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Não índios na Raposa Serra do Sol levam tensão à área

FSP, Brasil, p. A8
Autor: João Carlos Magalhães e Marlene Bergamo
27 de Dez de 2009

Não índios na Raposa/Serra do Sol levam tensão à área
Casados com índias, de 20 a 30 homens têm "visto" para permanecer na reserva
Indígenas acusam não índios de infiltrar bebida alcoólica e facilitar o furto de gado; "eles é que implicam com a gente", afirma um dos agricultores

João Carlos Magalhães
Da agência Folha, na Raposa/ Serra do Sol (RR)
Marlene Bergamo
Enviada especial à Raposa/Serra do Sol (RR)

Nove meses depois do que parecia o fim da polêmica na reserva indígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima, a permanência de 20 a 30 não índios na área, mesmo depois da retirada das 50 famílias de agricultores e do desmonte das fazendas, é motivo de tensão na região de 1,7 milhão de hectares.
Após violentos protestos, a demarcação contínua da reserva foi confirmada em março deste ano pelo Supremo Tribunal Federal. A operação de expulsão dos agricultores e arrozeiros foi finalizada em junho. Mas a retirada deles não acalmou os ânimos, como a Folha atestou em visita à reserva.
Parte dos cerca de 18 mil a 20 mil índios que a habitam reclama agora da presença de 20 a 30 não índios que, por serem casados com índias, ganharam do Judiciário um "visto" para permanecer dentro da Raposa.
Para membros do CIR (Conselho Indígena de Roraima), entidade que defendeu a expulsão do "homem branco", essas pessoas resistem a um modo de vida coletivo e levam bebida alcoólica para dentro da reserva, além de facilitarem o furto de gado por pessoas de fora.
A homologação da Raposa/ Serra do Sol foi uma das mais problemáticas da história recente. Desde a demarcação, em 1998, a disputa pela terra motivou sequestros de agentes da PF, incêndio de pontes e atentados contra índios. Hoje, os atritos mais ásperos ocorrem na Vila Surumu, onde estavam concentradas as fazendas dos arrozeiros.
Por trás do aparente marasmo da vila, as diferenças ainda incomodam os moradores. "É uma cicatriz que ficou", disse o líder indígena Cristóvão Galvão Barbosa, do CIR. "Eles [não índios] trabalhavam com os arrozeiros, não aceitam o trabalho comunitário. Estão acostumados com o dinheiro", disse. O "trabalho comunitário" foi estabelecido pelo CIR e se traduz em lavouras e rebanhos que são cuidados por todos e na preponderância do direito coletivo em relação ao direito individual sobre a terra.
Na Surumu, por exemplo, há um não índio casado com uma indígena que, segundo o CIR, colocou seu rebanho em uma área que havia sido delimitada como de toda a comunidade.
Um caso grave ocorre na comunidade Nova Esperança, onde um homem apelidado Paraná -que só passou a viver na reserva junto com sua mulher índia após a decisão do STF- se apossou de um sítio no qual há a maior nascente de água da região. Para demarcar a posse, passou uma cerca em volta da área, onde cria gado, conforme a Folha viu numa visita à área.
O furto de animais preocupa os índios, já que a criação dos 20 mil bois e vacas é seu principal meio de sobrevivência. Os não índios também são acusados de levar a cachaça, proibida nas comunidades controladas pelo CIR. Na Surumu, as bebidas alcoólicas sumiram do pequeno comércio, mas basta falar com o vendedor para conseguir comprá-las.
Os homens casados com indígenas, todos ex-funcionários dos arrozeiros e ligados à Sodiur (Sociedade em Defesa dos Índios Unidos do Norte de Roraima), que reúne os índios a favor da presença do "branco", defendem-se dizendo que são alvo de discriminação diária.
"Eles é que tentam implicar com a gente", disse o agricultor Francisco, que não quis dar seu sobrenome. Vindo do Tocantins, mora há dez anos na Surumu, onde trabalhava numa fazenda de arroz. Agora está desempregado. "Se fosse pela minha mulher [índia], a gente tinha ido embora. A tendência é só miséria daqui para a frente."

