VOLTAR

Não basta um dia

O Globo, Economia, p. 32
Autor: LEITÃO, Míriam
07 de Jun de 2014

Não basta um dia

Míriam Leitão

É o tema que decidirá nosso futuro no planeta, mas merece apenas um dia de lembrança e vamos todos adiante, displicentes. Estamos vivendo um ano esquisito, em que a falta de água deveria ser o centro de um debate profundo, mas entrou apenas nas trocas de acusações da briga eleitoral. O Dia do Meio Ambiente passou tão rápido que nem permitiu uma discussão sobre o permanente.
O Brasil tem um dos maiores estoques de água doce do mundo. Quando se olha no mapa da distribuição global do risco hídrico, o país tem as cores de menor risco. No entanto, nossa maior cidade usa o volume morto de uma reserva, e o setor elétrico treme de medo de faltar água nos reservatórios das usinas.
O governo federal aponta o dedo para o governador de São Paulo, acusando-o de falta de planejamento, que levou à crise de abastecimento; a oposição aponta o dedo para a presidente por erros de administração que levaram à crise energética. Os dois têm razão. Para se defender, ambos culpam São Pedro, que não tem culpa de nada.
Fomos avisados pelos cientistas de que o mundo passará a viver eventos extremos mais frequentemente; a natureza já deu sinais de que a água não é inesgotável. É o elemento sem o qual a vida não é possível. Nenhuma vida. Por ter importância vital, deveria ser valorizada e defendida, mas é vista como um recurso renovável que só por capricho de uma entidade celeste está em falta, no momento.
Ainda recentemente o Brasil fez uma lei para reduzir a proteção às margens dos rios. Tem adiado a aplicação da pouca coisa boa dessa legislação desatualizada. É claro que estamos no tempo que deveria ser ampliada a margem de cobertura vegetal na beira dos rios. O mais importante curso de água do Brasil deveria ser bem tratado desde a sua nascente em Minas e por todo o seu caminho através do Nordeste, a região mais árida do país. Mas gasta-se dinheiro volumoso numa obra para transpor o que corre o risco de secar. A lógica seria protegê-lo do desmatamento das margens, do assoreamento, dos esgotos, do uso perdulário para entregar o Velho Chico caudaloso e vivo às futuras gerações. Mas o dinheiro público é gasto em canais de desvio cada vez mais caros na suposição de que eles podem irrigar as urnas no curto prazo.
Da Mata Atlântica, restam fragmentos que somados dão percentual de apenas um dígito, para usar medida econômica. Mesmo assim, o desmatamento aumentou em 9%. Que delirante insensatez pode permitir a supressão de cobertura florestal no bioma no qual vive a maioria dos brasileiros? Essa mata remanescente, que agoniza após cinco séculos de ataques, garantirá a vida dos rios e o clima mais ameno no tempo que está por vir.
A Amazônia enfrenta nos últimos anos um retrocesso. O governo decidiu reduzir o território de áreas protegidas dando uma espécie de licença para matar. Não admira que no ano passado tenha havido um aumento do ritmo do desmatamento, após anos de queda. A revista "Science" publicou elogios ao Brasil pela queda do desmatamento em 2013. O problema é que comparou com a média dos anos de 1996 a 2005, quando houve o auge do desmatamento. Depois disso, o país derrubou mesmo a taxa de desmate anual. Mas, no ano passado, subiu.
Mesmo se cair em 2014, não será suficiente. Já foram arrombadas as cercas de áreas de conservação, já foi aprovada a lei que anistia quem desmatou ilegalmente, já se fortaleceu o princípio da impunidade nos crimes ambientais. Retrocedemos onde estamos obrigados a avançar sempre. Um dia apenas não basta para os alertas sobre os riscos que corremos. Para o meio ambiente, todo dia é dia, toda hora é hora.

O Globo, 07/06/2014, Economia, p. 32

http://oglobo.globo.com/economia/miriam/posts/2014/06/07/nao-basta-um-d…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.