice de todas as irregularidades e crimes cometidos no Cajueiro e passou a carregar em suas costas a responsabilidade de todo o desastre ambiental e social que o empreendimento já provocou e que continua a provocar", avalia o professor e pesquisador Horácio Sant'ana Júnior, da Universidade Federal do Maranhão.

Apesar da posse coletiva concedida em 1998 aos moradores do Cajueiro, as terras onde o porto é construído foram compradas pela WPR - São Luís Gestão de Portos e Terminais no período eleitoral de 2014, em uma negociação com a BC3 HUB Multimodal Industrial. Essa pertence a Helcimar Araújo Belém Filho (49), advogado e vice-presidente de Desenvolvimento Operacional do Conselho Diretor do Conselho Regional de Contabilidade do Maranhão, e a Carlos César Cunha (64), dono do Clube CB450, casa de festas populares na Vila Embratel, na periferia de São Luís. Seus nomes estão ligados a empresas habilitadas à compra e venda de terras, operação de portos, mineração, geração de energia e manejo madeireiro.

Há quase uma década, Belém Filho se aproximou de consultores do Brasil, Suíça e Reino Unido que colocaram no papel o projeto Atlântico Equatorial. Uma empresa de mesmo nome foi aberta em Nova Lima (MG), por Belém Filho e Willer Hudson Pos, ex-presidente da Fundação de Meio Ambiente de Minas Gerais. Ele também foi diretor do Instituto Mineiro de Gestão das Águas e atuou no conglomerado britânico Anglo American, um dos maiores grupos de mineração do mundo.

Conforme o planejado, uma área semelhante a 1.200 campos de futebol, engolindo a região do Cajueiro, será coberta com pátios para contêineres, terminais para caminhões e trens e um porto. O projeto também é ligado à mineração de ferro no estado do Tocantins. "A melhor oportunidade de negócios com alto retorno do investimento", traz uma apresentação da empreitada (confira aqui). Após explicarmos por telefone a Belém Filho que gostaríamos de entrevistá-lo sobre a obra no porto no Cajueiro, não mais atendeu a nossos pedidos até o fechamento da reportagem.

O nome de César Cunha figura em outros conflitos envolvendo terras na capital maranhense, em vários processos judiciais e até em relatórios de operadoras de portos na região. Uma das comunidades pressionadas por ele para que deixassem o local onde vivem foi a de Camboa dos Frades, próxima ao Cajueiro e vizinha de uma termelétrica que abastece boa parte do Maranhão.

"Ele chegou dizendo que era dono das terras, que iria pagar por nossos bens. Muitas pessoas venderam e saíram, mas até hoje não receberam o negociado. Não podemos instalar energia, abrir uma estrada ou uma roça. Não tem ninguém para pedir socorro, é só porta fechada", reclama Maria do Ramo Coelho Santos (44), ex-presidente da Associação de Moradores e Moradoras da Camboa dos Frades.

Conforme estudo publicado por professores e estudantes de Geografia da Universidade Federal do Maranhão, os primeiros moradores chegaram à Camboa dos Frades por volta de 1920. Em relatório da Empresa Maranhense de Administração Portuária, gestora do vizinho Porto do Itaqui - um dos maiores do país -, as terras de Cunha somam mais de 240 hectares na região. "Comprei (terras na localidade) em 1975", disse à reportagem o dono do clube CB450. À época, tinha 20 anos de idade.

Um possível esquema envolvendo a falsificação de documentos para a tomada de terras de comunidades na zona rural de São Luís é investigado há mais de 2 anos. Para avançar, a devassa precisa do apoio de órgãos ligados aos poderes Executivo e Judiciário estaduais. "Mesmo com títulos precários sobre grande parte do território, deveria valer a usucapião para assegurar a permanência das comunidades nos territórios onde tradicionalmente vivem", disse uma fonte do governo maranhense, que preferiu não ser identificada para não colher prejuízos profissionais.

