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Na despensa da humanidade

OESP, Aliás, p. J4
Autor: PARMENTIER, Bruno
21 de Out de 2007

Na despensa da humanidade

Entrevista: Bruno Parmentier
Economista, engenheiro e diretor da École Supérieure d'Agriculture d'Angers (ESA), na França
Há anos ele pesquisa o futuro da alimentação. Na era do biocombustível, o estudo vira livro e trata de um futuro magro, passível até de penúrias

Laura Greenhalgh

Como que rivalizando com a boataria em torno do divórcio do presidente Nicolas Sarkozy e sua mulher, Cecilia, o economista Bruno Parmentier também vem dando o que falar na França. Ele está na mira da imprensa. O jornal Le Monde, que dias atrás publicara uma de suas polêmicas entrevistas, "estampou-o" em seu site, na semana passada, com a seguinte chamada: "A humanidade caminha para a era da penúria". A afirmação do entrevistado, diretor da École Supérieure d'Agriculture d'Angers (ESA), a mais importante do setor na França, soou apocalíptica na terra dos bons queijos, bons vinhos, bons patês, mas não tão boas recordações de guerras e épocas de vacas magras.

Pois Parmentier tem tirado o apetite dos estrategistas europeus desde que lançou o livro Nourrir l'Humanité (Nutrir a Humanidade, ed. La Découverte), meses atrás. Ele mesmo admite que desde então não parou de dar entrevistas e desfiar seu rosário de estatísticas. No livro, o economista vislumbra o futuro da alimentação a partir de um mundo com energia rara e cara. Lembra que em apenas um século a população global saltou de 1,6 bilhão para 6 bilhões. E para satisfazer todas essas bocas (deixando famintas pelo menos 800 milhões delas), apostou-se em fatores de produção alimentar que a cada década devoram mais terras, mais energia, mais água, mais química, mais mecanização. "O tempo do 'mais, mais' acabou. Seremos forçados a apostar na agricultura que produzirá mais com menos, num meio ambiente muito degradado."

Nessa entrevista ao Aliás, Bruno Parmentier fala da chegada de novos contingentes populacionais, especialmente na Ásia e na África, do envelhecimento da população, que prolonga a vida alimentar, e da voracidade mundial por combustíveis, "o que fatalmente vai contrapor o tanque de gasolina do rico à mesa do pobre". Acha que transformar cereal em biocombustível é loucura. Absolve a opção brasileira pelo etanol da cana. Mas advoga uma nova ética: "País nenhum deve resolver seu problema de energia às custas da fome de outros". Quem apostou que o recado vai para o presidente George W. Bush, acertou.

O senhor diz que não entendia de agricultura até chegar à direção da ESA, em 2002. Em que a escola mudou sua maneira de ver as coisas?

Não venho do setor agrícola. Sou engenheiro de minas e economista. Depois de trabalhar com desenvolvimento agrário por quatro anos no México, na década de 70, experimentei editar livros, viver como jornalista, e só mais tarde é que aceitei a direção da maior escola agrícola da França. Aceitei o cargo convencido de que a era do petróleo está no fim e a biologia, tomara!, há de nos levar por caminhos melhores. O balanço dessas descobertas está no meu livro, Nourrir l'Humanité, que tem causado grande repercussão desde o lançamento. Não paro de dar entrevistas aqui na Europa.

Por que tanto interesse?

Porque nenhuma perspectiva histórica nos dá a certeza de que todos teremos o que comer no futuro. E, se tomo a perspectiva geográfica, a constatação é amarga: a fome atinge 800 milhões de pessoas e há quase 1 bilhão comendo muito mal.

O que prevalece na sua análise sobre o futuro da alimentação: ameaças ambientais, transições demográficas, modelos econômicos?

Há uma conjunção de fatores, mas, falemos em demografia. Garantir a nutrição de uma população fortemente expandida é uma novidade radical para a humanidade. Até o século 16, a população mundial pouco evoluíra. Houve um crescimento suave nos séculos 17 e 18, seguido de outro mais acentuado no 19, tocando mais a Europa e a Ásia, depois se espalhando para outras partes. Em 1900 havia no planeta 1,8 bilhão de habitantes, 50% dos quais comiam satisfatoriamente. Mas contavam-se 800 milhões de malnutridos. Cinqüenta anos mais tarde, portanto em 1950, éramos 2,8 bilhões e havia algo em torno de 800 milhões de pessoas com fome. Hoje somos 6,3 bilhões e continuamos encontrando algo como 800 milhões de famintos. Ora, podemos fazer uma leitura otimista desses números: em um século, a humanidade conseguiu dar o que comer a mais 4,5 bilhões de pessoas. Bela performance. Mas podemos observar com certo pessimismo essa estranha "lei" : qualquer que seja a população do planeta há sempre algo como 800 milhões passando fome. É um número persistente.

E o que deve se passar nos próximos 50 anos?

A população deverá se estabilizar entre 9 e 10 bilhões de pessoas. Significa que acolheremos no planeta um bilhão de novos asiáticos, cerca de 800 milhões de novos africanos, 400 milhões de novos latino-americanos. Então temos de nos colocar a questão: haverá alimento para todos? Se admitirmos que todos almejamos comer segundo padrões ocidentais, com dietas fortemente baseadas em produtos de origem animal, teremos então de dobrar a produção agrícola do mundo, já que os animais comem como nós, humanos - consomem cereais e vegetais. E dobrar levando em conta as disparidades existentes. Será preciso multiplicar por 5 a produção agrícola africana e por 1,9 a produção agrícola latino-americana, ao passo que será inútil aumentar a produção européia, já que estamos comendo bem há um bom tempo e não fazemos mais tantos filhos. Por isso nossa população é declinante.

