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Nos grotões, o Brasil descobre políticas sociais que dão certo

OESP, Nacional, p. A12-A14
17 de Out de 2004

Nos grotões, o Brasil descobre políticas sociais que dão certo
O Ceará registra o maior avanço no Índice de Desenvolvimento Humano do Nordeste e o Acre obtém salto na área de educação

Fernando Dantas
Enviado especial
Fortaleza

A analfabeta Maria Regina de Sousa Silva, de 32 anos, está trabalhando há um mês na fábrica de processamento de castanha de caju conhecida como PA-Rural (Programa de Apoio Rural), em Barreira, município de 18 mil habitantes no Ceará. Maria Regina vai ganhar R$ 260, um salário mínimo, por mês, sem férias nem 13.o salário, em regime de cooperativa. Antes, ela e o marido contavam apenas com o trabalho de enxada na roça, a R$ 10 por dia, quando houvesse, para sustentar a família de quatro filhos. "Tem hora que dá vontade de chorar", diz ela, mas acrescenta: "Agora eu acho que as coisas vão melhorar."
A modesta melhora na vida de Maria Regina é o elo mais humilde de uma cadeia de aumentos de renda de muitos moradores de Barreira, na esteira de um programa bem-sucedido de incentivo a mini e microindústrias de processamento de castanha de caju.
O ganho da nova cooperativada do PA-Rural, na verdade, se parece com o progresso que vem sendo alcançado no Brasil em alguns Estados com programas sociais consistentes: avanços modestos, mas reais, que começam a entrar no radar dos especialistas.
A reportagem especial nesta e nas próximas duas páginas mostra uma série de projetos em dois Estados - o Ceará, governado pelo PSDB há 18 anos, e o Acre, governado há 6 anos pelo PT - que vêm se destacando em política social.
Estudo
Em recente estudo de Ricardo Paes de Barros, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), cobrindo desenvolvimento humano, saúde, educação, desenvolvimento infantil, pobreza e habitação em 20 Estados e no Distrito Federal, o Ceará registrou o maior avanço global entre 1993 e 2002. "No indicador de desempenho global, o Ceará vem a uma boa distância do segundo colocado", conta Paes de Barros.
No Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o Ceará teve o maior avanço do Nordeste entre 1991 e 2000, saindo de 0,59 para 0,70. Em 2000, o Ceará tinha uma esperança de vida ao nascer de 67,8 anos, a maior entre os Estados nordestinos. O Estado também registrava a menor mortalidade infantil até 1 ano do Nordeste em 2000, com 41,4 óbitos por mil nascidos.
Em 2002, de oito indicadores de desenvolvimento infantil (educação, excluindo os adultos), o Ceará era o melhor do Nordeste em seis e o segundo colocado em dois. Em 1993, o Estado estava entre os quatro piores Estados do Nordeste em três daqueles índices e nos demais variava entre a terceira e a quinta posições.
Entre os dois períodos, a taxa de analfabetismo das crianças entre 10 e 14 anos caiu de 23,8% para 7,3% e o porcentual de crianças entre 10 e 14 anos com dois ou mais anos de atraso escolar reduziu-se de 76,4% para 38,5%.
No porcentual da população vivendo abaixo da linha da pobreza, o Ceará recuou de 65,8%, em 1993, para 54,1%, em 2002, saindo da sexta para a terceira melhor posição entre os Estados do Nordeste.
Escolas fantasma
O Acre, que não está incluído na pesquisa de Paes e Barros, estava abaixo da média da Região Norte em cinco das seis provas do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) em 2001. Em 2003, estava acima da média em quatro.
Na comparação com 2001, entre os 26 Estados e o Distrito Federal, as escolas do Acre têm o maior avanço em pontos no Saeb-2003 na prova de matemática da 3.ª série do segundo grau (de 258,4 para 274,5), e o segundo maior avanço na de língua portuguesa da 4.ª série do ensino fundamental (de 148,7 para 159,1).
De acordo com o vice-governador Arnóbio Marques de Almeida, que acumula os cargos de secretário de Educação e de Desenvolvimento Humano e Inclusão Social do Estado do Acre, a situação era precária quando o governador Jorge Viana (PT) assumiu o cargo, em 1999. "Nós não sabíamos quantas escolas havia nem onde estavam", diz Almeida.
As primeiras providências foram um programa de reforma física das escolas, e um plano de georreferenciamento pelo sistema GPS: descobriu-se que havia cerca de 80 escolas no território do Amazonas, 2 no Peru, 1 na Bolívia, e cerca de 100 escolas fantasmas.
Formação
O principal investimento, porém, foi na formação dos professores. Uma parcela de 25% dos 8 mil professores do Estado só tinha até o primeiro grau. Um programa conjunto com o Ministério da Educação e o Banco Mundial praticamente zerou o número de professores sem segundo grau completo.
Outro programa, com a Universidade Federal do Acre, colocou 4,5 mil professores com segundo grau em cursos de formação universitária, em 90 turmas, que começam a se formar este ano.
Outro esforço no Acre é o de elevar a qualificação dos professores indígenas.
"O meu trabalho melhorou muito, aprendi muitas coisas que não entendia antes", diz Alberto Rosa da Silva, o Tamãkayã, de 30 anos, professor da etnia katukina há oito anos. Ele iniciou a sua formação em educação indígena, diferenciada e bilíngüe, em 2001.