Unidos pelo porto
Além do imbróglio quanto à propriedade de terras e às repetidas denúncias de agressões a moradores tradicionais, a obra do porto no Cajueiro está conectada a empresas investigadas por fraude e corrupção.

De acordo com a operação Greenfield, disparada pela Polícia Federal em 2016 para investigar fraudes em fundos de pensão, à época a WPR São Luís Gestão de Portos e Terminais e a empreiteira paulista WTorre integravamum grupo controlado pelo empresário Walter Torre Júnior. A Greenfield amarra seu nome a sete empresas com as mesmas iniciaisWPR, incluindo a envolvida com o Porto São Luís. A WTorre também é ligada a projetos de prédios comerciais, estaleiros, pátios de montadoras de veículos e aoAllianz Parque, o estádio do Palmeiras, campeão brasileiro de futebol em 2018.

Investigações sobre crimes financeiros e de desvio de recursos públicos da operação Lava Jato - iniciada há 5 anos, também pela Polícia Federal - apontam que a WTorre teria recebido R$ 18 milhões (US$ 4,6 milhões) em propina para que a construtora OAS vencesse uma licitação pública, abocanhando uma obra para a Petrobras. A estatal brasileira atua em 25 países com produção, refino, venda e transporte de petróleo, gás natural e derivados.

Walter Torre Júnior e a WPR também são investigados pela 8ª Vara Criminal de São Luís, justamente por crimes ambientais ligados à obra do porto no Cajueiro que foram denunciados pelo Ministério Público do Maranhão. Na lista, morte de animais silvestres e destruição de florestas e manguezais em áreas protegidas pela legislação federal e fora dos limites licenciados pelos órgãos públicos.

Sempre buscando apoio político para seus negócios, a WTorre investiu quase R$ 10 milhões (cerca de US$ 2,6 milhões) nas eleições de 2010 e 2014, apostando em candidatos de todas as regiões do país. Flávio Dino recebeu da empresa uma das maiores doações individuais na sua campanha vitoriosa de 2014 - mais de R$ 250 mil (US$ 64 mil) -, logo atrás do aporte de empresas de gás, mineração e construção civil. Quase 40% dos recursos da campanha de Dino se devem a esses setores. O restante veio de seu partido.

No ano seguinte, o financiamento privado de campanhas eleitorais foi barrado pelo Supremo Tribunal Federal, que viu na prática uma válvula de escape para a corrupção. As eleições no Brasil contam agora com doações de cidadãos, recursos públicos e um Fundo Partidário, abastecido também com recursos privados.

Ex-juiz federal, Dino é o primeiro e até agora único governador do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) no país. O maranhense de São Luís assumiu seu primeiro mandato alimentando expectativas de aproximação com movimentos sociais e de rompimento com décadas de dominação política do estado pelas famílias Sarney, Lobão e Murad. Em suas primeiras entrevistas como eleito, prometeu uma "revolução democrática burguesa" e um "choque de capitalismo" para o Maranhão, um dos recordistas nacionais em pobreza e violência no campo.

Dito e feito, o governador não tem poupado afagos políticos para atrair investimentos privados ao estado. Participou da assinatura do acordo entre China Communications Construction Company e WPR São Luís Gestão de Portos e Terminais para a construção do porto no Cajueiro. Escoltado por secretários de governo, empresários brasileiros e chineses, também comemorou o lançamento das obras do terminal privado, há um ano.

Conforme o professor da Universidade Federal do Maranhão Horácio Sant'ana Júnior, a presença do governador em cerimônias do empresariado deixou claro que os direitos da comunidade seriam desprezados. Segundo ele, desde então o governo varre para debaixo do tapete as agressões aos moradores, irregularidades no licenciamento, crimes ambientais e a cinzenta compra de terras para a obra.

