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Nas aguas de maio, afinal um caminho?

OESP, Espaco Aberto, p.A2
Autor: NOVAES, Washington
03 de Jun de 2005

Nas águas de maio, afinal um caminho?
Washington Novaes
Costuma o professor Ignacy Sachs relembrar um de seus mestres na Polônia, segundo o qual é preciso o tempo de uma geração (20 anos) para que uma idéia nova comece a ser levada em conta. Parece ter razão. As recentes inundações catastróficas na cidade de São Paulo estão, afinal, trazendo para o centro do debate advertências e idéias que vários especialistas têm defendido ao longo das últimas décadas nas áreas do planejamento urbano e dos recursos hídricos, tais como os perigos da impermeabilização do solo na cidade, precariedade das redes de drenagem, a insuficiência dos piscinões como solução.
Um desses especialistas costuma lembrar que o Aeroporto de Congonhas começou a ser construído em meados da década de 1930, quando o aeroporto civil da época, o Campo de Marte, ficou totalmente inundado pelo Rio Tietê. Pois nos quase 70 anos decorridos desde então, não só se permitiu a ocupação de toda a área de inundação natural entre o rio e o campo, como ainda se construíram às margens do Tietê pesadas vias de trânsito. Na semana passada, o Campo de Marte ficou inundado de novo, assim como partes da área até o rio. Incluindo a Marginal do Tietê.
Há mais de uma década vem o professor Ladislau Dowbor advertindo: se uma chuva de 100 milímetros cair sobre todos os 1.500 quilômetros quadrados do Município de São Paulo, serão 150 milhões de toneladas de água, 150 bilhões de litros, que desabarão sobre a cidade, sem ter onde se infiltrar (90% a 95% do solo está impermeabilizado, disse o noticiário da semana passada). Tal volume de água terá de correr para o fundo dos vales e terminará na calha do Tietê. De terça para quarta-feira passadas, foram 140 milímetros em 17 horas, talvez 210 bilhões de litros - a maior chuva de outono registrada desde 1943, mais que o dobro da média mensal habitual, de 66,4 milímetros.
E não foi apenas o solo impermeabilizado que essa torrente encontrou. Como assinalou editorial deste jornal, várzeas, cabeceiras de rios e áreas de mananciais estão ocupadas, obras de drenagem têm sido negligenciadas, galerias pluviais estão subdimensionadas.
Diante desse quadro, que se propõe? Falam autoridades em rebaixar mais a calha do Tietê, colocar bombas sob pontes para retirar água de pistas e construir novos piscinões, como o do Oratório, que, ao custo de R$ 22 milhões, reteria (se não for assoreado por lixo e outros resíduos) cerca de 300 mil metros cúbicos de água (menos de 1,5% da água despejada em 17 horas).
O secretário Mauro Arce avançou mais: é preciso mudar leis de uso e ocupação do solo; obrigar as construções a ter áreas verdes maiores; "controlar o crescimento da cidade", que continua a "explodir nas periferias". Curiosamente, a proposta vem poucos dias depois de o Conselho Nacional do Meio Ambiente haver mudado a regulamentação das áreas de preservação permanente, para permitir regularização de ocupações humanas ilegais, mineração e outras atividades econômicas. Pode-se até compreender o fato consumado de não se conseguir evacuar dessas áreas milhões de pessoas - melhor, então, dotá-las de saneamento básico (acontecerá?); mas pelo menos se poderia ter estabelecido um limite: só até aqui, não serão regularizadas outras.
Outros especialistas lembraram a possibilidade de obrigar grandes estabelecimentos comerciais a colocar pisos porosos no seu entorno. Outros, ainda, a necessidade de devolver aos rios suas planícies de inundação natural - o que, no caso paulistano, exigiria o recuo das chamadas marginais. E aí se chega de novo à questão das mudanças climáticas.
Não há explicação meteorológica suficiente para uma chuva como a da semana passada já no fim do outono - a não ser a de mudanças climáticas em curso, com alteração também no formato das precipitações. São cada vez mais freqüentes chuvas que em poucas horas concentram mais que o volume habitual em um mês. Ainda em abril, caíram sobre Taboão da Serra, em 24 horas, 97,8 milímetros, mais que a média do mês (76 mm).
Há poucos dias, um seminário de experts, em Bonn, no âmbito da Convenção sobre Mudanças Climáticas, deixou claro: estas estão em curso e são irreversíveis; atingirão com mais intensidade as áreas tropicais e subtropicais (como as nossas); países como o Brasil sofrerão secas e inundações mais intensas, dificuldades progressivas no abastecimento de água das grandes cidades, perdas na agricultura. É fundamental, disseram os experts, trabalhar para que a elevação da temperatura da Terra (0,8 grau Celsius até aqui) não chegue a 2 graus, porque as conseqüências seriam inimagináveis. É preciso que cada país se adapte às mudanças. E construa sistemas de previsão do tempo competentes, capazes de avisar com a antecedência necessária o que vai acontecer, pôr em alerta os sistemas de defesa civil (mais de 5 mil municípios brasileiros nem corpo de bombeiros têm).
A Alemanha, por exemplo, já está aplicando muitos bilhões de euros por ano na "devolução dos rios ao seu curso natural" (desretificação, descanalização, retirada de construções e populações). Aqui teremos, no mínimo, de atualizar a legislação sobre impermeabilização do solo; criar a obrigatoriedade de sistemas de retenção provisória de águas de chuvas em cada imóvel (a água pode até ter alguns usos, antes de ser liberada); impedir a ocupação de novas áreas de preservação permanente; rever e ampliar as redes de drenagem. E rever cálculos de construção, principalmente de estruturas como pontes, viadutos, etc., pois os impactos a que têm de resistir com os novos caudais são muito maiores.
Principalmente, não há tempo a perder. Como disse o secretário Mauro Arce, se não fizermos nada, "será o caos".
Washington Novaes é jornalista.

OESP, 03/06/2005, p. A2

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