Derrota de oligarquias inicia mudança social
Ceará e Acre vivem processos políticos paralelos e dão início a ciclo de industrialização
Rio Branco
Ceará e Acre têm pontos significativos em comum, a começar pelo povo: foram basicamente cearenses que, navegando através dos rios da Amazônia, colonizaram, nas últimas décadas do século 19, as terras que viriam a formar o Acre (habitadas então quase exclusivamente por índios). Em tempos mais recentes, os dois Estados viveram processos políticos semelhantes, embora de forma defasada. Em ambos, a vitória de forças políticas tidas como mais modernas sobre oligarquias tradicionais deram início a um processo de mudanças sócio-econômicas expressivas.
No caso cearense, aquela virada ocorreu em 1986, com a vitória do hoje senador Tasso Jereissati, do PSDB. Desde então, o Estado foi sempre governado pelo PSDB, com um revezamento entre Tasso, Ciro Gomes e o atual governador, Lúcio Alcântara. No Acre, a história é bem mais recente, e começou com a vitória de Jorge Viana, do PT, em 1998, que foi reeleito em 2002.
É interessante observar os paralelos entre o Ceará e Acre, na versão dos fatos relatada por participantes atuais dos dois governos. Alex Araújo, secretário do Desenvolvimento Local e Regional do Ceará, relembra: "Em meados dos anos 80, o Estado era praticamente quebrado; todo gasto público era relacionado a pessoal, sem independência financeira para se implementar programas." Soa parecido com a observação do atual vice-governador do Acre, Arnóbio Marques de Almeida, sobre as dificuldades de Viana no seu primeiro mandato (quando Arnóbio era secretário de Educação, cargo que hoje acumula): "O primeiro momento foi colocar a máquina para funcionar."
Depois os governos tiveram de fazer escolhas de política econômica e social. No Ceará, os investimentos no interior rural em abastecimento de água, eletrificação e apoio à criação, mecanização e aprimoramento de pequenos e micronegócios ajudaram a melhorar as condições de vida nas regiões mais pobres. A atração de indústrias de calçados e têxteis ajudou a mudar o perfil do Estado, pouco industrializado.
"Na segunda metade dos anos 90, houve uma ênfase nas políticas educacionais", conta Araújo. E, no novo século, o Ceará passou a se preocupar mais com avaliação e focalização. No Acre, a prioridade são a educação, a governança da máquina pública e a avaliação e focalização da política social.

