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Na trilha dos índios do RN

Jornal de Fato-Mossoró-RN
Autor: Julierme Torres
04 de Abr de 2004

Oficialmente o Rio Grande do Norte não tem índios desde 1872. Mas, o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) colocou isso em xeque. A sondagem contou 3.168 índios vivendo em território potiguar. Uma população que pode ser considerada bastante representativa. Ao mesmo tempo em que o censo apontou a existência de mais de três mil índios no Rio Grande do Norte, deixou as perguntas sobre a localização e o estilo de vida dessa população. O JORNAL DE FATO decidiu procurar essas respostas e descobriu que a população indígena em território potiguar, embora já bastante descaracterizada, é bem maior do que mostrou a estatística. A base para essa constatação vem de estudos, ainda preliminares, que estão sendo feitos pelo Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Segundo a professora Julie Cavignac, esses mais de três mil índios contados pelo IBGE estão vivendo nas cidades. São pessoas com costumes totalmente urbanos e que se identificaram como indígenas a partir do conhecimento próprio sobre seus descendentes. Mas as pesquisas de Julie mostram indícios muito fortes de que ainda existem descentes de índios vivendo em comunidades, encravadas no interior do Rio Grande do Norte, com costumes bastante preservados. A professora já conseguiu catalogar 13 localidades com essas características. A maior dessas localidades é Catu, distante 6,2 quilômetros da pequena cidade de Canguaretama, na região de Natal. Lá ainda vivem 105 famílias. É a comunidade do Rio Grande do Norte que está mais perto de conseguir ser reconhecida pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) como indígena. Para chegar a Catu, a equipe de reportagem teve a ajuda de Cláudia Moreira, estudante do curso de Serviço Social da UFRN que está terminando uma extensa pesquisa sobre a comunidade. Catu é hoje uma localidade ilhada. Como não existe o reconhecimento da Funai, a terra foi gradativamente sendo ocupada por uma usina de cana-de-açúcar. A mata virgem foi substituída por quilômetros de canavial. A comunidade acabou ficando isolada, resistindo no meio do canavial. Mesmo sem reconhecimento e recebendo a influência moderna, denunciada pelas antenas parabólicas nos casebres de taipa, Catu conseguiu conservar muitos costumes. Os traços da herança indígena estão por toda parte. O estilo de vida dos moradores, a alimentação e, principalmente, os traços físicos denunciam a hereditariedade indígena. Um dos habitantes de Catu que melhor relata essa herança indígena é Vandregecílio Arcanjo da Silva, o popular "Vando". Ele é o mais "estudado" dos moradores de Catu. Conseguiu terminar a faculdade de pedagogia. A instrução só ajudou Vando a assumir sua etnia. Ele se reconhece como índio, baseado nas origens de família, e garante que a quase totalidade dos moradores de Catu tem a mesma procedência. Esse mesmo nível de consciência foi demonstrado por Manoel Serafim, popularmente chamado na comunidade de "Nascimento", um simpático morador de Catu que vive com o dinheiro das vendas em um pequeno quiosque. Ele garante que é índio. Essa certeza vem da família. "Minha bisavô foi pega na mata, feito um bicho bruto", informou. São os costumes dos moradores de Catu que fortalecem esses testemunhos. Até hoje, os moradores de Catu comem a farinhada, o bolo preto (ver receita), dançam o zambê e o coco de roda, embora os grupos estejam desativados, e quando estão doentes recorrem à curandeira da aldeia antes de procurar o posto médico. Vando disse que os moradores de Catu são uma mistura das tribos potiguaras, que habitavam a região litorânea do Rio Grande do Norte, como os tapuias, que estavam no interior. Ele conta que os tapuias foram expulsos pelos fazendeiros e procuravam novas terras. Costumavam se instalar em regiões próximas a rios. Daí a formação da aldeia, que fica nas margens do rio Catu, ainda usado para a pesca e para lavar roupas e panelas.

