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No quintal de casa, o rio Negro

A Crítica, Bem Viver, p. BV1
Autor: MICHILES, Aurélio
20 de Mai de 2007

No quintal de casa, o rio Negro
Chaminé é palco para 'Visões do rio Babel', com exibição de filmes raros e imagens preciosas sobre ou em torno do afluente

Cláudia do Valle
Da Equipe de A Crítica

O rio que corre na frente da casa de milhares de amazonenses, o Negro, observado, navegado, habitado e visualizado sob vários ângulos e impressões ao longo das décadas, é o protagonista da Mostra de Filmes & Vídeos 'Visões do Rio Babel', que acontece em Manaus de 22 a 25, no espaço cultural Usina Chaminé.

Exibições
Trata-se de um evento sócio-cultural dentro de um amplo seminário que será realizado no mesmo período e lugar, promovendo conversas e discussões sobre o futuro da bacia do afluente. As exibições têm curadoria do cineasta amazonense Aurélio Michiles, radicado em São Paulo, convidado do Instituto Sócio-Ambiental (Isa), um dos promotores do evento.

O curador levou três meses para fazer a seleção de filmes que serão exibidos em sessões abertas ao público, com distribuição de senhas das 11h às 16h, no dia programado, em virtude da lotação do Teatro Chaminé. A mostra tem itens raros e preciosos, todos sobre o rio Negro ou que acontecem em volta dele e de suas populações tradicionais indígenas.

'Uma greve no Ministério da Cultura (MinC) atrapalhou um pouco a seleção na Cinemateca, mas felizmente tudo foi contornado. Todos os títulos têm sua importância e foram escolhidos seguindo um critério conceituai. Há desde a visão pueril até a ficção com Ajuricaba', fala o curador.

A mesa de abertura da mostra, no dia 22, às 18h, terá a presença de personalidades renomadas da cultura e arte não só amazonense, mas brasileira, com Milton Hatoum, Márcio Souza, José Ribamar Bessa, Beto Ricardo (mediador) e de Michiles.

Além do aspecto cultural, didático e documental de "Visões do rio Babel", sua maior importância é ligar o sinal vermelho nos amazonenses, em especial nos manauenses, para que reflitam sobre o que vão querer para o futuro: "Se continuarmos a sujar, não cuidar e tratar do Negro como ele tem nos tratado há milênios, vamos deixar de ser o que somos. Seremos donos de um rio morto, podre, esgoto, avenida asfaltada. Bacana é ele ter vida, com seus seres aquáticos e ser opção de lazer e de potencial econômico".

E como anuncia o curador, é preciso apenas ter paixão pelo rio, por que sem ele 'não somos ninguém'.

Pontos
Detalhes de curtas e longas

Entre os filmes, pela preciosidade, a curadoria destaca as imagens feitas pelo alemão Koch-Grünberg (enterrado no cemitério S.J.Batista); 'Kinja Iakaha' traz o olhar próprio dos índios atroari, um registro da intimidade, do cotidiano e da relação intensa com a natureza; 'Rio Negro - Missão de São Gabriel' traz cenas impressionantes sobre a maneira como os índios foram catequizados anos a fio e para terem disciplina e funcionarem como uma linha de montagem artesanal.

Programação
Dia 22, a partir das 20H
KOCH-GRUNBERG EM KOIMÉLOMONG (Brasil, Região Guayana). Dir. Theodor Koch-Grünberg e H. Schmidt, 1911, p&b, 9 min, silencioso. Alemanha. Precioso fragmento do início do século 20, dos índios taulipang da Guiana.
RIO NEGRO - Dir. e fotografia: Lúcio Kodato e Roberto Malzoni Filho (Zetas),1973, 64 min. Nos anos 70, dois jovens cineastas paulistas resolvem documentar uma viagem de Manaus a São Gabriel da Cachoeira. Cotidiano dos índios e caboclos ribeirinhos.
DAVI CONTRA GOLIAS - Direção e roteiro: Aurélio Michiles, 1994, 10 min. O líder Davi Yanomami (Prêmio Global, 1989) fala sobre o massacre sofrido por seu povo, na aldeia de Haximú em 1993.
DESANA, DESANA - 2005, 90 min, prod. TV Cultura - AM. Gravação ao vivo durante o Festival Amazonas de Ópera. Libreto de Márcio Souza e Aldísio Filgueiras; músicas de Adelson Santos.

