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Nordeste, transposição e seca

OESP, Economia, p. B2
Autor: ORNÉLAS, Waldeck
01 de Dez de 2004

Nordeste, transposição e seca

Waldeck Ornélas

Mesmo sem haver sido sequer iniciada, a proposta de transposição do Rio São Francisco já causou vários males ao Nordeste: bloqueou a proposição de novas políticas para a região; condenou definitivamente a Sudene, que se pretendia ver restaurada e fortalecida; e, paradoxalmente, adiou em vez de viabilizar as ações de revitalização do Velho Chico.
Do ponto de vista de sua concepção, a transposição representa o retorno à velha "solução hidráulica", ideologia inspiradora da antiga Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, que se pensava sepultada desde as idéias luminosas de Celso Furtado, que ao velho Dnocs antepôs a moderna Sudene.
Era até admissível pensar-se nessa transposição nos tempos de d. Pedro II, hoje em dia não mais! De novo, nessa proposta, apenas o fato de constituir-se em uma versão sofisticada e mais onerosa da velha, tradicional, execrada e carcomida "indústria da seca".
Não há mais razões, de nenhuma natureza, para que se continue no País a insistir em enfrentar os problemas do Nordeste por meio da secularmente equivocada estratégia do combate à seca. Os tempos mudaram, as ciências evoluíram, a sociedade reviu os seus conceitos, a região se transformou, os fatos se impuseram: agora o que se precisa é explorar as potencialidades e possibilidades do Nordeste, transformando-as em oportunidades efetivas de desenvolvimento, emprego e renda para sua população.
Somente uma teimosia cega faz com que, recorrentemente, lideranças nordestinas, algumas até mesmo jovens, insistam nessa trajetória de retorno ao passado. Estão literalmente hipnotizadas por uma miragem vendida como solução milagreira que somente serviria no futuro para mais uma vez alimentar o velho preconceito contra o Nordeste. E o mais grave é que, como agora se trata de um empreendimento de longo prazo, mais de 20 anos estima-se, do qual não se pode sequer cobrar resultados imediatos, quando a frustração vier, os seus patrocinadores certamente não estarão mais na ativa para serem cobrados pelo povo ou responsabilizados pelo Ministério Público. Restará apenas a condenação da História!
Pelo menos de nossa parte não há nenhum radicalismo nem atitude provinciana na resistência à proposta. Apenas a noção da responsabilidade que a atual geração e a sociedade brasileira devem ter em relação aos recursos hídricos em geral e ao rio da unidade nacional em particular.
Todos sabem que não há insuficiência de água para abastecimento humano no Nordeste. Onde existem problemas, as soluções têm sido adotadas naturalmente, racionalizando e otimizando o uso dos recursos hídricos disponíveis. O Estado de Pernambuco, por exemplo, vem executando um ambicioso programa de construção de adutoras a partir do Velho Chico para várias áreas dos seus sertões, sem nenhuma objeção por parte dos que defendem o rio. A transposição, então, não é obra para matar a sede dos nordestinos. O que se combate é a falsa solução, é a mistificação, é o engodo.
Enquanto isto, projetos de irrigação como o Baixio de Irecê ou o Salitre, que serviriam para dar escala ao importante pólo de frutas do Submédio São Francisco, fortalecendo ainda mais a conquista dos mercados internacionais de uva e manga, agora inclusive o do Japão, ou fazer crescer a jovem vinicultura do Sertão, continuam sem a atenção devida, caminhando a passos de cágado. No caso do Salitre, por exemplo, sua primeira etapa está executada em 99%, mas não gera ainda nenhum benefício para a população, nem resultado para as economias nordestina e nacional. Esta sim deveria ser uma prioridade.
De nada adianta querer maquiar a transposição, trocando seu nome para "interligação de bacias", nem decorá-la com a promessa da criação de unidades de conservação, a exemplo do Parque Nacional do Cânion do São Francisco ou da APA da Caatinga, na região de Xingó, ambas necessárias, que serão bem-vindas, mas que não guardam nenhuma relação com a transposição.
O que se precisa é de uma política nova para o desenvolvimento do Nordeste, tendo como um dos seus itens estratégicos a revitalização do Rio São Francisco.

Waldeck Ornélas, presidente do SOS Velho Chico, especialista em planejamento, foi senador e ministro da Previdência e Assistência Social (1998-2001).

OESP, 01/12/2004, Economia, p. B2

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