Índios reagem contra proibição de garimpos

Da agência Folha, na Raposa/ Serra do Sol
Da enviada à Raposa/Serra do Sol

Na comunidade do Flexau, encravada no interior da terra indígena Raposa/Serra do Sol, os índios se dizem prontos para reagir violentamente caso a Polícia Federal tente cumprir a determinação do STF (Supremo Tribunal Federal) de impedir o garimpo de ouro e diamante, mesmo que manual.
"Estamos preparados para matar ou morrer", disse o índio Neilton Barbosa, que durante a visita da reportagem mostrou as flechas que usaria no caso de a PF voltar a fazer uma operação na comunidade, como ocorreu em outubro, quando equipamentos de garimpagem foram destruídos. "Isso aqui é o que a gente usa em quem mente para os índios", disse.
A frase de Barbosa remete ao suposto comportamento dos policiais durante a operação. Segundo os índios, os policiais chegaram "bonzinhos", afirmando que era apenas uma visita de rotina, e foram escondidos até a área de garimpo onde estavam as máquinas -motores e bombas usados para revolver o fundo do rio e facilitar a localização dos minerais.
A retirada do ouro pelos índios ocorre há décadas. Mas ela foi explicitamente negada pelo STF em sua decisão de março.
Criminalizar a atividade, dizem os moradores, é secar uma das poucas fontes de renda -eles vendem o mineral em Uiramutã, município que fica dentro da reserva.
"Aqui não vai mudar nada. Não vamos ser comandados. Aqui a lei não existe", afirmou Barbosa. A PF não quis comentar as declarações e afirmou que suas operações apenas cumprem ordens judiciais.
O orgulho exibido contra o "invasor" na Flexau, comunidade que foi contrária à demarcação contínua, tem um viés diferente nos povoados que nunca gostaram da presença de não índios. Nelas, o policial federal é aceito por ter promovido a expulsão dos arrozeiros. Mas outros estranhos não são tão bem aceitos pelos índios, que agora se sentem mais donos da terra.
Em visita anterior da Folha à reserva, em maio passado, bastava uma autorização simples da Funai (Fundação Nacional do Índio) para percorrer a região. Hoje essa autorização tem de ser dada pelo próprios indígenas, de maneira antecipada. E, mesmo assim, eles podem se recusar a falar -como aconteceu na última visita da reportagem, neste mês.
Quando a Folha se aproximou da antiga fazenda Depósito, que pertenceu ao arrozeiro Paulo César Quartiero, para falar com os que se apossaram do que restou da propriedade, sua presença foi submetida a uma espécie de "assembleia" de cerca de 20 índios. De forma unânime, eles decidiram que não dariam entrevistas. (JCM E MB)

Produtores de arroz dizem que colheita caiu 52%

Da agência Folha, em Boa Vista
Da enviada a Boa Vista

Para os arrozeiros expulsos da reserva Raposa/Serra do Sol (RR), a solução encontrada para continuar produzindo foi arrendar, por até R$ 200 o hectare, terras fora da reserva.
Mesmo assim, eles dizem que diminuíram, em média, sua área plantada de arroz em 58% na safra de 2009, quando comparada com a de 2008.
Se na anterior foram 25 mil hectares, na atual são 12 mil. A colheita caiu 52% (de 3,125 milhões de sacas para 1,5 milhão de sacas). No total, o valor da safra será de R$ 66,5 milhões, R$ 71 milhões a menos.
Os produtores, que em seu auge foram responsáveis por cerca de 6% do PIB (Produto Interno Bruto) do Estado, em 2009 devem ter uma participação inferior a 3% no índice.
Para piorar, eles têm de enfrentar as multas aplicadas pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e pelo governo de Roraima por supostos crimes ambientais, que somam cerca de R$ 90 milhões. Todas são passíveis de recursos.
Ainda assim, nos arredores da capital do Estado, Boa Vista, onde ficam as usinas dos rizicultores, o movimento não parece muito diferente da época em que os arrozeiros ainda ocupavam a reserva.
As únicas lembranças da expulsão são os pátios, agora cheios de maquinário agrícola, parado e enferrujando. Tudo foi retirado das antigas fazendas -nas quais hoje moram índios, mas que já não são utilizadas para o plantio maciço.
Paulo César Quartiero, principal líder dos arrozeiros, é o único dos seis produtores que não está plantando. Por enquanto, espera a decisão da Guiana sobre a possibilidade de ir produzir no país vizinho. Ele considera o arrendamento de terras um mau negócio.
Ele chegou a se reunir no segundo semestre deste ano com Bharrat Jagdeo, presidente da Guiana, que tenta atrair novos investidores estrangeiros.
Para Nelson Itikawa, presidente da Associação dos Arrozeiros de Roraima, a logística de trazer os produtos de volta ao Brasil torna o negócio arriscado. Além disso, a Guiana "emprestaria" as terras, não as cederia completamente. Segundo ele, há desânimo em "começar tudo de novo" em outro país. (JCM E MB)

FSP, 27/12/2009, Brasil, p. A8

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