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No Acre, política local e discurso federal favorecem desmatamento

O Globo, Sociedade, p. 36-37
01 de Set de 2019

No Acre, política local e discurso federal favorecem desmatamento

MANOEL URBANO (AC)
LEANDRO PRAZERES
leandro.prazeres@oglobo.com.br J
ORGE WILLIAM jw@bsb.oglobo.com.br
Enviado especial FOTOS

Sem controle. Gado e desmatamento em uma fazenda no município de Tarauacá, no Acre, terra natal do ambientalista Chico Mendes: dados indicam que o estado está se transformando na mais nova fronteira de ocupação da Amazônia
Equipe do GLOBO percorreu mais de mil quilômetros por estradas do Acre, estado que, segundo dados sobre desmatamento, é uma região por onde se expande a ocupação da Floresta Amazônica. Discurso tolerante de Bolsonaro e política local influenciam as ilegalidades.

Foi por pouco. O fogo que José Bonifácio Teixeira, 66 anos, ateou em parte do seu pequeno terreno quase saiu de controle e incendiou acasa. No domingo passado, quando as chamas ardiam ao redor do casebre de madeira, os satélites que monitoram a Amazônia colocavam Teixeira na estatística que alarma o mundo: ado aumento das queimadas. Durante uma semana, O GLOBO percorreu mais de mil quilômetros pelas estradas do Acre para investigar o que faz a floresta queimar. Aterra natal do seringueiro Chico Mendes (1944-1988) foi escolhida porque os dados de desmatamento indicam que o estado está se transformando na mais nova fronteira de ocupação

da Amazônia. Em 2018, a taxa anual de desmatamento no estado aumentou 72% em relação ao ano anterior, segundodados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). De janeiro a agosto deste ano, o número de focos de queimada no Acre aumentou 90% em relação a 2018.

A resposta, no entanto, não é simples. Há décadas, a destruição da floresta era movida por uma mistura de ganância, corrupção e miséria. Agora, um combustível ainda mais inflamável parece ter sido adicionado: apolítica. Dados do Inpe dos últimos 20 anos mostram que já houve períodos com mais focos de incêndio nareg ião-especialmente e manos de seca severa, agravada por fenômenos como o El Niño. O problema, dizem especialistas, é que pela primeira vez em décadas o discurso oficial do governo é visto como incentivo à ocupação desordenada da floresta. Umexemploéa explicação dada por Teixeira para ter ateado fogo em uma parte de floresta nativa da área em que vive, a colônia Presente de Deus, entre os municípios de Sena Madureira e Manoel Urbano. -O governo liberou para os pequenos derrubarem o seu roçado. Então, todo mundo avançou mais. Só que, aí, os grandes exageraram -disse.

MUDANÇA EM DECRETO
Desde a campanha, Jair Bolsonaro declarou que mudaria a política ambiental do país. Ameaçou fundir o Ministério do Meio Ambiente ao da Agricultura, mas recuou. Disse que iria acabar como"ambientalismo xiita" equem ais nenhuma terra indígena seria demarcada; criticou ONGs e a "indústria da multa", ao se referir aos fiscais do Ibama. Quando dados do Inpe indicaram alta nas taxas de desmatamento, Bolsonaro criticou o então diretor do órgão, o cientista Ricardo Galvão, que acabou exonerado. Diante do aumento das queimadas pelo país e das críticas internacionais, Bolsonaro editou um decreto, na última quarta-feira, proibindo o uso de fogo para desmate por 60 dias em todo o país. Anteontem, porém, flexibilizou a medida para prever as queimadas para práticas agrícolas em estados fora da Amazônia Legal, que compreende os estados do Norte, parte do Maranhão e do Mato Grosso. No Acre, dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) mostram que, no acumulado de 12 meses, o desmatamento aumentou 15%. Joel Bogo é procurador da República e conhece bema região. Atualmente lotado no Acre, já trabalhou em Rondônia, um dos líderes no ranking de queimadas deste ano. Ele faz parte da equipe que deflagrou a Operação Ojuara no primeiro semestre deste ano e desarticulou uma quadrilha de fazendeiros, grileiros e servidores públicos especializada em desmatar. Para ele, o discurso do Planalto reverbera imediatamente. - Quando há um discurso que considera atividades criminosas como algo regular, e quando se coloca na mesma balança aquele que está invadindo áreas ilegais e aquele que trabalha de forma legal, a gente acaba passando uma mensagem equivocada. Questionada pela reportagem, a assessoria de imprensa da Presidência disseque o Planalto não irias e pronunciar. Apolítica local também influencia a ocupação predatória da floresta, como mostra o caso do Projeto Agroextrativista Antimary (PAE), numa região entre o Acre e o Amazonas até pouco tempo atrás praticamente intocada. Nos últimos anos, ela virou alvo da extração ilegal de madeira e do desmatamento para formação de pasto. A situação vem sendo investigada pela Força Tarefa Amazônia, do Ministério Público Federal. Em um áudio obtido pelo GLOBO, o secretário de Produção e Agronegócio do Acre, Paulo Wadt, diz ter conversado com o senador Márcio Bittar (MDB-AC) para iniciar uma campanha de "sensibilização" da direção do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para mudar o status do PAE. A ideia é que eled eixe de ser agroextrativista,com regras mais rígidas para exploração, e se torne um projeto agrário, com normas mais brandas. "Vamos pegar todas as informações possíveis pra que a gente possa sensibilizar o presidentedo Incra e aí ele faz isso via decreto", diz Wadt no áudio. Procurado, ele confirmou a autoria da gravação.
O Incra foi consultado pelo GLOBO, mas não respondeu.