CRENÇAS - A herança indígena de Catu também está nas crendices. A comunidade tinha um local que eles consideravam sagrado. Era o Cemitério dos Anjos. Espaço onde tradicionalmente eram enterradas as crianças que morriam na comunidade. Era nesse cemitério que os habitantes de Catu faziam as orações e rituais religiosos. Hoje o Cemitério dos Anjos não existe mais. A usina de açúcar não reconheceu a área como sendo dos moradores e plantou cana-de-açúcar. "Passaram o trator por cima dos cadáveres da minha comunidade. Isso é um desrespeito aos direitos humanos", afirmou Vando.

Longevidade e costumes preservados
Seguindo o mapeamento da professora Julie Cavignac, a equipe de reportagem do JORNAL DE FATO chegou à localidade de Amarelão, na zona rural da cidade de João Câmara. Embora não esteja tão avançada como Catu, na luta pelo reconhecimento da Fundação Nacional do Índio (CATU), a comunidade impressionou pelos traços de seus moradores e pelo nível de preservação. Uma das características de Amarelão é a longevidade de seus moradores. Quase todos são descendentes de uma mesma família, a Mendonça, na qual é comum se encontrar pessoas com 90, 100 e até mais de 100 anos de idade. A aposentada Quitéria Félipe, 84, é um bom exemplo. Deitada na rede, em sua casa modesta, ela traz no rosto o perfil da cabocla indígena. Mostrando uma lucidez pouco comum para alguém com sua idade, Quitéria faz relatos da infância que só confirmam a origem indígena. "Eu tenho sangue de índio", afirmou dona Quitéria. Ela tem essa certeza a partir dos relatos que ouviu da avó, que morreu faz 36 anos, quando tinha 115 anos de vida. Dona Quitéria lembra bem de quando era criança. Ela disse que a alimentação da família dependia da caça e da pesca. Atribuições eram do pai. Junto com a mãe e as outras irmãs, ela tinha a missão de cuidar da casa e carregar água do riacho do Amarelão. Essa divisão de responsabilidades e a base alimentar lembra bem a tradição indígena. "Nóis comia era caça do mato e mel de abelha. Todo dia meu pai ia matar um bicho e pescar", disse dona Quitéria, acrescentando que a família também trabalhava a agricultura, de onde tirava a mandioca bruta para fazer beiju. Na mesma comunidade, vive Francisco Raimundo Barbosa. Um simpático senhor com 95 anos de idade. Ele ainda segue os costumes indígenas que aprendeu com o pai, no começo do século passado. Francisco Raimundo disse que vivia de comer basicamente caça e mel de abelha, mesma base alimentar relatada por dona Quitéria. O detalhe é a forma como essa caça era feita. Ele garante que não se usava arma de fogo. Mesmo não fazendo menção a artefatos característicos de índios, como arco e flexa, Francisco Raimundo relata um estilo característico. Se usava apenas o cachorro, especialmente treinado para derrubar a presa, e o abate era feito pelo caçador com objetos metálicos que, pelo que ele descreve, parecem ser ferramentas da agricultura. O hábito rústico, característico dos índios, ainda está muito presente na vida de Francisco Raimundo. Aos 95 anos, ele nunca teve um fogão em casa. A comida é feita em fogo que ele improvisou no meio da casa, com lenha que pega na mata. As refeições são feitas em uma cumbuca, feita com cabaça, e até a concha com que mexe a comida na panela é artesanal, feita com uma quenga de coco presa a uma vareta. A resistência de Francisco Raimundo à modernidade cria situações curiosas. Mesmo tendo ganhado uma casa de tijolo e que já tem energia desde 1985, ele mantém a velha tapera onde viveu quase toda a vida. O casebre é outra prova da herança indígena. "Aqui se faziam as casas sem colocar um prego. Era tudo amarrado com cipó", contou. Outro relato de Francisco Raimundo que atesta a herança indígena é o das noites na aldeia. Ele contou que os moradores pegavam as colméias das abelhas. Com a cera faziam um rolo, com um pedaço de tecido. Algo semelhante a uma vela, mas que ele chama de "murrão". De noite era só acender para clarear a casa.

SAÚDE - As mais de cem famílias do Amarelão ainda preservam a cultura de cultivar ervas que consideram medicinais. Seu Francisco Raimundo é um exemplo. Ele prefere recorrer às ervas quando está doente e confessa que, aos 95 anos, só foi ao médico duas vezes.

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