"A empresa passou a agir com muito mais liberdade, avançou no desmatamento, prosseguiu com a derrubada de casas e com as tentativas de chantagear os moradores que querem permanecer no território. O Governo do Maranhão é cúmplice das irregularidades e crimes e carrega nas costas a responsabilidade por todo o desastre ambiental e social que esse empreendimento já provocou e que continua a provocar. Os moradores foram abandonados à própria sorte", constata o pesquisador.

Reserva extrativista bloqueada
Outra campanha beneficiada pela WTorre foi a de José Sarney Filho, irmão da ex-governadora Roseana Sarney. Os R$ 300 mil (US$ 77 mil) doados pela empresa foram o maior aporte do setor privado que o candidato recebeu na campanha de 2014. Assumiu seu nono mandato como deputado federal no ano seguinte, pelo Partido Verde do Maranhão.

Depois de nomeado ministro do Meio Ambiente pelo ex-presidente Michel Temer, engrossou o coro contrário à criação de uma reserva extrativista que abrigaria até 16 mil hectares de floresta e uma dezena de comunidades, inclusive a do Cajueiro.

"Pelo que eu estou vendo, o Governo do Estado é contra, a prefeitura é contra, senadores são contra. Já determinei estudos, mas nesse caso temos que ouvir tudo e em momentos de crise, como esse, não podemos podar o crescimento do Maranhão. Essa reserva, do jeito que está sendo colocada, eu sou contra e vou determinar ao ICMBio que reveja essa questão", disse o ministro em uma reunião na Federação das Indústrias do Estado do Maranhão.

O ICMBio - Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade é responsável pela criação e gestão de Parques Nacionais e de outras Unidades de Conservação federais. Em uma reserva extrativista, regras permitem que comunidades convivam com ambientes preservados. O modelo é fruto do trabalho de seringueiros como Chico Mendes. Liderança contra o avanço do latifúndio na Amazônia, foi assassinado a tiros de escopeta em 1988, no estado do Acre.

Os moradores do Cajueiro esperam a criação da Reserva Extrativista de Tauá Mirim desde 2003, onde poderiam ser assentados e manter seu modo de vida. Eles têm sido indenizados e removidos individualmente para a construção do porto, despedaçando o que um dia foi uma comunidade. Muitos aceitaram indenizações pelos lotes e casas, enfrentando um futuro longe da floresta e distante do mar.

"As indenizações são uma expectativa de melhora de vida, mas o dinheiro acaba e muitas pessoas não sabem viver fora daqui. Sem qualificação, as mulheres trabalharão como faxineiras e os homens viverão de bicos", diz Lucilene Raimunda Costa (61). Ela mora no Cajueiro há mais de duas décadas, mas frequenta a comunidade desde os 5 anos.

Para o deputado estadual Wellington do Curso (PSDB), rara voz crítica ao governo Flávio Dino na Assembleia Legislativa, a reserva extrativista amenizaria os impactos do porto sobre a floresta e as pessoas. Todavia, ele não vê perspectiva para o futuro do Cajueiro, pois a voz de quem resiste ao extermínio da comunidade não ecoa nos órgãos que deveriam zelar por seus direitos.

"Pessoas são retiradas de onde nasceram ou viviam da pesca ou agricultura para um local completamente diferente, uma casa, um apartamento. Viverão de quê? Não tem emprego, não tem creche, não tem escola, não tem qualidade de vida. Miséria, criminalidade, violência, prostituição e tráfico de drogas costumam acompanhar o futuro de populações removidas à força", protesta.

Dos ex-governadores do Maranhão, Jackson Lago deu sinal verde à reserva extrativista, enquanto Roseana Sarney disse não à área protegida. Até agora, o Ministério Público Federal aguarda um desempate do governo Flávio Dino sobre o futuro da Tauá Mirim.