Miséria é vista como estímulo ao uso indevido da terra
Estado é o quarto em que mais famílias vivem na pobreza, segundo o IBGE

Indignação. João Batista: "Está melhor quem tá preso que quem tá solto"
No horizonte, uma coluna de fumaça à beira da BR-364 chama a atenção. Com as mãos na cintura, João Batista da Silva Filho, 55, tem o rosto crispado e os olhos azuis semicerrados. De perto, acompanha o fogo que ele mesmo ateou avançando sob reaterra que ocupa em um

assentamento rural no interior do Acre. O fogo forte ameaça chegar à casa pobre de madeira onde, pela janela, sua mulher assisteà fumaça subir. -Se eu levar uma multa de R $200 mil, to cofo gono resto do lote. Se acharem que eu estou abusado, podem e prende reprenderam inha família. Hoje, está melhor quem tá preso que quem tá solto. Afala indignada de Batista resume um dos fatores que fazem a Amazônia queimar: a pobreza. Incapaz de viver da agricultura ou do manejo florestal, decidiu que era hora de aderir ao pasto. Ele diz não ter nenhuma cabeça de gado, mas sabe que assim que sua gleba estiver "limpa" (sem árvores), não faltarão fazendeiros querendo arrendar o pasto.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE ), o A cr eéo quarto estado como maior percentual de famílias vivendo na pobreza: 47,7%. Para cada vez mais gente, a pecuária tem sido a alternativa

econômica mais viável. Segundo o IBGE, entre 2004 e 2017, o rebanho bovino do estado aumentou 38%, enquanto a média nacional foi de um incremento de 4%.

- A economia verde ainda não consegue dar segurança econômica para os mais pobres. Muitas vezes, isso faz com que elas acabem aderindo à pecuária para ter algum tipo de estabilidade - diz a professora do departamento de Engenharia Florestal da Universidade Federal do Acre (UFAC) Sabina Ribeiro. O biólogo e professor de Ecologia da UFAC Fernando Augusto Schmidt diz que, apesar de haver iniciativas pontuais bem-sucedidas no Acre aliando o desenvolvimento econômico à preservação, elas não ganham escala. -Esse modelo de economia verde ainda não está oferecendo uma alternativa viável à população mais pobre. (L.P.)

Na terra sem lei, milícias e pistoleiros ditam as regras
Polícia investiga grupos de criminosos que atuam a serviço de fazendeiros no Acre, no Amazonas e em Rondônia

LEANDRO PRAZERES
Enviado especial leandro.prazeres@bsb.oglobo.com.br
MANOEL URBANO (AC)
JORGE WILLIAM

Ameaças. Os agricultores Francivaldo Santos (à esquerda) e Maurir de Souza Santos relatam o cotidiano de perseguições por que passam os posseiros
Francivaldo Santos e Maurir de Souza Santos são posseiros, termo usado para designar, em geral, agricultores de baixa renda que ocupam uma área em disputa na Justiça. Na complexa equação fundiária da Amazônia, quase sempre o posseiro está de um lado, e o grande fazendeiro, do outro. No dia 6 de agosto, esses dois universos colidiram no interior da floresta. Na propriedade de Francivaldo, ele e Maurir foram ameaçados de morte por um policial militar a serviço de um fazendeiro que diz ser dono das terras onde ele vive. O caso, que está sendo investigado, ilustra uma realidade comum na região e que fez com que policiais federais

de três estados juntassem forças: o uso de milícias e pistoleiros para garantir o uso da terra. A PF identificou a existência de ao menos três grupos criminosos que atuam a serviço de fazendeiros no Acre, no Amazonas e em Rondônia para fazer valer, na selva, a lei do mais forte.

