VOLTAR

Nossos netos vão chorar

JB, Caderno B, p. B3
Autor: UTZERI, Fritz
12 de Out de 2005

Nossos netos vão chorar

Fritz Utzeri

A notícia mais importante publicada nos últimos dias (sem muito destaque) pela imprensa não se refere às cansativas e infindáveis maracutaias do governo e ao surgimento de traficâncias cada vez mais estranhas nas vizinhanças de Luiz Inácio e de Laurenti Béria... Perdão, Zé Dirceu. Nem é a régia aposentadoria de quase R$ 9 mil do desqualificado Roberto Jefferson. Mereceu, não é? Nem é a pizza tamanho família que se prepara na Câmara. O fato mais importante - pasmem! - é a seca na Amazônia!
Vejo fotos impressionantes de bancos de areia e terra seca e rachada em extensões de rios onde antes passavam tranqüilamente navios de grande porte. A seca já levou ao isolamento 21 cidades do Amazonas, um terço dos municípios do estado. Tais localidades só são acessíveis por via fluvial e com os rios secos apenas a FAB pode chegar lá. As prefeituras de localidades como Atalaia do Norte, Anori, Caapiranga e Manaquiri decretaram estado de calamidade pública e começam a faltar alimentos, remédios e até água potável! Há risco de epidemias, o fedor de milhões de peixes mortos é insuportável e a água está contaminada.
A estiagem das regiões centro e oeste da Amazônia está sendo considerada ''atípica'' pelo Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe). Uma das hipóteses dos cientistas é o aquecimento das águas do Oceano Atlântico (exatamente o mesmo motivo responsável pela fúria do furacão Katrina, que devastou Nova Orleans).
Para dar uma idéia da gravidade do problema, basta comparar o volume normal das águas dos afluentes do Amazonas com as registradas atualmente pelo Inpe. O Rio Negro tem em média 28 metros de profundidade e hoje não passa dos 16. O Solimões tem normalmente 13 metros de profundidade; ontem tinha menos de 40 cm, o que permite a sua travessia a pé e torna impossível a navegação. No Madeira, a calha de 13 metros de profundidade está reduzida a 1,83 metro. Só canoas navegam.
Este ano tem se caracterizado por uma sucessão de fenômenos naturais de grande magnitude, desde o tsunami do Sudoeste Asiático até a literal destruição de Nova Orleans, passando por uma série devastadora de terremotos e furacões. O último terremoto, no Paquistão, pode ter causado a morte de mais de 50 mil pessoas e matou cerca de 15 mil crianças, provocando um hiato de gerações em partes da Cashemira.
O planeta está ''atípico'', mas os que ainda consideram que a espécie humana é dona sem contestação do pedaço, e pode fazer o que bem entender com ele, ainda podem vir a ter grandes e trágicas surpresas.
A devastação das florestas pelas madeireiras e grandes fazendas de gado ou de soja, as queimadas para ''limpar'' o terreno, a contaminação das nascentes dos rios, a destruição das matas ciliares, o assoreamento, o despejo de esgotos, agrotóxicos e mercúrio dos garimpos podem ter conseqüências catastróficas para o ecossistema amazônico, que é frágil, e para o clima de nosso planeta. Só para dar uma idéia do tamanho do absurdo, vale verificar que nos últimos sete anos houve 746 mil incêndios em toda a Amazônia. Apenas nos últimos dez dias, um único estado, Mato Grosso, apresentou 17 mil focos de incêndio. No Acre, o número de incêndios triplicou do ano passado para cá. Crianças morrem intoxicadas pela fumaça.
Nós insistimos em nossa soberania sobre a região, mas parece que a mantemos unicamente para destruí-la. A política ambiental do atual governo é uma decepção só (como, aliás, praticamente tudo mais). Até a musa da floresta, Marina Silva, deixou-se levar pela traição, incompetência e cooptação geral, transformando-se numa figura amorfa e impotente ante o descalabro ambiental e as violações da lei, que acabam ''legitimadas'', como ocorreu com os transgênicos.
Chico Mendes deve estar pulando na tumba. Nossa sorte (ou azar da Amazônia) é que os americanos não têm qualquer moral para exigir uma política ambiental mais conseqüente e eficaz. O que eles fizeram com o Mississippi e a recusa de Bush em aderir ao protocolo de Kioto retiram qualquer argumento que possam ter para exigir o que quer que seja em matéria ambiental.
Pior para o planeta. São dois gigantes territoriais insanos e irresponsáveis, disputando uma corrida suicida para ver quem faz pior. Nossos netos vão chorar e sofrer por isso.
PS: Conheça o Montbläat, o meu jornal virtual na internet. Basta mandar um e-mail para flordolavradio@uol.com.br

JB, 12/10/2005, Caderno B, p. B3

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.