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"Nossos idosos são nossa memória": o medo da covid-19 nos quilombo

mulherias.blogosfera.uol
Autor: Flávia Martinelli
03 de Abr de 2020

Olavo José dos Santos, de 94 anos, e Maria Madalena Quintiliano, de 60, remanescentes do Quilombo Vó Rita,
em Goiás: pandemia evidencia a desigualdade e a falta de políticas públicas específicas para comunidades
tradicionais. (Foto: acervo pessoal)
Com reportagem de Jéssica Ferreira, especial para o blog MULHERIAS
Todo quilombo é memória viva. Cada espaço de resistência criado por remanescentes de
escravizados é mantenedor da cultura e da história afro-brasileira. Os 2.847 territórios
reconhecidos, apenas entre os certificados no Brasil, carregam em seu cotidiano aquilo
que os livros não contam. São, por si só, espaços educacionais preciosos. E ainda há
centenas, talvez milhares, que sequer foram mapeados - algo que o Censo de 2020,
atualmente adiado, iria quantificar e é fundamental para a discussão de políticas
públicas. A negligência diante do risco de contágio pelo coronavírus nessas
comunidades representa (mais um) risco de extermínio institucional.
Se no passado quilombos lutaram por liberdade no regime escravista, hoje é o descaso e
até a inconstitucionalidade do Estado que comprometem vidas de remanescentes, além
Flávia Martinelli
03/04/2020 04h00
SFORMA INSPIRA PAUSA HORÓSCOPO NEWSLETTERS BLOGS E COLUNAS VÍDEOS ÚLTIMAS NOT
do acesso ou preservação de suas terras, natureza e ensinamentos ancestrais. Na
última sexta-feira (27), por exemplo, em meio à pandemia do covid-19, o ministro do
Gabinete de Segurança Institucional, o general Augusto Heleno, assinou e anunciou que
o Brasil irá remover as mais de 100 comunidades quilombolas de Alcântara, no
Maranhão.

Triste ironia, no século 19, bem à época da escravidão, as ricas famílias de fazendeiros
de açúcar e algodão em decadência econômica abandonaram a cidade quando uma
epidemia, provavelmente de febre amarela, se abateu no local. Apenas negros e
indígenas permaneceram entre os casarões e a doença. Lá permaneceram desde então.
São os donos das terras, portanto, por posse e direito adquirido, ainda que a luta por
reconhecimento como terra quilombola nunca tenha chegado a um acordo.
A expulsão, que vai contra a recomendação de isolamento social, é motivada pelo
convênio que o presidente Jair Bolsonaro fez com os Estados Unidos, para uso do local
como mais uma base espacial norte americana. O ato viola a Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho, sobre Povos Indígenas e Tribais. Em repúdio, a
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas
(CONAQ) pressiona o Estado por políticas públicas adequadas, principalmente diante da
pandemia.

A violência institucional se somou a outra na mesma semana, quando o ministro da
Saúde, Luiz Henrique Mandetta, em pronunciamento público, afirmou que há presença
de SUS em 100% dos quilombos de todo o país. Não é verdade. Ainda que o trabalho de
visita de profissionais do programa Estratégia Saúde da Família (ESF) seja muito bem
avaliado, houve impacto na saída dos médicos cubanos no Brasil nas áreas rurais e, por
consequência, nos quilombos. A precariedade das dinâmicas de saúde, quando
existem, ou das complicações do deslocamento para atendimento em municípios
vizinhos, também continuam na pauta de reivindicações do movimento quilombola.
A política de morte que dá licença para matar
Em tempos de covid-19, todas essas dificuldades se intensificam e amedrontam
quilombos que, culturalmente, reverenciam e exaltam seus sábios anciãos, os chamados
griôs. "Eles são nossa memória e nossa história. Telefono aos mais velhos e explico que
eles não podem mais, como de costume, ir na casa um do outro", conta a cientista social
Marta Quintiliano, do Quilombo Vó Rita em Goiás. Ali, o posto médico mais próximo fica
a 35 minutos a pé da comunidade.
Marta cita o filósofo e professor camaronês Achile Mbembe para esclarecer que as
negligências tem endereço. "Sim, existe uma necropolítica e um necropoder que, juntos,
escolhem os sujeitos que vão morrer e que vão viver", menciona. A teoria escancara a
crueldade das práticas de morte de governantes que priorizam a criação de políticas
públicas voltadas para populações que não são as que mais necessitam delas. O poder
estatal ganha, assim, licença para matar e têm alvo certeiro: povos periféricos,
indígenas, negros, quilombolas e vulneráveis.
Diante desse cenário, a autogestão dos riscos foi a saída dos moradores do
Quilombo Ivaporunduva, que fica em Eldorado, município paulista da região do Vale do
Ribeira, uma das mais pobres do país, e cidade natal do presidente Jair Bolsonaro. Ali, a
própria comunidade fechou estradas, passou a controlar acessos ao território em três
turnos, montou equipes para idas e vindas à cidade e visitas de casa em casa para saber
das necessidades de todas as famílias. "Se por aqui alguém contrair o coronavírus,
existe muita pouca chance de resistir", desabafa a educadora e moradora Cristiana
Monteiro.
Já a mineira Maria das Graças Epifânio, filha da histórica Dona Tiana do quilombo
urbano Carrapatos da Tabatinga, localizado em Bom Despacho, a 156 quilômetros de
Belo Horizonte, sabe que o racismo está enraizado na visão do que são as culturas,
tradições e sabedorias afro-brasileiras e o quanto isso impossibilita a construção de
políticas direcionadas. "Não tem aquele respeito, não tem uma cartilha ou protocolos que
expliquem aos profissionais da saúde as características da nossa comunidade ou
necessidades pontuais. É uma questão de olhar e entender, de maneira respeitosa, as
nossas tradições", detalha.
Confia os depoimentos das três mulheres quilombolas que, diante da pandemia, lutam
para proteger seus idosos e, portanto, parte de sua história e legado.