'VÁCUO DE POLÍCIA'
Os grupos investigados atuam em três áreas: Sul do Amazonas, a região de Ponta do Abunã, no Norte de Rondônia, e o entorno do município de Porto Velho, capital do estado. Três dos dez municípios com maior número de focos de incêndio no Brasil estão na região: Porto Velho, Apuí e Lábrea (os dois últimos no Amazonas).

O delegado Jacob Guilherme de Melo já atuou na Operação Lava-Jato e agora é um dos responsáveis pelas investigações de crimes ambientais no Acre. Ele fez parte da equipe que desarticulou uma milícia formada por policiais militares que atuava para um grupo de fazendeiros do Amazonas e do Acre. E diz que o desmatamento e as queimadas na região têm tido o suporte desses grupos criminosos. Em maio, a PF prendeu três policiais militares do Amazonas que, segundo as investigações, atuavam a mando de fazendeiros da região. Para investigar o grupo, a PF usou estratégias como quebra de sigilo telefônico e telemático (e-mail) e também realizou ações controladas. Em uma das mensagens obtidas, o policial militar Salomão Alencar Faria avisa um oficial que não poderia fazer um determinado serviço porque estaria trabalhando para o fazendeiro Sebastião Gardingo, conhecido como "Tonzinho", também denunciado por participação no esquema. "Eu não tava aqui, não. Eu tava pro mato, no dia anterior, eu tava pro mato. Tava trabalhando lá pro Tonzinho", diz uma das mensagens. Jacob explica que nem todas as organizações criminosas da região usam policiais. A que atua em Ponta do Abunã, por exemplo, tem utilizado pistoleiros.

- Tem um vácuo de polícia ali naquela área. E nesse vácuo quem manda é a pistola -diz o delegado. Darlene Braga é uma das coordenadoras da Comissão Pastoral da Terra no Acre. Ela teme que o avanço da fronteira agrícola do Brasil rumo ao estado cause mais mortes como a de Chico Mendes, morto a tiros em 1988. -Infelizmente, a gente vê que as coisas estão ficando cada vez piores. A gente se preocupa porque parece que há um impulso novo nessa direção e ficamos com medo de que mais mortes como a de Chico Mendes aconteçam.

A reportagem procurou a assessoria de imprensa da Polícia Militar e da Secretaria de Segurança do Acre, mas, até a conclusão desta edição, não obteve resposta. As defesas de Salomão e Sebastião Gardingo não foram localizadas.

Corrupção contribuiu para o desmatamento, mostram investigações

Segundo investigações da PF e do Ministério Público Federal, um esquema de corrupção ajudava fazendeiros e grileiros da Amazônia a se livrar das multas aplicadas pelo Ibama. Em troca, servidores corruptos do Ibama recebiam "tupi": dinheiro. O empresário Edjalvas Mesquita Filho e o fiscal do Ibama Carlos Gadelha foram presos no Acre em maio deste ano durante a deflagração da Operação Ojuara. As investigações apontam que a organização da qual faziam parte foi responsável pelo desmatamento de uma área de 86 mil hectares, equivalente à metade do tamanho da cidade de São Paulo. No relatório final sobre o caso, a PF afirma que a fumaça que, nos últimos meses, atingiu as cidades de Rio Branco (AC), Boca do Acre (AM) e Lábrea (AM) é, possivelmente, causada pela ação dos criminosos. Segundo as investigações, o esquema funcionava de forma organizada. Fazendeiros e grileiros procuravam Edjalvas para se livrar de multas aplicadas pelo Ibama. Ele, por sua vez, fazia contato com Gadelha, que se encarregava de proteger seus clientes, mantendo-os informados sobre operações de fiscalização. Para o delegado Jacob Guilherme de Melo, um dos responsáveis pelo caso, o elo entre corrupção e desmatamento na Amazônia é histórica. A reportagem não conseguiu localizar as defesas de Carlos Gadelha e Edjalvas Mesquita.

O Globo, 01/09/2019, Sociedade, p. 36-37

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