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No Pará, índios vivem acuados na própria terra

O Globo, O País, p. 18
04 de Set de 2011

No Pará, índios vivem acuados na própria terra
Invasões de traficantes, fazendeiros e garimpeiros já ocupam metade dos 279 mil hectares da reserva do Guamá

Cleide Carvalho

Ao longo do Rio Gurupi, pelo menos 11 aldeias indígenas vivem acuadas em terras que, pela lei, deveriam ser protegidas. Cerca de 50% dos 279 mil hectares da Terra Indígena do Alto do Rio Guamá, no Pará, já foram invadidos por traficantes, desmatadores ou fazendeiros. Ultimamente, chegam também garimpeiros, interessados em retirar amostras e pedras de um solo que, já se sabe, é rico em minérios.
Nas aldeias próximas ao encontro dos rios Gurupi e Icoaraci, indígenas fazem vistas grossas aos roçados de maconha que se espalham mata adentro, a partir da comunidade Guarajupema. Formada por brancos que alegam ocupação anterior à demarcação da reserva, a comunidade reúne indivíduos extremamente miseráveis a vigilantes do tráfico, que, de moto, abordam possíveis visitantes assim que eles tiram o pé da voadeira, à margem do rio.
Enquanto alguns índios são ameaçados pelos traficantes, em aldeias vizinhas a proximidade tem feito aumentar o número de usuários da droga, índios de fala pastosa e olhos vermelhos, que se tornam cada vez mais dóceis à ocupação de suas terras.
- Se o índio vai só olhar, não acontece nada. Mas se diz que a terra é dele e que não pode plantar maconha ali, é ameaçado - explica o cacique Reginaldo Noronha Tembé, 42 anos.
A invasão começa a criar uma cisão entre as aldeias e a reserva, na divisa com o Maranhão. Na aldeia Cajueiro, a mais próxima do município de Paragominas (são 125 km, por estrada de terra), a mais influenciada pelo contato com os não índios, o pajé Chico Rico, de 78 anos, vai deixar o grupo e virar cacique de sua própria aldeia, às margens do Rio Uraim.
A três quilômetros de distância, à beira do Rio Gurupi, o cacique Isaac e sua mulher, Brasilice, montaram sua própria aldeia, a Sussuarana, e vivem rodeados apenas dos filhos, suas respectivas mulheres e maridos, e dos netos. Brasilice, uma índia determinada de 54 anos, não quer que seus netos, ainda pequenos, brinquem com as crianças da Cajueiro quando vão às aulas, para evitar que se "contaminem" ainda mais com o modo de vida dos "brancos".
Os ânimos entre os índios estão exaltados porque a terra foi transformada em território sem lei. Pior: falta consenso entre eles sobre a forma de tratar os invasores, e já não é assim tão claro quem é de fora e quem é parente.
Brasilice evita falar da Guarajupema e apressa o passo ao ser perguntada sobre as inúmeras atividades ilegais dentro das Terras Indígenas do Alto do Rio Guamá. A situação é preocupante.
Além do desmatamento de, pelo menos, 14% de sua área, a reserva é ocupada por duas grandes fazendas e dezenas de pequenas propriedades. E, ultimamente, chegam pesquisadores e garimpeiros.
Outro problema é a desavença com os madeireiros. Parte dos índios, especialmente os mais jovens, negociam a entrada dos cortadores. Troncos de ipê chegam a ser negociados pelos índios a R$50. Intermediários revendem o metro cúbico da madeira por um preço pelo menos cinco vezes maior. Como a terra indígena é de todos, cada índio faz o que quer.
- Sou contra isso aí. Como vão viver depois os meninos? - indaga Chico Rico.
O pajé diz que os culpados pelo problema são os próprios índios, que se casam cada vez mais com forasteiros. Invasores conquistam as índias e, depois, usando o sobrenome Tembé - que batiza cada um dos cerca de 1.600 índios da etnia que vivem em terras do Pará -, passam a morar na reserva e levam seus próprios parentes, aumentando o descontrole.

Saída é ocupar as margens do rio
Ideia para barrar invasões requer mudança nas áreas de saúde e educação

Quanto maior a vigilância contra o desmatamento nas reservas legais de florestas em propriedades particulares, pior a pressão sobre as terras indígenas. No Alto do Rio Guamá, o cacique Reginaldo, que se destaca pela capacidade de articulação com os não índios, está com a ideia de fazer a ocupação da faixa da reserva acompanhando o curso do rio.
Se esta proposta vingar, nascerão inúmeras pequenas aldeias onde cada cacique mandará apenas na sua própria família.
Hoje, quando uma família ou grupo decide se mudar, ele mesmo escolhe para onde ir. Mas se o propósito for vigiar o limite com as "terras dos brancos", terão de se estabelecer em locais previamente determinados.
Para quem se instala onde quer dentro da reserva, chegar a um consenso sobre quem vai morar aonde parece uma solução que mais divide do que agrupa os índios.
A divisão das aldeias também dificulta ainda mais os serviços prestados pelo poder público. Hoje, cada vez que uma família decide sair de um lugar e ocupar outro, é preciso segui-la com todo o aparato disponível para garantir serviços básicos de educação e saúde. É preciso, por exemplo, instalar voadeiras (barcos de alumínio movido a motor) para levar e trazer crianças das escolas e definir logística de atendimento de saúde.
Por sorte, o povo Tembé gosta de morar à beira do rio, o que facilita a chegada até eles. Já do lado do Maranhão, os Urubu Ka'apor temem as águas do Gurupi e se embrenham para viver dentro da mata. Nem por isso escapam das invasões. As duas reservas indígenas - Guamá e Turiaçu - têm sido usadas como rota de tráfico na travessia do rio entre Pará e Maranhão.

Há costumes que resistem, apesar da pressão

Dono de 279 mil hectares de terras demarcadas na região do Guamá, 50% delas invadidas e, pelo menos, 14% já desmatadas, o povo Tembé vive sob pressão de invasores. Mas talvez a maior luta seja para provar que ainda hoje são índios e, por isso, precisam continuar sob proteção do Estado. Segundo a lei, índios têm garantia de terra, saúde, cesta básica e educação aonde quer que desejem morar, dentro da área que lhes foi reservada.
Nas seis escolas da reserva, onde estudam cerca de 450 crianças e adolescentes, os livros são adaptados: enquanto, nas cidades, a história diz que Joãozinho caiu da moto, na aldeia, o indiozinho despenca do cipó. Mas se, há muito, os índios usam tênis Nike, agora andam de motocicleta tal qual o Joãozinho. E quando os professores sugerem atividades com apetrechos tradicionais, os alunos reclamam.
Jairo Cunha Rodrigues, um educador de 41 anos que veio do Piauí, ainda fica admirado com a postura dos índios, mas diz que não cabe julgar se é certa ou errada. Funcionário da Prefeitura de Paragominas, pergunta ao pajé Chico Rico como é que se faz para tirar os ossos de cobra usados no artesanato.
- A cobra morre e a gente deixa lá no mato. Depois que os bichos comem, vamos lá e pegamos os ossos - explica o pajé, de 78 anos. É um tempo que a maioria não sabe esperar.

O Globo, 04/09/2011, O País, p. 18

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