VOLTAR

O ano em que a Amazonia comecou a morrer

Veja, Retrospectiva 2005, p.172-177
28 de Dez de 2005

O ano em que a Amazônia começou a morrer
Como o músculo cardíaco depois de um infarto, o sistema ecológico amazônico já tem partes irremediavelmente feridas. Evitar sua morte é o desafio do século para o Brasil

João Gabriel de Lima

Em 2005, a Floresta Amazônica começou a morrer. Não se trata ainda de uma condenação irreversível. Mas o mal crônico que está asfixiando o ecossistema já passou do ponto em que seu metabolismo possa recuperar a exuberância do passado. A comparação mais didática é enxergar a mata como uma pessoa cujo coração foi salvo pela revascularização por pontes de safena não antes, porém, de parte do músculo cardíaco ser destruída. Mantido o atual ritmo de devastação e de mudanças climáticas, dentro de meio século o que hoje é o maior e mais rico ecossistema do planeta pode estar totalmente desfigurado. A Amazônia não é apenas um bosque fechado e cortado por uma malha de rios. É um organismo vivo em que, como as células do corpo humano, cada ser exerce um papel diferenciado e interconectado. O solo depende das árvores, que não vivem sem os rios, onde nadam os peixes, que se alimentam dos frutos das árvores, que são polinizadas pelos insetos que se escondem no solo... São inúmeros e interligados os ciclos da vida na Amazônia. Isoladamente, cada um deles tem alto poder de regeneração, mas, quando a agressão ambiental corta os dutos entre diferentes nichos, a vida começa a ficar mais pobre, a floresta entra no lento mas inexorável processo de morte.
Até os dias atuais, a Amazônia resistiu a diversas glaciações – períodos em que ocorreram secas prolongadas – por ter, entre outras coisas, a capacidade de gerar sua própria chuva. É esse precioso equilíbrio que dá mostras de estar prestes a se romper. Até recentemente, as previsões catastrofistas sobre o futuro da Amazônia eram difundidas principalmente pelos militantes ambientalistas, que tinham uma relação antes de tudo afetiva com a floresta. Agora, o alarme vem da ciência. Neste mês de dezembro se encerrou o maior mutirão de pesquisa da história da Amazônia, o projeto LBA (sigla resumida de Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia), que consumiu 100 milhões de dólares e reuniu mais de 1 000 estudiosos do mundo inteiro. São eles que estão decretando a morte da floresta. Persistindo na comparação com um organismo humano, é como se antes o alerta sobre a saúde da floresta fosse dado por parentes e amigos. Agora, trata-se de um diagnóstico elaborado por uma junta médica de primeira linha.
Os cientistas Júlio Tota (à esquerda) e Alexandre Santos (à direita) operam laptops acoplados a sensores de última geração: investimento de 100 milhões de dólares teve 35 milhões bancados pela Nasa
Os cientistas acham que existe um limiar de devastação da floresta a partir do qual ela não mais se regenera. Esse umbral seria ultrapassado depois de 30% da mata destruída. Os estudos recentes mostram que esse ponto pode estar perigosamente próximo. Com base unicamente em descobertas científicas, é possível fazer três afirmações categóricas:
• se persistir o ritmo atual de devastação da floresta pela pecuária, pelas fazendas de soja e pela exploração madeireira, 40% dela deverá desaparecer até a metade deste século;
• simulações climáticas dão conta de que, no mesmo período, cerca de 30% da mata pode se transformar em cerrado, pois o aumento da temperatura impossibilitará a sobrevivência de várias espécies próprias da floresta tropical. É o fenômeno conhecido como "savanização";
• a devastação da Amazônia provocará alterações climáticas em várias regiões do planeta. O sul e o sudeste brasileiro seriam afetados por uma seca que comprometeria os rios da Bacia do Prata, grande fonte de energia hidrelétrica da América do Sul.
