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O Brasil não conhece o Brasil

FSP, Brasil, p. A6
Autor: BERABA, Marcelo
25 de Abr de 2004

O Brasil não conhece o Brasil

Ombudsman
Marcelo Beraba

Se a cobertura jornalística da violência urbana é difícil, irregular e superficial, como vimos no domingo passado a propósito da Rocinha, no Rio, imagine o acompanhamento dos conflitos que explodem na Amazônia.
Na manhã do dia 7, uma quarta-feira, índios cintas-largas atacaram garimpeiros que extraíam ilegalmente diamantes em suas reservas, em Rondônia. Mataram três na hora e aprisionaram os que não conseguiram fugir. No dia seguinte, mataram os prisioneiros. O que se sabe até agora é que foram pelo menos 29 mortos. É mais do que o dobro dos 13 que tombaram na Rocinha ao longo das duas últimas semanas.
A notícia da matança foi divulgada na quinta-feira, e a Folha publicou a primeira reportagem sobre o caso na Sexta-Feira Santa, com informações colhidas pelo repórter Rubens Valente, por telefone, de São Paulo. Como a Folha não tem jornalista em Rondônia, na segunda-feira, dia 12, enviou para Porto Velho uma equipe formada pelo correspondente em Campo Grande (MS), Hudson Corrêa, e pelo fotógrafo Antônio Gaudério, de São Paulo.
Os grandes jornais, como a Folha, o "Estado" e "O Globo", por economia ou por razões editoriais que desconheço, não têm estrutura jornalística na Amazônia.
A região é formada por nove Estados, equivale a aproximadamente 60% do território nacional e tinha em 2000 cerca de 21 milhões de habitantes, bem mais do que a região metropolitana de São Paulo, com 17,8 milhões. Para cobri-la, a Folha tem hoje apenas uma jornalista contratada, Kátia Brasil, em Manaus. A Folha tem uma correspondente em Pequim e não tem em Belém. A situação do "Estado" e do "Globo" na Amazônia é igual à da Folha ou pior.
A carência de jornalistas significa que os jornais acompanham mal o que acontece na região, como a ação do narcotráfico nas fronteiras com a Colômbia e a Venezuela, o contrabando de madeira, os desmatamentos, os conflitos em áreas indígenas, as fraudes nos governos estaduais e municipais, a biopirataria e a discussão sobre desenvolvimento e preservação ambiental.
A cobertura não é contínua e os repórteres não têm como se especializar, porque vivem longe e são deslocados apenas quando existe crise.
Os deslocamentos são complicados. A equipe da Folha que saiu na segunda-feira em direção a Rondônia só se aproximou da reserva Roosevelt na noite de terça. Porto Velho fica a 3.000 km de São Paulo e a mais de 2.000 km de Campo Grande. De Porto Velho a uma das três cidades mais próximas da entrada da reserva são mais de 500 km. E dessas cidades até a entrada da reserva levam-se mais três ou quatro horas de estrada de terra.
Na sexta, dia 16, começou uma rebelião no presídio Urso Branco, em Porto Velho. Os jornais só foram noticiá-la na terça, quando já haviam sido mortos e decepados pelo menos oito presos. Neste caso, os três grandes jornais e a TV Globo contaram com a sorte, termo inadequado diante de tanta tragédia. Seus repórteres desembarcaram em Porto Velho no fim de semana porque souberam que a Polícia Federal estava na iminência de desencadear uma nova megaoperação, a Mamoré. Por essa razão, puderam ter uma cobertura local da barbárie que dominou a rebelião.
No caso dos índios, a Folha foi ágil no primeiro momento. Ela não estava desatenta, tanto que já tinha publicado reportagens sobre os conflitos na reserva.
Mas, no final, foi uma cobertura falha porque, até o fechamento desta coluna, não foi possível saber de fato o que aconteceu naquela manhã do dia 7 no garimpo e por quê. A história que está por trás daquelas mortes ainda não foi contada. Pode ser que algum jornal, revista ou TV consiga fazê-lo neste domingo.

A COBERTURA
O que faltou
A pedido do ombudsman, a jornalista Inês Zanchetta e a pesquisadora Leila Monteiro da Silva, do Instituto Socioambiental, ONG especializada na questão indígena, fizeram a seguinte avaliação da cobertura da Folha no caso dos cintas-largas:
"De início, a cobertura foi muito factual. Não analisou profundamente o que está por trás do conflito, como a questão do contrabando de diamantes e suas conexões internacionais, a ausência do Estado na área (quando o Estado age, o faz de forma tópica e, muitas vezes, depois que o conflito se generalizou) e o papel de polícia que os índios exerceram indevidamente ao retirar os garimpeiros da área.
Faltou ouvir ainda outros atores, como o relator nacional para o Direito Humano ao Meio Ambiente, Jean-Pierre Leroy (que enviou relatórios e cartas ao governo ao longo do ano passado alertando para o iminente conflito armado), o Ministério Público (especialmente os procuradores da 6ª Câmara), antropólogos e o Cimi (Conselho Indigenista Missionário, da igreja)."
A secretária de Redação Suzana Singer preferiu não comentar as observações do instituto.

FSP, 25/04/2004, Brasil, p. A6

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