De volta ao Ceará, ganhando o dobro
O agricultor Francisco da Rocha viu pela TV, em Ribeirão Preto, o sucesso de projeto de irrigação em sua terra natal
QUIXERAMOBIM
Houve incredulidade entre os dez companheiros de casa, na região rural de Ribeirão Preto, quando o agricultor Francisco Acelino da Rocha, de 33 anos, comentou as imagens de TV: "Mas isso aí é a minha terra!" A televisão passava um programa do Globo Rural sobre o Projeto Pingo D'água, na comunidade de São Bento, na zona rural de Quixeramobim, no sertão do Ceará, a 200 quilômetros de Fortaleza. Francisco e seus companheiros trabalhavam na lavoura de cana.
Três anos e meio depois, Francisco está de volta a São Bento e ganha cerca de R$ 700 por mês produzindo mamão e tomate, quase o dobro dos tempos de Ribeirão Preto. Ele é um dos 29 produtores que, ao longo do Vale do Riacho do Forquilha, de leito seco na maior parte do ano, aprenderam a cultivar, o ano todo, mamão, melão, tomate, goiaba, pimentão, pimenta de cheiro, maracujá e outras frutas e hortaliças.
O Pingo D'Água é um programa da prefeitura de Quixeramobim, com apoio do governo estadual e de universidades no Brasil e na França. Técnicos franceses passaram longas temporadas com os agricultores de São Gabriel e outras comunidades, no fim dos anos 90, e ensinaram como era possível construir pequenos poços em áreas de aluvião, ao longo do curso do Forquilha, que davam vazão o ano todo. Com a água dos poços, foram montados sistemas de irrigação por gotejamento, com microaspersores e tubos de plástico que passam pelo meio das plantações. Assim, em uma faixa de 250 metros em torno do Forquilha, numa área onde tradicionalmente só se plantava feijão, milho, mandioca e algodão, floresceram plantações de frutas e legumes, em minifúndios de menos de 2 hectares em média.
Os produtores chegam a empregar 3 ou 4 funcionários, pagando salário mínimo. É o caso de Raimundo Nonato Fernandes de Oliveira, de 44 anos, casado, com quatro filhos. Ele começou a trabalhar aos 13 anos na roça, também tentou a vida em São Paulo, mas não se adaptou. De volta a São Bento ainda na década de 80, passou aperto, fazendo bicos, e ganhando bem menos que um salário mínimo.
Empréstimo
Há três anos, depois de muita conversa com os franceses, ele tomou coragem, pegou R$ 14 mil emprestados no Banco do Nordeste, com a Prefeitura de Quixeramobim como avalista, e se lançou no Pingo D'Água. Com o dinheiro, comprou as mangueiras, a bomba, o sistema de microaspersores, o equipamento para cavar, e mudas e sementes de mamão e tomate.
"Em quatro meses eu já tinha dinheiro para comprar uma moto, o meu grande sonho", relata Raimundo. Mas ele preferiu liquidar o empréstimo antecipadamente, e investir mais nos seus 3 hectares. A moto, uma Titan 125, de 2001, só foi comprada recentemente.
Raimundo hoje tem renda mensal de R$ 1,2 mil. Ele foi um dos primeiros participantes do Projeto Pingo D'Água a reagir a uma inesperada catástrofe que se abateu sobre o Vale do Forquilha em janeiro. Numa região conhecida pela seca, chuvas torrenciais destruíram não só todas as plantações de frutas e hortaliças, como levaram de arrasto mangueiras, microaspersores e outros equipamentos. "Treze dias depois, eu já estava plantando mamão de novo; a chuva levou tudo, mas não levou minha coragem", diz.
Até o início dos anos 90, São Bento era um lugar quase miserável, sem luz nem água encanada. Carros-pipa e cestas básicas evitavam a fome nos piores momentos da seca, mas, além da dieta típica de feijão, rapadura e farinha, "comer carne uma vez por semana era muito", segundo o agricultor Joaquim Alves de Andrade, de 49 anos.
Em 1992, empurrado pela reivindicação da comunidade, o governo do Estado construiu a barragem Veneza, em São Bento, resolvendo o problema de água. "Quando a água chegou, fomos brigar pela energia", diz Antônio Martins de Franco, de 48 anos, um líder local. Ela veio em 1996, criando a condição básica para que o Pingo D'Água funcionasse.
Boa parte dos melhoramentos em São Bento e outras comunidades em 177 dos 184 municípios cearenses foi introduzida no âmbito do Projeto São José, a versão estadual do Programa de Combate à Pobreza Rural do Banco Mundial. Em 1993, o Ceará tinha 27,3% dos domicílios rurais ligados à rede elétrica, só perdendo para o Piauí no Brasil. Em 2002, o número tinha saltado para 77,4%, num aumento de 50 pontos porcentuais, disparadamente o melhor desempenho do País no período entre 20 Estados e o Distrito Federal, segundo recente pesquisa de Ricardo Paes de Barros, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Hoje, o Ceará ainda está na metade pior, mas já ultrapassou cinco outros Estados.
A eletricidade permitiu que comunidades como São Bento deixassem de ser lugarejos estagnados num tempo eterno de subsistência no limite de privação. Há otimismo no ar e bens de consumo como motos, um pequeno caminhão, geladeiras e TVs vão aos poucos multiplicando-se.
"Há 15 anos, havia 15 casas fechadas em São Bento; hoje todas foram abertas e estão construindo mais", diz o agricultor Raimundo, um dos mais vibrantes do local. "Nunca mais quero sair daqui."

