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Novos matizes da (in)segurança

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: FLORES, Mario César
25 de Out de 2007

Novos matizes da (in)segurança

Mario Cesar Flores

A História do século 21 provavelmente registrará contenciosos e conflitos decorrentes do uso desmedido de recursos naturais, de desmandos ambientais e da iniqüidade social, associada à pressão demográfica.

Comecemos pelos hidrocarbonetos, extraídos de forma expressiva em poucos países, alguns, turbulentos e poucos, democracias seguras; ou cujo trânsito ao consumo, em alguns casos, passa por regiões complicadas. Existem produtores não-autoritários, onde o petróleo é parte de economias diversificadas - na Rússia, com democracia ao "estilo russo" -, mas a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) não é um paraíso democrático: o peso do petróleo na equação energética global apóia seu autoritarismo. São exemplos de preocupações, efetivas ou virtuais: a ameaça ao fluxo do gás russo para a Europa, já levada à prática pela Ucrânia; para chegar ao Mar Mediterrâneo, ao Mar Negro ou ao Oceano Índico, a caminho do Ocidente e do Japão, o petróleo da Ásia Central deve passar por pelo menos um destes países: Rússia/Chechênia, Geórgia, Turquia, Irã, Azerbaijão, Afeganistão e Paquistão; preocupa a posição estratégica do Irã no Estreito de Ormuz, por onde sai o petróleo do Golfo Pérsico; cobiçado pela China e outros países regionais, o potencial de petróleo do Mar do Sul da China é candidato a gerar discórdia.

Segue-se a água doce (hidreletricidade, irrigação, consumo industrial e humano), que, com o aumento das populações, a poluição de rios e lagos e a exaustão de fontes, vai produzir (está produzindo) tensões internas e internacionais. O caso do Nilo é emblemático: o uso do Alto Nilo e seus formadores por Etiópia e Sudão afeta a segurança hidráulica do Egito, dependente desse rio hoje, como há milênios. No tumultuado Oriente Médio também inquietam as Bacias dos Rios Jordão, Tigre e Eufrates. Exemplo trágico: o colapso do Mar Aral pelo uso excessivo de seus rios contribuintes na irrigação. A América do Sul não é imune ao tema, haja vista os contenciosos do Rio Lauca (Bolívia-Chile) há 50 anos, Itaipu x Corpus (Argentina-Brasil) há 30 e, hoje, os das "papeleiras" (Argentina-Uruguai) e das hidrelétricas do Rio Madeira (Brasil-Bolívia).

Aos hidrocarbonetos e à água doce se somam outros problemas, entre eles a pesca (pendências de fronteiras marítimas, como a Chile x Peru) e a destruição de florestas (extração de madeira, avanço agropecuário). As queimadas na Amazônia, cuja real incidência no clima ainda requer estudos responsáveis, criarão controvérsias que não podem ser menoscabadas sob o argumento de que países desenvolvidos precederam na prática: precederam, mas em época de ignorância do problema.

Permeando tudo isso, a pressão demográfica. O mundo pode sustentar sua população atual e até maior, difícil é fazê-lo sem que o progresso necessário, envolvendo recursos naturais e meio ambiente, ameace o futuro global sadio. Povos afligidos pelo descalabro social, pela insuficiência de água e terra agricultável ou por desastres ambientais (desertificação...) tenderão à desordem e à emigração, provocando políticas reativas (a exemplo do muro na fronteira EUA-México) e desajustes culturais, agressões ambientais (favelas, desmatamento), desemprego e violência.

Enfim, o modelo socioeconômico estruturado no uso desmedido de recursos naturais e descaso ambiental, agravado por pressão demográfica, tem gerado e vai gerar tensões de segurança. Ameaça o futuro saudável da humanidade, não mais de 1 bilhão de pessoas, como na adoção do princípio da soberania há 360 anos (Westfalia), quando se desconhecia a interdependência global da natureza, mas de quase 7 bilhões, e crescendo.

É hora de pensar a relação responsável entre a lógica da soberania construída pelo homem e a doação divina da natureza à humanidade. Ou Deus a teria doado a países para que a usassem em detrimento da humanidade? É hora de conciliar interesses apoiados na soberania clássica com a saúde ambiental e o uso racional dos recursos do planeta unitário, de harmonizar progresso sustentável e demandas das populações, de pensar a hierarquia do ritmo acima da qualidade do desenvolvimento, apoiada no fato de que o uso abusivo de recursos naturais e o descaso ambiental, úteis aos praticantes no curto prazo, têm seus custos - exaustão de recursos e danos ambientais - repartidos com o mundo, no maior. Não se trata de questionar o exercício rotineiro da soberania, mas de criar por consenso metas de interesse global exigentes de condutas nacionais sensatas - tema de que Kyoto é precedente pouco animador -, cuja operacionalidade responsável caberia integralmente às soberanias nacionais protegidas do "droit d'ingérence" (alusão intervencionista, do presidente Mitterrand).

Embora o ideal seja o respeito ao acordado, podem ocorrer situações que motivem conflitos entre Estados ou justifiquem pressão internacional, preferencialmente pacífica - estímulo ao certo e sanções ao errado -, definida em foro legitimado. Ameaças graves a país(es) específico(s) ou ao nosso destino coletivo, improváveis pelas democracias, mas não tanto por regimes autoritários redentoristas insanos, sugerem que no século 21 recursos naturais e meio ambiente terão presença nas agendas estratégicas; o desrespeito à natureza se somará à proliferação da ameaça nuclear, na definição de "rogue States". Em reunião do Conselho de Segurança da ONU, em abril, a Inglaterra alertou para a provável ocorrência de conflitos induzidos por degradação ambiental, desastres climáticos, insuficiência de recursos naturais e migrações!

Resta "torcer" para que países poderosos, democráticos sujeitos ao humor eleitoral ou autocráticos praticantes do nacional-desenvolvimentismo populista (EUA, China e alguns outros) aceitem racional e espontaneamente a lógica dos interesses da humanidade, que lhes custará algum preço no curto/médio prazo. A resistência a Kyoto põe em dúvida essa hipótese otimista, embora existam sinais de direito à esperança.

Mario Cesar Flores é almirante-de-esquadra (reformado)

OESP, 25/10/2007, Espaço Aberto, p. A2

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