"O posto de saúde mais próximo fica a 35 minutos
a pé do nosso quilombo"

"E se algo acontecer e nos contaminar? O que vamos fazer? A probabilidade do vírus se
espalhar é enorme e a morte será em massa nos quilombos ou entre os indígenas",
preocupa-se Marta Quintiliano, de 37 anos, doutoranda em antropologia social na
Universidade Federal de Goiás (UFG). Moradora do Quilombo Vó Rita, no município de
Trindade, da região metropolitana de Goiânia (GO), ela conta que na
comunidade existem de cerca de 200 pessoas; 50 são idosos. O posto de posto de
saúde mais próximo, porém, fica a 35 minutos andando a pé e não há hospital para uma
consulta ou atendimento especializado na região.
O local tinha características rurais, com roçado, até ser engolido pela urbanização. Na
transição que a comunidade ainda vivencia, são os mais velhos que contam as histórias
de Rita Felizarda de Jesus, que nasceu em 1909, neta de escravizados que deram
origem ao quilombo. Vó Rita teria chegado a Goiás com a família vinda da Bahia a pé,
depois de uma previsão, surgida à época, de que o mundo acabaria e que o primeiro
local a ser atingido seria onde moravam antes.

No quilombo, Vó Rita teve 11 filhos que criou com o emprego em uma fábrica de farinha
na cidade e lavando roupa pra fora. As filhas a ajudavam no trabalho doméstico e na
fábrica, os filhos plantavam arroz, mandioca, milho e outros produtos que
compartilhavam com a comunidade. Tradições como os bailes, cantigas e rezas são
legados que os mais velhos ainda contam.
O avanço urbanístico na área do quilombo mudou essa rotina sem, no entanto, trazer a
infraestrutura médica necessária à comunidade. "O que temos é uma agente de saúde
que vem até a comunidade atender a todos. Mas, neste momento de pandemia, ela não
está vindo visitar as casas, segundo ela, por questões de segurança", explica Marta.
"Quando acontece alguma coisa, se alguém está doente, a gente liga e pergunta o que é
melhor fazer. Agora todo mundo está com medo."
Marta conta que muitos na comunidade precisam se submeter a trabalhos com risco de
contágio. São ofícios em jardinagem e empregos de motoristas e empregadas
domésticas. "Temos um alto índice de serviços informais e desemprego. Não temos
condições financeiras nem de comprar álcool gel", pontua enquanto conta que não houve
distribuição do produto no local e explica que a estratégia da comunidade é permanecer
dentro de casa e fazer a lavagem adequada das mãos.
Política pública não é apenas avisar para não sair de casa
Aos mais velhos, ela explica os motivos para não mais ficarem, como de costume, indo
um na casa do outro e reforça a importância de manter o isolamento. "Mas é difícil. Aqui
em casa, por exemplo, tem um monte de idoso. Os que têm doenças não saem de jeito
nenhum... E é isso: seguimos conversando com nossos mais velhos orientando por
telefone, porque estão angustiados."
Mas isso não é uma política pública, muito menos específica aos que, de maneira tão
brasileira, marcaram a identidade do Brasil com seus benzimentos, a devoção a São
Sebastião e a Santo Antônio e a manipulação de ervas na cura de enfermidades que até
hoje a ciência está estudando. "Atenção à saúde com essa população precisa ir além de
informação que vem da TV. Aqui, só o que dizem é pra não sair."

"Os idosos são a nossa história, parte da nossa
resistência"

A agricultora familiar e educadora Cristiana Marinho, de 35 anos, entende que o combate
ao coronavírus no Brasil está vinculado ao enfrentamento da desigualdade e da
negligência do Estado. Sabe também que essa combinação representa um risco enorme
às comunidades periféricas e historicamente ignoradas ou mesmo vistas como inimigas
por agentes do poder. Cristiana é moradora do Quilombo de Ivaporunduva, que fica em
Eldorado, município paulista da região do Vale do Ribeira, uma das mais pobres do país,
e cidade natal do presidente Jair Bolsonaro.
"Os idosos são a nossa história, parte da nossa
resistência"
"É muito preocupante. Se a gente perde parte desses idosos, é nossa história que se
perde. Queremos cuidar deles de todas as formas para que não sejam contaminados.
Se por aqui alguém contrair o coronavírus, existe muita pouca chance de resistir",
desabafa. Ela cita a precariedade da estrutura de saúde pública da cidade da família do
político que comanda o país. "O município não tem UTI e nem mesmo equipamentos de
oxigênio e intubação."