Beneficiamento da castanha de caju mudou Barreira
BARREIRA
No município de Barreira, na serra do Baturité, a 62 quilômetros de Fortaleza, com 18 mil habitantes, dois contêineres de castanha de caju, com 100 toneladas e valor de US$ 80 mil cada, estão sendo exportados por mês. Há seis anos, a exportação era zero. Com apoio de projetos estaduais de eletrificação e mecanização, Barreira hoje conta com 8 minifábricas e 20 microunidades familiares de beneficiamento de castanha de caju, envolvendo 800 pessoas.
Antes deste boom, a castanha era vendida como matéria-prima para grandes fábricas em Fortaleza, gerando menos renda para a população local. Um típico beneficiário dos novos tempos é Francisco Olinto dos Santos Lima, de 43 anos, que começou a vida no cultivo de mandioca, feijão e milho. "Não dava nem meio salário mínimo por mês", diz. Hoje ele tira R$ 750 mensais com sua microunidade de processamento de castanha de caju, e acaba de comprar uma estufa de R$ 17 mil para aumentar a produção.
A virada da castanha de caju em Barreira começou há 16 anos, com o PA-Rural (Programa de Apoio Rural). Foi criada a Sociedade Beneficente de Barreira, associação comunitária cuja principal atividade, além de obras sociais, é uma cooperativa de beneficiamento de castanha. O PA-Rural, como a fábrica é chamada na cidade, é uma espécie de "unidade-escola", como descreve entusiasticamente Antônio Peixoto, vereador mais votado nas últimas eleições em Barreira. Sócio e fundador da associação, hoje ele tem também sua própria unidade.
Na década de 90, por meio do Projeto São José, um programa estadual de apoio a pequenas comunidades carentes, e com forte atuação em eletrificação rural, sistemas de água e mecanização, diversas pequenas fábricas de processamento de castanha de caju foram montadas. A primeira exportação foi em 1999. "Passamos 6 meses para conseguir", diz Peixoto, o principal exportador de Barreira, referindo-se ao período para juntar a carga de um contêiner. Agora, dois são preenchidos por mês, e a previsão é dobrar o volume em dois anos.