O projeto LBA, encabeçado pelo governo brasileiro, iniciou-se há dez anos e foi co-patrocinado por várias instituições internacionais, com destaque para a Nasa. A agência espacial americana gastou 35 milhões de dólares e fez uma espécie de curadoria científica da empreitada. "Quando iniciamos o projeto, muitos nos acusaram de ingerência indevida em assuntos do Cone Sul", diz o geólogo americano Michael Keller, coordenador do LBA por parte da Nasa. "Agora que estamos prestes a legar ao país um grande banco de dados sobre a Amazônia, quase todos reconhecem que a missão dos cientistas é fornecer subsídios à sociedade para que ela tome, autonomamente, as decisões mais acertadas." Junto com a Nasa veio a tecnologia de última geração na área de pesquisa. Sensores poderosos foram instalados em pontos estratégicos da floresta, com o objetivo de registrar os índices de umidade, pluviosidade, ventos, temperatura e emissões de gás carbônico dos diferentes tipos de vegetação que compõem a Amazônia. Não foram aferidas apenas as áreas de floresta tropical, mas também as regiões desmatadas, as pastagens e os trechos de cerrado. "Sem os novos dados e sem as novas condições de processamento, não seria possível fazer um diagnóstico acurado", diz o meteorologista Carlos Nobre, coordenador do LBA pelo lado brasileiro. O que ele quer dizer é que, até recentemente, as previsões sobre o futuro da Amazônia eram em sua maioria embasadas em cenários fictícios. Um exemplo. Pela falta de conhecimento aprofundado sobre o cerrado brasileiro, os computadores que realizam as simulações eram alimentados com dados de um ecossistema similar, a savana africana. A informática também evoluiu com o projeto. No início do LBA, o mais rápido supercomputador do mundo era capaz de fazer 16 bilhões de operações por segundo. Hoje, os dados sobre a Amazônia são processados numa máquina que realiza 768 bilhões de contas por segundo, alocada no Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC), na cidade de Cachoeira Paulista, no interior de São Paulo.
A questão da savanização é quase unanimidade na comunidade científica, já que vários estudiosos, em diferentes partes do mundo, chegaram ao mesmo resultado usando metodologias semelhantes. No Brasil, alguns dos principais trabalhos sobre o fenômeno são da autoria dos pesquisadores Carlos Nobre, Marcos Oyama e Gilvan Sampaio. Com base em dados coletados pelo LBA, eles levaram em consideração a influência recíproca de vegetação e clima – a floresta é desmatada, isso provoca secas e elevação da temperatura, as novas condições climáticas engendram outro tipo de vegetação, e assim sucessivamente, num círculo vicioso. Os cientistas também incluíram em seus cálculos o aquecimento global. De acordo com os estudos, o clima da Amazônia se tornará, com o passar dos anos, cada vez mais quente – um aumento de temperatura entre 3 e 6 graus Celsius nos próximos sessenta anos – e mais seco – com redução das chuvas entre 10% e 20% (não dá para afirmar com certeza, no entanto, que as secas deste ano sejam já o início do processo). Essas condições tornariam impossível a sobrevivência de várias espécies típicas da floresta tropical, e 30% de sua área seria coberta por vegetação parecida com a de cerrado, uma tragédia do ponto de vista da biodiversidade. A Amazônia é o ecossistema que concentra o maior número de espécies no planeta, e muitas delas morreriam antes de ser devidamente estudadas pelos cientistas, ou mesmo descobertas. "Seria uma longa faixa de savana entre a Venezuela e o Centro-Oeste, abarcando principalmente o estado do Pará", mapeia Nobre.
Outro estudo, de autoria do inglês Peter Cox, do Hadley Centre britânico, um dos mais respeitados institutos de modelagem climática do mundo, chega a resultados ainda mais dramáticos. De acordo com os cálculos de Cox, a temperatura da Amazônia deve subir 10 graus Celsius nos próximos 100 anos, e com isso parte considerável da floresta pode ser varrida do mapa. Tabulando dados parecidos, o maior supercomputador do mundo dedicado a questões climáticas, o Earth Simulator de Yokohama (40 trilhões de operações por segundo), aponta para um aquecimento entre 4 e 7 graus Celsius em setenta anos. "Isso representaria, em termos de savanização, um resultado semelhante ao calculado por brasileiros e britânicos", avalia o meteorologista Pedro Leite da Silva Dias, professor da Universidade de São Paulo.