Os moradores de Eldorado dependem do hospital regional, de Pariquera que segundo
Cristina, tem apenas 39 leitos de UTI. "Estão sendo instaladas mais dez, mas ainda é
muito pouco para um número muito grande de gente. Sabemos que é perda mesmo,
caso não haja cuidado". O Vale do Ribeira abriga uma população de quase 500 mil
habitantes e inclui em sua área de 31 municípios; nove paranaenses e 22 paulistas.
A resistência, como sempre, é construída no "nós por nós"
As comunidades quilombolas da região avaliam o turismo e a ida à cidades como fatores
de alto risco de transmissão do vírus. Os próprios moradores de Ivaporunduva, então,
bloquearam estradas locais e, por si, vigiam os acessos durante os três turnos. Ninguém
entra e ninguém sai. Dentro da comunidade, de cada território, há coordenadores para
lidar com a crise.

Há equipes que cuidam da divulgação de informações, outras cuidam de compras de
remédios ou mantimentos na cidade. Parte da alimentação vem das roças orgânicas,
mas há alimentos que ainda precisam aguardar a colheita. "Tem também um grupo que
vai de casa em casa para saber o que está faltando para cada família. Estamos fazendo
de tudo para que ninguém precise sair do isolamento social", explica Cristiana. "Fiz
também um apelo ao posto emergencial de saúde por causa da falta de materiais de
prevenção, como álcool em gel, máscaras, luva. Isso deveria ser fornecido, mas que nem
os profissionais da saúde têm."
Mecanismos de resistência, como sempre, estão sendo construídos por e para eles. "A
comunidade está unida, mais do que nunca, para vencer essa luta. Se aos que estão nas
cidades já é difícil, nos territórios quilombolas é ainda mais por questões de logística, de
transporte, de cuidado e de um olhar diferenciado que não existe nessa questão da
saúde para o nosso povo."

"Falta aos profissionais de saúde um protocolo de
respeito às características da
nossa comunidade. É uma questão de olhar, de
entender as nossas tradições"

Diferente de muitas realidades, há dois anos, toda a dinâmica da saúde pública mudou
para melhor no quilombo urbano Carrapatos da Tabatinga, localizado em Bom
Despacho, em Minas Gerais, a 156 quilômetros de Belo Horizonte. "A chegada do
"Falta aos profissionais de saúde um protocolo de
respeito às características da
nossa comunidade. É uma questão de olhar, de
entender as nossas tradições"
programa Estratégia Saúde da Família (ESF), foi muito boa pra comunidade toda; tanto
pra nós, quilombolas, quanto para quem não é. E é um conforto que a gente tem; não
precisar correr léguas para ter atendimento", conta a moradora da comunidade e técnica
de saúde bucal Maria das Graças Epifânio, de 48 anos.

Graça elogia a facilidade de acesso à equipe médica que vai até a comunidade para
intervir nos fatores que colocam a saúde em risco. De fato, pesquisas apontam que a
política pública promove maior adesão a tratamentos e evita intervenções de média e
alta complexidade. Esse nível de atenção resolve 80% dos problemas de saúde da
população. Ainda, assim, ela pontua que a população quilombola tem especificidades
culturais que devem ser respeitadas pelos agentes da saúde. "Em geral, colocam tudo
no mesmo balaio e vão levando. Não precisava ser assim".
Filha da matriarca do quilombo, Dona Tiana, falecida no ano passado aos 87 anos,
Graça segue a militância pelos direitos quilombolas e é coordenadora de Igualdade
Racial da Secretaria de Cultura da prefeitura de Bom Despacho. Ela sabe que o racismo
está enraizado na visão do que são as culturas, tradições e sabedorias afro-brasileiras e
o quanto isso impossibilita a construção de políticas direcionadas. "Não tem aquele
respeito, não tem uma cartilha ou protocolos que expliquem aos profissionais as
características da nossa comunidade ou necessidades pontuais. É uma questão de olhar
e entender, de maneira respeitosa, as nossas tradições", detalha Graça.
Dona Tiana, sua mãe, lutou pelo reconhecimento e certificado da comunidade como
quilombo urbano da comunidade que, justamente, é referência na valorização da
identidade e legado da cultura afro-brasileira. A líder incentivou e criou de grupos de
dança afro, afoxé, teatro, capoeira, congado e até uma escola de samba. Detentora de
saberes tradicionais, foi "zeladora de Santo", filha de São Sebastião e benzedeira,
reconhecida por toda comunidade de Bom Despacho, pelo poder público e entidades
locais enquanto Dandara, sinônimo da resistência quilombola. Veja, abaixo, o
documentário sobre sua vida e legado

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