Cultivo de flores garante renda para jovens e não tão jovens de Aratuba
ARATUBA
O engenheiro agrônomo Edson Westin, paulista de 40 anos, mal podia imaginar que o convite em 2002 para participar de um curso de flores e plantas em Fortaleza iria mudar sua vida. Os contatos estabelecidos no curso resultaram num convite para trabalhar na Secretaria de Agricultura do Ceará. Dois anos depois, Westin, que era produtor de flores e hortaliças em Atibaia, está instalado no município cearense de Aratuba, de 14 mil habitantes, no ponto mais alto da serra do Baturité, a 945 metros do nível do mar.
O trabalho do engenheiro agora é ajudar jovens carentes da região a aumentarem sua renda cultivando flores, atividade nada tradicional no Ceará. "Jovens de espírito", faz questão de frisar Westin, já que nem todos os participantes do projeto que ele batizou de São Tomé (no espírito "ver para crer") são jovens cronologicamente. O projeto envolve ainda grupos que plantam hortaliças.
Renda
Raimunda Marli Ferreira Silva, de 32 anos, analfabeta, acha que o projeto São Tomé é sua grande chance. "Isto não incluiu meu grau de estudo", diz. Marli é casada, tem um filho, e a família recebe R$ 50 do Bolsa-Escola. Ela participa de um grupo de cinco pessoas, e fez seu primeiro plantio de crisântemos em fevereiro. Westin estima que, quando engrenar, o trabalho do grupo deve render R$ 230 por mês para cada participante. Na primeira venda, observa Carlos Antônio Cruz, de 39 anos, outro participante, "já deu para tirar R$ 150 para cada um".
Estes valores, como nota o engenheiro, não são desprezíveis na região. Um total de 81% da população de Aratuba vivia abaixo da linha da pobreza em 2000, e o analfabetismo atingia 43% da população com 25 anos ou mais, segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano.
Outra participante do grupo das flores, Juliana da Silva Queirós, de 20 anos, conta de forma singela como se envolveu com o São Tomé: "Fiquei sabendo que tinha chegado um paulista para iniciar um trabalho com flores." Ela já passou por um treinamento e foi a Fortaleza participar de uma feira de flores. Juliana mora com os pais e quatro irmão, e eles recebem R$ 90 por mês do Bolsa-Família. Agora, ela acha que vai poder ajudar com bem mais que isto.

A descoberta da escola para vencer o isolamento
Acre investe para educar seus 17 mil índios, divididos em 14 etnias, e formar professores para as tribos

Tarauacá

Marcos Vaná, um índio katukina de 6 anos, gosta da escola e já aprendeu a primeira letra do seu nome. Ele também gosta de pescar, e quer aprender a ler e escrever para ajudar sua família. Quem traduz as tímidas e quase inaudíveis frases de Marcos Vaná para o português é o professor Alberto Rosa da Silva, ou Tamakayã, um índio katukina de 30 anos.
Como a maioria dos 462 índios das quatro aldeias katukinas no município de Tarauacá, a 150 quilômetros de Cruzeiro do Sul, no oeste do Acre, Vaná não fala português. Até os 8 anos, ele será alfabetizado e estudará na língua katukina, do grupo lingüístico Pano. Dos 8 aos 12 anos, enquanto continuar a estudar em katukina, Vaná vai aprender a falar e escrever em português, a língua dominante da imensidão territorial e populacional que cerca o seu povo.

O Acre, um Estado que vem obtendo bons resultados no esforço para melhorar a educação dos seus 560 mil habitantes, está investindo igualmente na educação dos seus 17 mil índios, divididos em 14 etnias e um número bem maior de línguas e dialetos.

Neste exato momento, diversos professores índios estão a caminho da cidade de Plácido de Castro, onde amanhã, dia 18 de outubro, vai começar o módulo anual de formação presencial (isto é, que não é feita nas tribos), que dura pouco menos de um mês. Muitos professores das etnias ashaninka, manxineri, madija, kaxinawa, yanawa, que habitam áreas distantes e isoladas nas nascentes de rios na fronteira do Peru, estão se deslocando desde o início do mês, de acordo com Manoel Estébio Cavalcanti da Cunha, gerente de Educação Escolar Indígena do Acre.

