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O bicudo e as barragens

O Eco - www.oeco.com.br
Autor: Aldem Bourscheit
06 de Abr de 2010

Um dos países mais ricos do globo quando o assunto é biodiversidade, o Brasil, que pouco investe em pesquisa básica, costuma descobrir novas espécies no atropelo das obras de infraestrutura. O caso mais recente vem do Mato Grosso, estado até há pouco governado por Blairo Maggi, cujas empresas têm influência direta nessa história.

Percorrendo a região da Chapada dos Parecis em setembro de 2006, durante levantamentos sobre fauna prévios à construção da pequena central hidrelétrica Jesuíta, o biólogo Carlos Ernesto Candia-Gallardo, do laboratório de Ecologia da Paisagem e Conservação da Universidade de São Paulo, teve a atenção despertada por um distinto canto de ave. Depois de atrair a espécie, com a ajuda de uma gravação de sua própria "voz", conseguiu identificá-la: tratava-se de um raríssimo tiê-bicudo (Conothraupis mesoleuca).

Em seguida, descobriu cerca de 40 daquelas aves, que pertencem à família dos sanhaços e saíras, mas têm canto mais próximo ao dos curiós e coleirinhas. "Foi um impacto enorme do ponto de vista do conhecimento científico", disse. Sem dúvida. A única população antes conhecida do tiê vive no Parque Nacional das Emas, no Cerrado do extremo sudoeste de Goiás, enquanto o novo grupo está a 700 quilômetros de distância, em área de transição com a floresta amazônica.

"Os grupos parecem ter diferenças de vocalização, mas ainda não temos certeza de que são realmente isolados porque há vários pontos entre Emas e a região do Juruena que não foram avaliados, como nas cabeceiras do rio Xingu. Só com mais estudos poderemos comparar as populações e descobrir mais sobre sua biologia, hábitos reprodutivos e movimentação", aponta Gallardo.

O achado foi publicado na última edição da revista Bird Conservation International. O artigo também é assinado por Luís Fábio Silveira, do departamento de Zoologia da Universidade de São Paulo, e por Adriana Akemi Kuniy, da JGP Consultoria e Participações.

O tiê-bicudo foi descrito em 1939, a partir de uma única ave coletada no Mato Grosso, provavelmente na região da antiga Estação Telegráfica de Juruena. Permaneceu sem novos registros até 2003, quando foi localizada em Emas. A população nos Parecis foi avistada com mais frequencia em alagados, próximos à vegetação comum ao Cerrado.

"Até hoje, praticamente nada se sabia sobre sua biologia ou comportamento. Nossa pesquisa com a população do Alto Juruena indica que a espécie provavelmente é associada a ambientes alagados ao longo dos rios, e que é naturalmente rara na natureza, por estar associada a ambientes bem particulares", explicou Gallardo.

Apesar da população diminuta e da pouca informação disponível, o tiê deixou em 2003 a lista federal de animais ameaçados. Mas ainda figura na relação da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN, sigla em inglês), como "criticamente ameaçada". "A ave deveria voltar à lista do Ibama, porque sua população é pequena e isolada", reclamou Gallardo.

Mas os problemas do pequeno tiê são bem maiores. A região do Alto Juruena, como mostrou O Eco em abril de 2008, é alvo de projetos para dez pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) e duas usinas de grande porte da Maggi Energia e Juruena Participações e Investimentos. O conjunto prevê geração de 300 Megawatts e já estão em construção pelo menos as PCHs Sapezal, Rondon, Parecis, Cidezal e Telegráfica. O empreendimento da PCH Jesuíta financiou os estudos que levaram à descoberta da nova população do tiê-bicudo.

"Até o momento, a ave foi registrada em seis rios, no Formiga, Juruena, Buriti, Papagaio, Verde e Claro. Portanto, a expansão de usinas nesses rios deve ser criticamente avaliada porque os barramentos suprimirão grande parte das áreas onde foram feitos registros da espécie. É preciso averiguar sua ocorrência em outros locais", disse Gallardo.

A ocupação humana na região dos Parecis/Juruena por grandes propriedades dedicadas ao plantio de soja engoliu enormes quantidades de Cerrado e fez florescer municípios como Comodoro, Campos de Julio, Sapezal e Campo Novo do Parecis. Por lá já foram registradas cerca de 1.500 espécies de animais - mais de 830 tipos de aves, 150 de anfíbios, 120 de répteis e 50 de mamíferos, como capivara, anta e macacos.

Por isso, Gallardo aponta que a criação de parques nacionais, reservas biológicas e outras unidades de conservação, bem como o respeito à legislação ambiental pelos proprietários rurais, será fundamental para se garantir a sobrevivência do tiê e de várias outras espécies brasileiras. "A principal estratégia é preservar seus habitats, para que a ave persista no longo prazo. E isso se faz com novas unidades de conservação e com a manutenção de áreas de preservação permanente e reservas legais nas propriedades rurais", apontou o pesquisador.

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