O mais assustador é que nenhum desses modelos climáticos leva em consideração o principal fator de destruição da Amazônia – a ação do homem. Um estudo pioneiro nesse sentido vem sendo realizado por um grupo de especialistas coordenado pelo americano Daniel Nepstad. O cientista, radicado em Belém do Pará, fez um extenso mapeamento econômico da Amazônia. Nepstad e sua equipe fatiaram a floresta em 47 sub-regiões, e em cada uma delas foram identificadas a principal atividade econômica e a média anual de desmatamento. Para tornar o modelo ainda mais realista, os pesquisadores incluíram na simulação as estradas que vêm sendo construídas na região, levando em consideração que a maior parte do desmatamento se dá na margem de rodovias. Jogadas no supercomputador, essas variáveis levaram a um resultado alarmante. Mantido o ritmo atual, em cinqüenta anos 40% da floresta sumiria do mapa, substituída principalmente por pastagens e plantações. Nesse contingente estaria metade da Amazônia brasileira. Um cenário otimista, no qual os governos dos países amazônicos criariam áreas de preservação e conseguiriam fiscalizá-las decentemente, faria esse número cair em um terço. Ou seja, no mínimo 27% da floresta pode ir pelo ralo apenas devido à expansão econômica. "O estudo de Nepstad instaura um novo parâmetro, porque agora podemos fazer modelos climáticos tendo como ponto de partida a realidade econômica", avalia o meteorologista Gilvan Sampaio, do CPTEC. Gilvan trabalha na fusão dos dois modelos. Ele deve lançar no início do ano que vem um estudo que combina o impacto da ação do homem com o da ação do clima sobre a floresta.
Outra área em que os cientistas realizaram descobertas impressionantes é a da influência de uma eventual destruição da Amazônia no clima mundial. Durante muitos anos foi difundida a falsa idéia de que a floresta seria uma espécie de "pulmão do mundo", atuando como um tipo de sorvedouro de gás carbônico na atmosfera. Pesquisas recentes sepultaram de vez essa teoria – os cientistas não chegaram a resultados conclusivos sobre o assunto, e a hipótese mais provável é que a Amazônia libere tanto gás carbônico quanto absorve, numa álgebra de resultado próximo de zero. Descontada a questão do gás carbônico, é consenso que uma destruição total ou parcial da Amazônia provocaria, sim, estragos no clima em várias partes do planeta. Baseado em dados coletados pelo LBA, o israelense Roni Avissar, da universidade americana Duke, constatou diminuição da quantidade de chuvas no Meio-Oeste americano e na Península Arábica. É fácil entender como isso ocorre. "Quando um grave distúrbio climático afeta a área tropical, ele se propaga em ondas, atingindo diferentes regiões do globo. O fenômeno El Niño é um exemplo disso", explica Avissar. "A melhor analogia é a de uma pedra atirada num lago, que provoca círculos concêntricos na água", compara a pesquisadora brasileira Maria Assunção da Silva Dias, parceira de Avissar em estudos sobre o tema. No fenômeno El Niño, a pedra seria o aumento das tempestades no sul da Ásia. No caso da Amazônia, as diferenças de pressão atmosférica e umidade relativa do ar provocadas pelo desmatamento.
O efeito remoto da destruição da Amazônia é deletério também para a economia brasileira. "Entre os cientistas, há um consenso cada vez maior de que teríamos uma grande queda de pluviosidade na Região Sudeste, comprometendo a Bacia do Prata e, conseqüentemente, grande parte da geração de energia do país", alerta o professor Antônio Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Por questões atmosféricas, a maior parte dos desertos do mundo se situa em cinturões próximos aos trópicos de Câncer ou Capricórnio. Apenas na América do Sul, na região da Bacia do Prata, esse fenômeno não se verifica. Uma das explicações para o fato é a existência da Floresta Amazônica. A massa de ar úmido que provoca chuvas na região meridional da América do Sul se origina no Atlântico tropical. O primeiro ponto de precipitação é a Amazônia. Por causa do denso dossel de folhas e da transpiração das árvores, 50% dessa água é devolvida para a atmosfera. A massa de ar segue seu curso, ricocheteia na Cordilheira dos Andes e acaba no sul do continente, garantindo que as áreas produtivas da região não sejam áridas como na Austrália ou na África na mesma latitude. Os estudos mais recentes mostram que, se no lugar da Floresta Amazônica houvesse cerrado ou pastagem, as massas de ar perderiam progressivamente a umidade. "No passado, havia uma questão sobre preservar a Amazônia ou desenvolver economicamente a região com agricultura e pecuária", avalia o professor Carlos Nobre. "Hoje se sabe que é uma falsa oposição: se a floresta for destruída, o Brasil sofrerá graves conseqüências principalmente no campo econômico." Reduzidas a números, as pesquisas científicas sobre a região apontam para uma equação simples e definitiva: queimar a Amazônia equivale a queimar dinheiro.

Veja, 28/12/2005, p. 172-177 (Retrospectiva 2005)

http://veja.abril.com.br/281205/p_172.html

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.