Dia 23, a partir das 19H15
RIO NEGRO - Missão de São Gabriel - Dir. Major Luiz Thomaz Reis, p&b; silencioso, 1927, 45 seg. Documentários da expedição Rondon, como a escalada do Monte Roraima, nos anos 20, Cenas impressionantes da catequese dos índios no alto Rio Negro.
IAUARETÊ - CACHOEIRA DAS ONÇAS - Dir. Vincent Carelli, 2006, 48 min, documentário. Prod. Vídeos nas Aldeias. Os índios tariano, do noroeste da Amazônia, filmam seu próprio registro cultural dirigido às futuras gerações.

Dia 24, a partir das 19H15
KINJA IAKAHA - Um dia na aldeia - Direção e fotografia: Araduwá Waimiri, Iawusu Waimiri, Kabaha Waimiri, Sanapyty Atroari, Sawá Waimiri e Wamé Atroari, 2003, 40 min. Índios registram o dia-a-dia da aldeia Cacau.
CHASSEURS ET CHAMANS - Dir. Raymond Depardon, França, 2003, 32 min. 0 documentarista e fotógrafo francês Raymond Depardon filmou um grupo de caçadores e um grupo de xamãs.

Dia 25, a partir das 20H
AJURICABA - O rebelde da Amazônia - Dir. Oswaldo Caldeira, 1977,105 min. Ficção. Numa interpretação livre, este filme conta a história do líder épico e mítico do rio Negro, o tuxaua Manaú, Ajuricaba.

'Somos incapazes de lidar com a água'

Entrevista: Aurélio Michiles

Qual é o grande fim da mostra?

O objetivo é de chamar atenção para o nosso rio. As pessoas estão indo cada vez mais para dentro da mata e esquecendo o rio Negro, que é o que mais contribuí com recursos hídricos. Ele tem uma importância histórica e cultural muito grande e a palavra Babel está mais ligada não à confusão, mas ao fato de abrigar muitas nações indígenas, vários idiomas e uma riqueza lingüística extraordinária.

Mas e as tentativas constantes, ainda não permanentes, de se educar para a conscientização ambiental, o que incluía preservação dos rios?

Há um paradoxo neste ponto. Ao mesmo em que se trabalha a importância da água na educação, a minha geração, que viu Manaus cortada por igarapés e podia nadar neles, assim como os banhos, hoje não tem mais nada disso. 0 rio quase virou paisagem agônica, com cenas de calamidade pública como as, vistas na seca. Isso nos humilha e mostra nossa incapacidade de lidar comer maior reserva de água doce do planeta. Somos incapazes também de colocar água na torneira de milhares de pessoas. E seguimos, paradoxalmente, sujando e assoreando os afluentes.

Então, qual o caminho para evitar a tragédia anunciada?

É chamar atenção, como na mostra, e refletir sobre o tema. Trata-se de um clamor para que possamos nos reunir, nós que moramos e nascemos em cima da água e não temos nem como bebê-la.

E como surgiu o convite para a curadoria?

Além de ter uma relação de muito tempo com o Isa, desde sua criação, acredito que também fui chamado pela ligação com a imagem, o cinema e os documentários. E sou um interessado pelos assuntos relacionados à Amazônia, tendo nascido à margem esquerda do rio Negro (Manaus).

No que tem trabalhado ultimamente?

Acabei de fazer um documentário sobre o bairro paulista Higienópolis, em razão da minha paixão pela arquitetura, a qual cursei, mas não exerço a profissão. Então ficou o olhar antropológico e arquitetônico sobre a vida e a cultura da humanidade. 0 bairro traz a história de 500 anos da arquitetura paulistana, desde os Bandeirantes até os tempos modernos. Tenho outros projetos, um deles sobre o quintal da minha casa. Será um documentário sobre Manaus e o nosso quintal, a floresta.

E o que faz quando volta à Terra Natal?

Gosto de passear e de conhecer novos lugares da cidade da qual sou fruto. De ver como ela se movimenta, em qual direção quer ir.

Perfil
Nome: Aurélio Michiles
Experiência profissional: Cineasta amazonense, realizou vários documentários, entre eles 'Que Viva Glauber!'. É autor de 'O Cineasta da Selva', sobre a vida e obra de Silvino Santos.

A Crítica, 20/05/2007, Bem Viver, p. BV1

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