Cunha explica que em 2000 havia apenas 67 escolas e 170 professores índios, e, destes, só 25 tinham a formação "intercultural, diferenciada e bilíngüe", equivalente ao segundo grau, conforme previsto pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, a "Lei Darcy Ribeiro". "Foi uma mudança de foco na educação indígena; até a nova lei, era para integrar, agora é para conservar e dar identidade", diz.

Hoje, o número de escolas subiu para 130, e o de professores, para 217. Na verdade, a formação de professores indígenas é lenta, e se baseia tanto nos cursos anuais em Plácido de Castro como em um trabalho local, nas aldeias. Nesta segunda parte do trabalho, índios mais graduados atuam na formação dos menos graduados, e a equipe de seis pessoas de Cunha, baseada em Rio Branco, dá suporte deslocando-se continuamente entre todas as aldeias (com exceção da minoria ainda isolada e avessa ao contato com os não-índios).

Entusiasmo
Uma mudança na política de educação indígena a partir de 2004 é que, agora, todos os professores estão formados ou em processo de formação equivalente ao segundo grau completo. "Estamos atendendo 100% da demanda", diz Cunha. A meta é formar 20 professores em 2004, e, a partir daí, 10 por ano. No momento, há uma discussão sobre a implantação de um curso superior indígena, para dar continuidade à educação dos já formados. O trabalho do governo acreano, na verdade, foi o de ampliar muito o que já vinha sendo desenvolvido desde 1983 pela organização não-governamental (ONG) Comissão Pró-Índio (CPI), que formou os primeiros 35 professores indígenas do Acre.
Tamakayã, professor há oito anos, participou no início de sua carreira de dois cursos não indígenas de capacitação, mas não ficou satisfeito: "Não tinha nada a ver com nossa cultura e tradições", conta. Em 2001, ele iniciou a sua formação no magistério indígena: "Achei este curso bem melhor e mais fácil, porque está ligado aos nossos costumes e mitos."

Ele é um dos professores que iniciam amanhã o curso em Plácido de Castro. Tamakayã considera estas ocasiões, quando a maioria dos professores índios do Acre passa várias semanas junta, particularmente úteis ao seu aperfeiçoamento: "Consegui entender muitas coisas que eu não compreendia trocando experiências com os outros professores", explica ele.

Apesar dos progressos, a educação indígena diferenciada e bilíngüe no Acre ainda tem um longo caminho a percorrer. A maior parte dos professores só leciona da 1.ª à 4.ª série, mas já há um grupo ensinando da 5.ª à 8.ª serie. Nas salas de aulas, crianças com nível equivalente a diferentes séries têm aulas juntas. Um mesmo professor, por sua vez, dá conta de diferentes disciplinas, como a língua índia, língua portuguesa, matemática, arte, história, geografia e educação física. Mas o que não falta é entusiasmo: "A qualidade da alfabetização dos alunos está melhorando", garante Tamakayã.

Duas línguas, para entender o mundo e continuar índio
Líder diz que português é necessário para negociar fora da tribo e falar a língua original, para reforçar a identidade

Tarauacá

"É fundamental falar as duas línguas", diz Orlando Katukina, de 43 anos, o txushawa, isto é, o principal líder, das quatro aldeias katukinas, fluente em katukina e em português. A sua visão, e a de muitos índios no Acre, é de que é preciso falar a língua original para reforçar a identidade, e o português para negociar com os não-índios. "Sem entender português, sem entender a lei, não tem como defender nosso direito à terra, e nossos outros direitos."

No dia 9, quando Manoel Estébio Cavalcanti da Cunha, gerente de educação escolar indígena, chegou ao "kupixawa" (espécie de caramanchão) de uma das quatro aldeias katukinas, em pleno "vete", ou festa pelos 18 anos da demarcação das terras do grupo, Orlando não perdeu tempo: cobrou do representante do governo do Acre a extensão de eletricidade a todas as casas da aldeia. Hoje, só as escolas e postos de saúde têm energia. "As lamparinas de óleo diesel estão dando problema de vista e de respiração nas crianças", queixou-se.