Os estudos para sua criação estão prontos e seu desenho driblou a área do porto Brasil-China, mas ela bate de frente com planos para mais infraestrutura logística e de transportes, e até de uma base da Marinha. Também há pressão política para converter quase toda a ilha de São Luís em uma zona industrial. Cansadas de esperar, em 2015 as comunidades declararam a reserva criada. A medida não tem efeito legal ou prático, mas engrossa o clamor daquelas populações pela permanência no território tradicional.

"As comunidades têm direito a uma resposta do Poder Público, mas o cenário é desfavorável à reserva, pois a proteção do ambiente e das comunidades está submetida a um jogo de forças completamente desigual. Essas populações estão sub representadas no aspecto político diante de empresas que têm grande capacidade de influência, não esquecendo do Governo do Maranhão, que fala em nome desses interesses empresariais", avalia Alexandre Soares, procurador da República no Maranhão.

Conforme a nota enviada pelo Governo Estadual, "todas as providências que competem ao poder público estadual estão sendo tomadas, considerando a importância do investimento, bem como a segurança dos moradores da área, a preservação do meio ambiente e o respeito à etnia e ao exercício dos cultos das religiões de matriz africana". Também afirma que em "relação às denúncias sinalizadas pela comunidade, o Governo do Estado reitera o pleno acompanhamento por parte da Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Participação Popular em reuniões e audiências públicas realizadas para diálogo com a população local".

Tabuleiro global
De acordo com o deputado estadual Wellington do Curso (PSDB), ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos na Assembleia Legislativa, crises como a que assombra a comunidade do Cajueiro poderiam ter outro enredo se a legislação fosse respeitada e as populações ouvidas desde o planejamento para a ocupação do território por empreendimentos privados apoiados pelo Poder Público.

"Ninguém é contra o desenvolvimento, desde que ocorra de forma ordenada e sustentável. Se a obra do porto tivesse sido precedida por amplo debate, não teria sido enfiado goela abaixo da sociedade e da comunidade tradicional. São Luís e o Maranhão não precisam crescer dando as costas para o futuro das pessoas", ressalta.

Ao mesmo tempo, Marco Antônio Mitidiero Júnior, da Universidade Federal da Paraíba, defende que não se pode descolar as agressões sociais e ambientais registradas no Cajueiro dos investimentos crescentes da "especulação financeira global" na produção de soja, carne, ferro e outras commodities agropecuárias e minerais no Brasil.

"Tais investimentos batem de frente com a vida e os direitos de comunidades camponesas, de quilombolas (descendentes de escravos), ribeirinhas e indígenas, tidas como obstáculos a serem varridos de onde vivem, com violência, com a participação do Estado e do Judiciário", explica.

A alta no preço de alimentos que abalou o mundo há uma década catapultou o apetite da China por terras produtivas. Em seguida, o país ampliou seu leque de investimentos mundo afora em infraestrutura para transportes e geração de energia, fabricação de veículos e telecomunicações. Há uma década, superou os Estados Unidos como principal parceiro comercial do Brasil. Um quarto de nossas exportações acaba no país asiático.

Conforme Mitidiero, a preocupação com uma influência desmedida do poderio econômico internacional no destino de comunidades rurais brasileiras cresceu com a chegada à Presidência da República do extremista Jair Bolsonaro. Eleito em 2018, tem estruturado um governo militarizado, avesso a respeitar o modo de vida de populações tradicionais e indígenas e ainda mais aberto ao ideário de setores atrasados do agronegócio.

Em seus discursos, Bolsonaro prometeu que "não haverá um centímetro a mais para demarcação" de terras indígenas, que essas populações serão integradas à sociedade urbana e que terão suas terras abertas à mineração e agricultura. Também comparou indígenas em suas reservas a animais em zoológicos e afirmou que quilombolas não servem "nem para procriar".

"Tudo (no novo governo) aponta para uma ainda maior concentração e apropriação dos territórios, com a supressão de direitos de indígenas, quilombolas e da conservação da natureza, abrindo mais espaços aos mercados internacionais de terras e commodities", ressalta o pesquisador da Universidade Federal da Paraíba.

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