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Nós, os selvagens

Época - http://epoca.globo.com/vida
17 de Set de 2015

Nós, os selvagens
Na mostra 'Variações do corpo selvagem', o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro expõe em imagens os conceitos que o consagraram - e se contrapõe ao olhar datado do mais famoso fotógrafo brasileiro

JULIANA CUNHA
17/09/2015 - 16h16 - Atualizado 17/09/2015 16h22

Antes de ser antropólogo, Eduardo Viveiros de Castro era um rapaz de vinte anos com uma Pentax na mão e alguma noção de fotografia. Chegou a ser fotógrafo de cena em filmes de Ivan Cardoso, de quem foi roteirista e amigo, e a registrar o trabalho do artista plástico Hélio Oiticica. Quando começou sua pesquisa de campo no Alto do Xingu, em meados de 1970, Viveiros de Castro passou a fotografar os índios em seus momentos livres. "São fotos de pausas, minhas e deles, de quando eu deixava o bloquinho de lado e me permitia olhar um pouco em volta", contou a ÉPOCA no hotel onde se hospedou para a abertura da exposição em São Paulo.
As fotografias do antropólogo não foram usadas como instrumento de pesquisa. Têm outro sentido: ajudam a entender o cotidiano dos índios e como o acadêmico os enxerga. "Estou num limiar entre o documentarista, o amador e um artista de pouco talento", diz Viveiros de Castro, que já chegou a participar de exposições coletivas e a publicar um livro de imagens [Araweté - O Povo do Ipixuna], com edição ampliada prevista pela editora do Sesc para o ano que vem.
Variações do corpo selvagem, com curadoria dos críticos Eduardo Sterzi e Veronica Stigger, é a primeira exposição individual do antropólogo, e a mais completa, com quase 400 fotos. São imagens do cotidiano das aldeias, de informantes e amigos do autor misturadas a materiais de sua fase pré-antropólogo. A maioria delas segue um estilo fotojornalístico, com pouca interferência do fotógrafo na cena e sobre os retratados. A ideia é traçar um paralelo entre a forma como os índios pensam o corpo - não como algo dado, mas como uma natureza que pode ser modificada, manipulada e construída - e a arte de vanguarda brasileira, especialmente o trabalho de Hélio Oiticica, fotografado por Viveiros de Castro. "São experimentações, variações, deformações da nossa concepção corrente do corpo que podemos ver tanto nas intervenções indígenas sobre o corpo, com pintura, perfuração e escarificações, quanto nos parangolés [espécie de roupa performática criada por Oiticica], nessa roupa que não é uma roupa, que não esconde o corpo, que deforma o corpo, o corpo se move dentro da roupa em vez de a roupa prender o corpo", explica o antropólogo.
Mas índio gosta de ser fotografado? "Não menos que qualquer outra pessoa que eu conheça", diz Viveiros de Castro. A lenda de que os índios não gostam de ter sua imagem capturada por temer que a câmera lhes roube a alma vem de uma confusão linguística. "As palavras para sombra, imagem e alma são a mesma em muitas línguas indígenas, pode ter vindo daí a confusão."
Apontado por Lévi-Strauss como fundador de uma nova escola na antropologia, Viveiros de Castro criou, com Tânia Stolze Lima, a teoria do "perspectivismo ameríndio", segundo a qual, para muitos povos indígenas das Américas, todo ser vivo (seja ele humano ou não) pode se enxergar como gente. Segundo os pesquisadores, a "humanidade" é para os índios apenas uma questão de ponto de vista. Da perspectiva da onça, ela é gente e os homens são caça. Para os índios, cada uma dessas entidades - bicho, ser humano, planta - possui uma sociedade própria que funciona em moldes iguais aos humanos, com regras, rituais e laços de parentesco.
Essa ideia subverte a noção de que a natureza seja universal e a cultura, específica. Para os índios, a cultura é universal, o que muda é o ponto de vista. Nessa lógica, a condição de humanidade seria apenas uma posição de fala. Quando a onça "fala", a humana da história é ela. Para que seja assim, é a natureza, em volta dela, que precisa mudar - do ponto de vista da onça, que se vê como gente, os homens são jabutis, preás, caça, coisas que gente come.
Hoje professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Viveiros de Castro já lecionou na École des Hautes Études en Sciences Sociales e nas universidades de Cambridge e Chicago, além de ter ajudado a fundar o Instituto Socioambiental. Para ele, a exposição no Sesc é uma chance de falar para mais gente. "Só na abertura tive mais público do que em todos os meus livros", brinca o acadêmico.
As fotos - e o modo como foram expostas - estão impregnadas dos conceitos que o antropólogo utiliza em seus livros. Há, por exemplo, uma parede que reúne uma imagem de um índio com uma camiseta do São Paulo; outra de uma senhora da cidade de Altamira que mais parece uma cigana espanhola; e uma terceira em que podemos ver um jovem indígena (hoje líder de uma aldeia importante) trajando shorts Adidas e uma camiseta do Superman. Esse mosaico casa com a contestação por parte do antropólogo de que ao incorporar símbolos "brancos" como os shorts Adidas e o Superman o índio estaria se aculturando, tornando-se menos índio.
