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No Xingu, cenário para entender os erros nos assentamentos

OESP, Nacional, p. A9
04 de Set de 2006

No Xingu, cenário para entender os erros nos assentamentos
Com quase 10 anos de vida, área tem dois terços dos lotes abandonados e famílias sem o que comer

Roldão Arruda

São 9 horas e o sol já bate forte no chão do quintal. Com a camisa aberta por causa do calor, o agricultor Alzemer Rodrigues, de 43 anos, conversa com o Estado. Contido, economizando palavras, desfia as dificuldades que enfrenta para tocar seu lote de terra no Assentamento Ena, em Feliz Natal, município ao norte de Mato Grosso, na região de transição entre o cerrado e a floresta amazônica.

De repente,pára de falar. Mira a terra ressequida ao redor, ajeita o cabelo debaixo do boné e, sem alterar a voz, desabafa: "Isso aqui não tem jeito. O governo pode gastar o que quiser. Ficaria mais barato se levasse nós tudo para outro lugar."

Ouvindo a conversa, o vizinho Manoel Ribeiro da Silva, que tem 73 anos e é mais conhecido como Mané Queixada, por causa do queixo diminuto e afilado, arremata: "Isso aqui não devia chamar terra do Incra. O certo seria terra encravada."

O assentamento onde eles vivem vai completar dez anos no ano que vem e, como dizem os dois, é um caso exemplar dos desacertos dos programas de reforma executados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra ao qual Mané Queixada se refere. Surgiu em 1997, quando o governo comprou de um grupo empresarial uma fazenda de 30 mil hectares e a dividiu em duas partes.

Numa delas assentou 450 famílias; na outra criou uma reserva florestal, de propriedade coletiva dos assentados. A proposta era transformar o lugar num pólo produtor de alimentos. Mas tudo ficou na proposta. Atualmente no Ena só existe produção agrícola em 1% da área loteada no Ena. E do conjunto inicial de 450 lotes apenas 150 estão ocupados. Os outros foram abandonados, vendidos, divididos, arrendados ou anexados a propriedades vizinhas. Embora ilegal, o comércio de lotes é tão rápido que muitos já abrigam o quarto ocupante.

ESTUDO

A realidade do Ena e de outros assentamentos vizinhos, no Mato Grosso, veio à tona recentemente com a divulgação de um estudo do Instituto Interamericano de Cooperação Agrícola - IICA - sobre a situação de um conjunto de 22 unidades da reforma agrária na região do Rio Xingu. Verificou-se que todos enfrentam dificuldades para produzir alimentos.

No Ena até hoje não existe cooperativa agrícola. Uma farinheira doada pelo Incra, para que os assentados agregassem valor à produção de mandioca, foi desmontada e teve as peças roubadas. O Estado pôde ver o que restou dela apodrecendo numa casa abandonada.

A máquina beneficiadora de arroz também sumiu. Mas o sinal mais dramático do fracasso aparece na escola do assentamento. Segundo os professores, é comum pais de alunos pedirem para partilhar da mesa de almoço oferecido às crianças - porque não têm nada para comer em casa.

"Isto não é assentamento. É uma favela", protesta com voz forte o ex-caminhoneiro Carlos Quirino de Oliveira, o Roque, na varanda de sua casa. Ele é um dos poucos assentados bem-sucedidos, dedicando-se à criação de gado em seu lote e em outros que arrenda ao redor.

Oliveira culpa os assentados pelo fiasco: "Eles depredaram o que já estava construído, gastaram a ajuda que o governo deu para começar a vida, venderam a madeira dos lotes e sumiram."

Os assentados foram atraídos por sindicatos rurais, com o apoio de autoridades municipais interessadas em aumentar a população do município, segundo o estudo. Hoje estão divididos em torno de quatro associações que brigam entre elas e disputam o controle da reserva florestal coletiva. Não com interesses preservacionistas, mas para saber quem vai vender a madeira e ficar com o dinheiro.

Não se pode, porém, atribuir todos os problemas aos assentados. O desastre começou quando o Incra escolheu o local.

O Ena fica a 92 quilômetros de Feliz Natal, a cidade mais próxima, e a estrada não tem asfalto. No período seco, quando a região fica até três meses sem chuva, enfrenta-se buracos e nuvens de poeira tão intensas que os motoristas são obrigados a parar até que se dissipem. No período das chuvas, piora.

Além de distante, a terra é ruim. De acordo com o engenheiro agrônomo Werner Hermann, da Prefeitura de Feliz Natal, o solo do assentamento é frágil e pobre em nutrientes, que exige investimentos pesados, especialmente em calcário.

Mas, se alguém decidir comprar calcário em Feliz Natal, terá que pagar R$ 25 pela tonelada e outros R$ 35 pelo transporte. No sentido contrário, os produtos do Ena custam mais caro na cidade, por conta do transporte.

