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No São Francisco, tudo em jogo

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
26 de Nov de 2004

No São Francisco, tudo em jogo

Washington Novaes

Valerá a pena que a sociedade brasileira preste atenção à reunião que o Conselho Nacional de Recursos Hídricos realizará no dia 30, para examinar o projeto de transposição de águas do Rio São Francisco para o semi-árido setentrional. Estarão em jogo ali questões fundamentais - exatamente as que constituem hoje o núcleo do debate sobre os rumos do País. Que modelo de desenvolvimento se pretende ter? Continuar dando prioridade ao modelo essencialmente exportador de produtos primários (pois é para isso que se destinarão fundamentalmente as águas transpostas)? Dar solução ao problema de milhões de pessoas que sofrem com a seca (e que não serão atendidas pelo projeto)? Respeitar as decisões do Comitê de Gestão da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CGBSF), que tem competência legal para decidir e votou (42 votos a 4) contra a transposição de águas para projetos de irrigação (algodão, frutas, soja), exportação de camarões e outros fora da bacia? Desrespeitar um processo altamente democrático de decisão no CGBSF (representantes dos governos federal, estaduais, municipais, usuários, sociedade, empresas de água, geradoras de energia, universidades) e submetê-lo a de um conselho em que o governo federal, sozinho, tem maioria (29 de 56 membros)? Liberar um projeto dessa ordem de grandeza sem que ele tenha estudo de impacto ambiental aprovado e projeto licenciado (embora a ministra do Meio Ambiente o tenha apoiado publicamente)?
O comitê da bacia promoveu cinco consultas públicas, em que a esmagadora maioria decidiu que só concorda com transposição de águas se destinada a abastecimento humano - e para isso não há necessidade, segundo o parecer de especialistas como o professor Aldo Rebouças, da USP, e João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco, entre muitos. Ambos demonstram que o problema em alguns Estados é de gerenciamento, não de escassez.
E como aprovar o projeto, se o estudo de impacto ambiental não cumpre a primeira das exigências da lei, que é a de examinar outras possibilidades, nem analisa com rigor os impactos negativos (28) que ele mesmo menciona?
Ao que parece, entretanto, a questão será colocada para o CNRH quase só em termos de "vazão disponível". Até aqui, tem entendido o CGBSF que a vazão média do rio é de 1.860 m³ por segundo, dos quais 1.500 precisam ser mantidos para não prejudicar ambientalmente o ecossistema e, principalmente, a região do estuário, que é o berço de toda a cadeia da biodiversidade marinha. Restariam 360 m³, dos quais 335 já estão outorgados. A "sobra" de 25 m³ (sem contar planos de expansão da produção de energia elétrica e novos projetos de irrigação na própria bacia) seria muito inferior aos 127 m³/segundo que o projeto pretende transpor. Essas águas viajariam por 2.700 quilômetros, em dois eixos, superando desníveis de até 304 metros, que exigiriam a implantação de várias barragens, bombeamento e alto consumo de energia, para chegar à Paraíba, ao Rio Grande do Norte e Ceará. Com isso "a bacia do São Francisco abre mão do seu futuro, de novos usos", argumentam os adversários do projeto. E terá desde logo uma perda de, no mínimo, R$ 1 bilhão por ano na geração de energia.
Mas o projeto traz uma nova avaliação de disponibilidade feita pela Agência Nacional de Águas - que permitiria a transposição -, quando até maio último a situava em 330 m³/segundo até Xingó e mais 50 m³ após essa barragem.
O caminho que se está delineando - adverte o secretário do Meio Ambiente de Minas Gerais e ex-ministro José Carlos Carvalho - é um desrespeito à democracia participativa, exercitada no processo de consultas e votação no CGBSF, e que obedece ao que está na lei da Política Nacional de Recursos Hídricos (9.433/97). Esta chega a denominar os comitês de "o parlamento das águas da bacia", que a toma como "unidade de planejamento" e exerce "a gestão descentralizada e participativa". Ao comitê cabe "aprovar o Plano de Recursos Hídricos da Bacia" (artigo 38, inciso III). Mas tudo isso pode cair por decisão da maioria governamental no CNRH.
O jurista Paulo Affonso Leme Machado lembra ser "princípio nuclear do Direito" que uma decisão administrativa não pode ser voluntarista, tem de ter uma justificação irretorquível - sob pena até de responsabilização penal de cada um dos votantes. Não pode deixar de examinar o estudo de impacto ambiental e verificar se é subsistente, competente. Não pode esquecer que a "caridade hídrica" deve começar pelos habitantes da bacia cedente. E, quanto ao ângulo técnico, "a transposição é exceção; precisa ser demonstrada sua viabilidade sob todos os ângulos; e, no caso de dúvida, deve prevalecer o princípio da precaução".
A propósito, menciona ele o caso recente da Espanha, onde o governo anterior (Aznar) havia aprovado um projeto de transposição das águas do Rio Ebro para outras regiões carentes - sob protestos da bacia cedente. O novo governo (Zapatero) cancelou a decisão. E optou, para suprir as carências das regiões que seriam beneficiadas, por um projeto de dessalinização de águas do mar - mais caro, mas que não prejudica a bacia do Ebro. No Brasil mesmo - diz o professor Leme Machado -, a intensa participação da sociedade no comitê de gestão do Rio Piracicaba obrigou a uma renegociação com a Região Metropolitana de São Paulo, que resultou em redução do fornecimento de água.
Finalmente, pergunta o professor Leme Machado: qual é o papel dos comitês de bacia? Só o de referendar decisões governamentais?
Talvez valha a pena lembrar nessa hora o recém-falecido ex-ministro Celso Furtado. Num de seus livros de memórias, A Fantasia Desfeita, ele descreve como a quase totalidade dos dramas do semi-árido nordestino com a seca se deveu à má gestão dos recursos hídricos (e do solo) e sua apropriação pelos poderosos ao longo de séculos. Por isso mesmo, o primeiro projeto da Sudene era basicamente de conhecimento dos recursos e decisão sobre seu aproveitamento. Durou pouco, com o movimento militar de 1964, a cassação de Celso Furtado, seu exílio.
Não precisamos repetir a História.

Washington Novaes é jornalista

OESP, 26/11/2004, Espaço Aberto, p. A2

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