Apesar de grande, a exposição reúne apenas uma parcela de sua produção. O restante das cercas de 4 mil fotos tiradas por Viveiros de Castro podem ser vistas no acervo do Instituto Socioambiental, em São Paulo (é preciso pedir autorização prévia, mas o autor garante cedê-la), ou na coleção particular do cineasta Ivan Cardoso (que não garante nada).
Aposentado de sua carreira fotográfica, Viveiros de Castro pediu aos curadores que o tratassem como um artista morto. "Tenho 64 anos. Quase todas essas fotos foram feitas quando tinha entre 20 e 35. Hoje só fotografo flor, família, meu jardim na Serra de Petrópolis", diz o morto, que possui conta no Instagram.
No ano passado, o mesmo Sesc São Paulo, na unidade Belenzinho, apresentou a exposição Genesis, de Sebastião Salgado, com um olhar oposto ao de Viveiros de Castro. Das imagens de Salgado - assim como da curadoria e dos textos de aparato feitos por Lélia Wanick Salgado - pingavam uma visão "antropologia século 19" acerca dos índios brasileiros, que eram retratados de um jeito que mais lembrava quadros indianistas de algum membro da Expedição Langsdorff, feita no século XIX. Surgia uma visão datada dos índios brasileiros, como que saída da Expedição Langsdorff, no século XIX. Embora as fotos tenham sido tiradas entre 2004 e 2011, o artista insistia em termos como "nossas origens", "idade da pedra" e "processos de formação do planeta", como se os fotografados não fossem nossos contemporâneos, como se ao pegar um helicóptero e descer no meio de uma comunidade isolada - as peripécias técnicas, o custo do processo e a dificuldade de acesso eram exaltados pela exposição - Salgado estivesse embarcando em uma máquina do tempo para encontrar primitivos.
Nas fotos de Viveiros de Castro, no entanto, há um estranhamento geral e uma ideia de particularização. Ele é o anti-Salgado. Parte do pressuposto de que "no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é" e de que "a indiandade não é uma sobrevivência do passado, mas um projeto de futuro", como diz em fragmentos espalhados pela mostra. Fotos do poeta Waly Salomão e da líder comunitária Nininha da Mangueira são postas em equivalência às imagens dos Arawetés, Kulinas, Yanomamis e Yawalapítis. Tanto por estarem lado a lado - não há na exposição uma separação temporal ou temática que isole as fotos dos índios das fotos dos não índios, embora uma diferença sutil na moldura diferencie as duas séries - quanto porque o estranhamento do fotógrafo diante de seu assunto permanece o mesmo. Para o antropólogo, Waly Salomão com seu parangolé de rosto é tão selvagem quanto o líder dos Paratatsi com sua camiseta do Superman.
A visão de índio do antropólogo não se resume aos nativos amazônicos. Ela inclui os brasileiros pobres, os negros, os "imigrantes que não deram certo", todos aqueles que estão marginalizados de algum modo. Para Eduardo Viveiros de Castro, a violência que o Estado brasileiro impõe hoje aos povos amazônicos - e uma boa ilustração disso seria a imagem na qual os índios jogam fora as quentinhas oferecidas pelo consórcio construtor da usina de Belo Monte - é uma tentativa de transformar índio em pobre. O objetivo da exposição, explica Stigger, é fazer o percurso contrário e transformar pobre em índio.
O cineasta Ivan Cardoso em seu apartamento, no Rio, em frente a um quadro do Drácula (1974))
Em cartaz
Em cartaz até 29 de novembro no Sesc Ipiranga, em São Paulo, a mostra Variações do corpo selvagem: Eduardo Viveiros de Castro, fotógrafo reúne 337 fotos feitas pelo antropólogo entre 1974 e 2013.
As obras se espalham pelo Sesc e por suas imediações. Dentro da unidade, ocupam a galeria principal, o jardim e dois galpões traseiros. Fora dela, se alastram pelo Parque da Indepedência e por sete comércios do bairro (Bar do Tonho, Hamburguer do Seu Oswaldo, Paellas Pepe, Salgadaria, Barbearia Fiori, Doceria Fisher e Mercado do Ipiranga). "Nossa intenção é que a forma da exposição também fosse perspectivista", diz Eduardo Sterzi, um dos curadores.
A mostra inclui ainda um calendário de atividades paralelas como shows e performances que duram até novembro. O destaque é um seminário que reúne pesquisadores como os franceses Patrice Maniglier e Bertrand Prévost para discutir o impacto da teoria de Viveiros de Castro, e que vai até o fim de outubro.

Onde: Sesc Ipiranga (rua Bom Pastor, 822, Ipiranga, São Paulo)
Quando: Terça a sexta, das 7h às 21h30. Sábados, das 10h às 21h30. Domingos e feriados, das 10h às 18h30
Entrada gratuita

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