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Na trilha, o encontro com os 'flecheiros'

Estado de S. Paulo-São Paulo-SP
Autor: LEONÊNCIO NOSSA
24 de Nov de 2002

2 jovens assustados da tribo correram e não atenderam a chamados em línguas indígenas

Para os indigenistas da expedição ao Vale do Javari, fotografar galhos quebrados, trilhas abertas no mato e outros vestígios sutis da presença de índios isolados costuma ser suficiente para demarcar a área de uso de uma floresta. Não havia expectativa de encontrar flechas ou cerâmicas, sinais de proximidade - um raio de 10 quilômetros - das aldeias vistas em sobrevôos. Mas nem tudo aconteceu conforme o planejado.

A expectativa de percorrer 125 quilômetros de pântanos e morros, com declives, que não constam dos mapas, obrigou o comando da expedição a um desvio de rota. A caminhada durou mais do que o previsto e resultou em uma volta de 267 quilômetros, quase três vezes a distância de São Paulo a Campinas. Com farinha racionada e pouco tempo para caça e pesca. Roupas foram jogadas fora para diminuir a carga. E o grupo acabou entrando novamente no território dos "flecheiros".

O primeiro sinal foi um caldeirão de alumínio, talvez tomado de seringueiros que passaram por ali. Depois, uma panela de barro intacta. E dois acampamentos temporários com 10 e 14 cabanas de palha. O nível do rio estava baixando. E os riscos de a expedição encontrar algum índio isolado aumentavam na mesma proporção.

Com a estiagem, os índios descem das terras altas para as várzeas e ocupam os acampamentos de verão, atrás da fartura dos rios amazônicos. Após andar 8,7 mil metros em linha reta, a expedição surpreendeu-se com uma jangada de três toras de paxiúba, abandonada na beira do Jutaí. Até então, não se sabia que os "flecheiros" dominavam técnicas de construção de embarcações.

Indícios como esse ajudam o governo brasileiro a dimensionar as terras de um povo ameaçado. "Mais importante do que saber quem são os 'flecheiros' é protegê-los do contato com os brancos", salienta Sydney Possuelo, coordenador da expedição. Nem sempre foi assim. Políticas anteriores de aproximação destruíram muitas culturas e dizimaram populações, com epidemias de doenças infecciosas, para as quais os índios não tinham anticorpos.

Apesar da mudança de orientação da Funai, nem mesmo a rigorosa conduta de alguns sertanistas consegue evitar encontros casuais. E esta expedição não foi exceção.

Em 16 de julho, a trilha aberta na floresta levou os mateiros direto à passagem usada por dois jovens aparentando 20 anos, 1,60 metro, fortes e com cabelos pretos até o pescoço. Os "flecheiros" estavam desarmados e tinham o órgão sexual preso ao quadril com cipó. Ao ver os brancos, eles atravessaram um galho, que ligava as margens do igarapé. O grito de um deles ecoou na floresta.

Para acalmá-los, intérpretes matis, marubos e kanamaris tentaram explicar que a expedição não queria chegar perto. "A gente não faz mal, parente!", gritou Narean Kanamari. Escondido no mato, um dos isolados retrucou com outro grito. Em seguida os dois "flecheiros" correram, atravessaram uma ponte primitiva sobre o Rio Jutaí, de 50 metros, com apoios de cipós. E desapareceram.

Invasão - O susto dos índios tem explicação. Nos anos 80, 200 funcionários da Petrobrás invadiram suas terras. Dois prospectores de petróleo morreram. Malocas foram queimadas e seus moradores se dispersaram na mata, passando a temer os brancos e a viver escondidos. O antropólogo João Pacheco de Oliveira, pesquisador do Museu Nacional do Rio de Janeiro, afirma que os "flecheiros" são refugiados de guerra. "Sua história é escrita com buracos, ninguém conta os massacres", diz. "Eles não saíram da aurora da humanidade, mas de conflitos e epidemias."

Assim foi com os matis também, que participaram da expedição como guias e intérpretes. Desde o primeiro contato com os brancos, nos anos 70, os matis sofreram com epidemias. Atualmente, são 216 índios, mas chegaram a apenas metade disso. Em 1993, os Rios Ituí e Itaquaí foram fechados ao tráfego de brancos e a comunidade voltou a crescer. As crianças de menos de 11 anos representam 51% da população.

Os matis também resgataram suas tradições. Depois do contato com os brancos, aos poucos, haviam deixado de fazer as pinturas corporais e colocar adereços rituais. Só voltaram a ter orgulho de usar tatuagens de tinta vegetal vermelha, brincos redondos, pedaços de madeira espetados no rosto e semicírculos de osso, no nariz perfurado, quando os indigenistas mostraram fotos de roqueiros e punks ocidentais, com piercings e tatuagens, afirmando que entre os brancos também havia tribos com "tradições" semelhantes. Tiemã, o mais experiente dos matis, conta que se aproximou de brancos por causa dos bichos: "A gente viu caçador usar terçado e cachorro, e gostou muito".

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