Ainda segundo Hermann, a área do Incra é a mais pobre da região em mananciais de água. Alzemer, que chegou há cerca um ano ao Ena e se instalou num lote abandonado, conta que já perfurou um poço de 29 metros de profundidade e não encontrou água. Vai buscá-la num rio a 3 quilômetros de casa.

E aqui vale lembrar outro desastre resultante da falta de organização. Mané Queixada, um dos mais antigos moradores, conta que um projeto financiado pelo governo para bombear água até as casas fracassou com roubo de canos e caixas de fibra de vidro.

O governo tem oferecido crédito para os assentados produzirem. Mas, segundo um técnico agrícola da região, é comum o assentado sumir após pegar o dinheiro. Entre os que ficam, a inadimplência chega a 80%.

Um dos raros agricultores que estão dando certo é Alcídio Schwab, paranaense que desembarcou na região há dois anos. Descendente de agricultores, ele e a família trabalham até 13 horas por dia e os resultados já podem ser vistos: com plantações irrigadas e criações de porcos e galinhas, o lote dele parece um oásis no cenário de abandono.

Quando algum visitante chega à sua casa, Alcídio o leva até uma pilha de melancias na porta da cozinha e oferece, vaidoso: "Chupe à vontade. Foi colhida aqui."

Pena que seja a exceção.

Projetos em área isolada cresceram no governo Lula

Para cumprir a promessa de assentar 400 mil famílias, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva tem feito o que os petistas condenavam quando agiam na oposição: estão empurrando as famílias de sem-terra para regiões distantes e sem infra-estrutura. Nos três primeiros anos do governo Lula, 66% dos assentamentos agrários foram na região da Amazônia Legal, em terras da União. Nos oito anos de Fernando Henrique, o índice foi de 55%.

"São assentamentos de faz-de-conta, feitos para inflar as estatísticas", afirma o advogado José Batista Afonso, da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Ele atua em Marabá, no Pará, uma das regiões que mais têm recebido assentamentos no atual governo. "Num desses projetos na região de Tucuruí, criado no ano passado, o assentado tem que caminhar 20 quilômetros a pé para chegar a uma estrada e de lá pegar uma condução até a cidade."

Na direção do Incra, em Brasília, já se observa uma divisão entre técnicos que apóiam a política de criação de novos assentamentos e outros que consideram que está na hora de estancar o processo, para assistir melhor os que já existem.

Em 36 anos de existência, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária já criou 7621 projetos de assentamentos, com uma lista de 683 mil famílias assentadas. Até hoje não existe um estudo global sobre a eficiência desses projetos, mas, de acordo com levantamentos localizados, muitos não conseguem produzir nem para a subsistência das famílias.

De acordo com o presidente do Incra, Rolf Hackbart, os assentamentos avançam mais em direção à Região Norte porque lá existem terras públicas. "É mais barato e mais ágil assentar naquelas áreas", afirma. "Esse trabalho também contribui para a regularização fundiária na Amazônia Legal, combatendo a grilagem de terras."

Hackbart afirma ainda que o governo tem evitado criar assentamentos em regiões sem infra-estrutura. "Consideramos que nosso principal desafio é dar condições para que as famílias produzam." R.A.

Estudos mostram problemas

O Assentamento Ena não é uma exceção. De acordo com os resultados do estudo socioeconômico e ambiental realizado pelo IICA, todos os 22 assentamentos da Bacia do Rio Xingu, em Mato Grosso, enfrentam problemas. Das 5.375 famílias beneficiadas com lotes de terra, apenas 2.449 (45%) residem neles. Num dos assentamentos, o Santa Lúcia, o índice de residentes é de 13%.

Para a equipe que realizou o estudo, sob a coordenação da geóloga Ana Brígida Cardoso, de Cuiabá, as causas da evasão das famílias são "a falta de escolas ou de ensino de qualidade, de assistência à saúde, de infra-estrutura de transportes (qualidade das estradas e de meios de transporte), recursos para a produção, distância das cidades e centros consumidores, entre tantos outros, bastante conhecidos dos gestores da reforma agrária".

Os pesquisadores também constataram que os filhos dos assentados não querem permanecer na terra, preferindo migrar para a cidade: "Quase não há adolescentes nos assentamentos."

A produção agrícola é pífia na maior parte dos casos. Predomina a pecuária, praticada precariamente pelos assentados, ou por vizinhos para quem arrendam as terras. A reportagem do Estado verificou que as famílias que sobrevivem melhor são as que contam com a aposentadoria rural ou participam de programas de distribuição de renda, como o Bolsa-Família.

De acordo com a assessoria de imprensa do Incra, a partir do estudo do IICA será desenvolvido um plano de consolidação da reforma no Estado de Mato Grosso. Ele deve atingir inicialmente 42 assentamentos na região do Baixo Araguaia. Ainda não há previsão de prazo para chegar à Bacia do Xingu. R.A.

OESP, 04/09/2006, Nacional, p. A9

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