Ele acrescentou que ocorreram duas reuniões com representantes do governo sobre eletrificação e que integrantes da aldeia não foram convidados. "Se não vier a luz, vamos ao Ministério Público", ameaçou. Cunha respondeu que o governo do Acre considerava a demanda justíssima e que providências seriam tomadas. A eletrificação é um dos itens da lista oficial de reivindicações dos katukinas, que inclui a ampliação das terras e a elaboração de um "programa de longo prazo de auto-sustentação econômica e cultural do grupo".

Apesar de trajarem roupas habituais aos não-índios, e morarem em casas que não diferem muito daquelas dos camponeses da região, os katukinas são pouco assimilados, a começar pelo fato de que a maioria só fala a sua língua, do grupo Pano. Eles mantêm costumes tipicamente indígenas, como o casamento muito precoce, logo depois da puberdade das índias, e sucessivas gravidezes já desde o início da adolescência. Hábito que praticamente impede a formação de professoras.

O desejo de muitos na tribo parece o de manter as suas diferenças profundas, mas sem isolar-se do diálogo e da troca de experiências com os não-índios. A educação bilíngüe, neste sentido, parece ser um poderoso instrumento para reforçar a auto-estima e a identidade do grupo. "Moramos bem perto da cidade, e você não vê nenhum katukina pedindo nas ruas", diz o professor Benjamin "Cherê", representante estadual de educação indígena nas quatro aldeias.

Madeira à venda, mas dentro da lei
Em Xapuri, terra de Chico Mendes, extração legal de madeira ajuda economia

Xapuri

O seringueiro Raimundo Monteiro de Moraes, de 65 anos, companheiro de Chico Mendes, o maior símbolo do movimento ecológico no País, acaba de derrubar um majestoso pé de cumaru-ferro de 27 metros de altura. Estamos em plena Reserva Extrativista da Cachoeira, em Xapuri, parte importante da vida de Chico Mendes.

Em 1999, quando surgiu o projeto de manejo sustentável na reserva, a reação dos seringueiros foi de desconfiança. "Botamos um pé atrás", diz o produtor Nilson Teixeira Mendes, primo de Chico Mendes. Não era para menos. Desde os anos 70 até o assassinato de Mendes, em 1988, as famílias da reserva estiveram engajadas em uma luta literalmente de vida e morte para proteger as terras das forças que queriam trocar a floresta por plantações e pastos.

A idéia do manejo sustentável de madeira é viabilizar a economia do extrativismo, aumentando a renda da população da floresta. Por enquanto, 19 famílias da reserva estão envolvidas, mas o número deve subir para 29.

O esquema de manejo é rigoroso na preocupação com a sustentabilidade e toda a madeira produzida é certificada com o selo ambiental FSC (Forest Stewardship Council, ou Comitê Gestor das Florestas), que tem forte representatividade internacional e serve como garantia de que a floresta é explorada dentro das melhores técnicas de sustentabilidade.

Simplificadamente, cada família pode explorar uma área de 10 hectares por ano, que depois tem de ficar intocada por dez anos. Mesmo na área permitida há restrições, como árvores com diâmetro mínimo de 40 centímetros na altura do peito e obrigação de que a árvore cortada tenha pelo uma "filha", produzindo sementes, e duas "netas" na mesma área.

O processo é lento. O projeto começou em 2001 e até agora foram cortados pouco mais de 200 metros cúbicos. O engenheiro florestal Cedric de Ville de Goyet, que apóia o projeto como funcionário da Secretaria de Assistência Técnica e Extensão Rural do Acre, calcula que em 2004 pouco mais de 200 metros cúbicos de madeira devem ser produzidos.
A diferença para as famílias envolvidas é grande. Mendes estima que o lucro anual dessas famílias (que têm lavouras de subsistência na reserva) subiu de pouco mais de R$ 900 com a borracha e a castanha para R$ 3.000 com a exploração da madeira.

OESP, 17/10/2004, Nacional, p. A12-A14

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