Em termos globais, há disposição para pensar disparidades?

Não há outro jeito! As soluções aplicadas para aumentar a produção de alimentos no século 20 certamente não funcionarão no século 21. É imperativo encontrar alternativas. Em escala global, nossas reservas de terras disponíveis para agricultura são cada vez menores, em parte por conta da urbanização. Continuamos a destruir as florestas a uma velocidade inaceitável para o equilíbrio ecológico, ou seja, à razão de 140 mil km² por ano. A equação que resulta disso é simples: em 1960, havia algo como um hectare para nutrir dois seres humanos. Hoje, tem-se em média um hectare para quatro, em 2050, um hectare para seis, e assim vai. A China hoje já lida com a razão de um hectare para oito indivíduos.

Qual o pior impacto da escassez de água para a agricultura?

A irrigação foi um meio de expansão agrícola largamente utilizado no século 20, permitindo-nos levar água para mais de 200 milhões de hectares. Não podemos depender da mesma estratégia. Olhe só o que vai acontecer: nos próximos tempos assistiremos a uma onda de reparação de barragens construídas décadas atrás, cujas instalações têm duração limitada. E vamos ter de repará-las, sim, porque construir as novas custa caro e restam lugares bem mais complicados para erguê-las. Além disso, não teremos como alimentar outras tantas barragens com essa rarefação de água doce no planeta. A própria FAO estima que o patamar máximo de áreas irrigáveis não passará de 240 milhões de hectares nos próximos anos. É muito pouco.

O petróleo está mesmo no fim?

É o que dizem os especialistas e isso tem a ver com a nossa mesa. Tecnologias agrícolas inventadas no século passado são muito gulosas de energia porque foram desenvolvidas numa época de petróleo barato. A mecanização da agricultura, a fabricação de fertilizantes e outros modos de produção dependem basicamente de energia. Hoje o preço mundial do petróleo atinge US$ 90 por barril. A tendência de alta deve continuar e o impacto psicológico da cotação rompendo o patamar dos US$ 100, já iminente, será bastante sensível. Gente mais jovem que eu verá o petróleo a US$ 150 o barril. Isso tudo complica a vida dos 28 milhões de agricultores do mundo que dependem da mecanização do setor. Em contrapartida, cerca de 250 milhões de produtores rurais trabalham com energia animal e 1 bilhão não têm nem animais nem tratores. Um bilhão de produtores estão completamente à margem! Diante desse cenário, devemos nos perguntar: a agricultura, daqui para frente, deve servir à produção de alimentos ou de energia? Veja que coincidência: 800 milhões de pessoas sentem fome no planeta. E temos uma frota global de 600 milhões de automóveis e 200 milhões de caminhões. O número é o mesmo: 800 milhões querem comida, 800 milhões querem combustível. E agora?

Que aposta o senhor faz nos biocombustíveis?

Não somos nada neste setor porque mal tomamos consciência do problema. O balanço energético revela fragilidades, a começar do fato de que ainda precisamos de um litro de petróleo para produzir três litros de biocombustível. O balanço territorial, esse então é uma aberração completa: em média, devemos reservar um hectare de terra para garantir o abastecimento de quatro ou cinco carros. Tentamos resolver o problema dos tanques de gasolina oferecendo-lhes algo precioso para a dieta alimentar da humanidade, que é o cereal. Isso é uma loucura. A meu ver, o caminho mais aceitável é o do etanol brasileiro, feito da cana-de-açúcar. Mas, não posso deixar de me espantar: como é que um país como o Brasil, potência agrícola, ainda não consegue nutrir sua população?

Por que aprova a opção brasileira pelo etanol?

Parece ser a mais sensata. Quero deixar claro: sou absolutamente a favor dos biocombustíveis. Mas absolutamente contrário à utilização dos cereais para produção de etanol. Cereal é alimento de base. Nós, aqui na Europa, estamos investindo alto na produção de biodiesel, como aquele que é feito a partir da colza (canola). Tais iniciativas não me parecem satisfatórias porque demandam grandes áreas para o cultivo, muita água para irrigação e mantém-se essa relação maluca, que é gastar um litro de petróleo para produzir três litros de biocombustível. Já a cana oferece uma relação melhor, e não me parece que vá faltar açúcar para alimentação. Como também acho que não vão acabar com as florestas brasileiras.

Mas isso se debate no Brasil hoje. A plantação em larga escala de cana poderia deslocar o gado para a Amazônia, o que não seria bom. Ouve-se muito esse tipo de crítica.

Não creio nisso. É inegável que o etanol brasileiro tem vantagens: vem de uma planta que cresce rapidamente, não exige preparação da terra, o que em si significa economia de combustível, e é aproveitada literalmente até o bagaço. Além de ter muita terra cultivável, o Brasil é um país que possui superfície de reserva para agricultura. O grande problema da cana-de-açúcar brasileira é social. Como erguer um programa ambicioso de etanol com os trabalhadores no campo ganhando mal, sem preparo, sem recursos, sem direitos?

Por que o senhor joga duro com a utilização dos cereais para a produção de biocombustível?

Veja a política agrícola do governo Bush. Os EUA têm estoque excedente de milho e até por isso querem convertê-lo em etanol. Só que, para atender à própria demanda de energia, vão consumir o milho que hoje é base da alimentação do México. E os mexicanos vão pagar mais caro pelo que comem! Parece óbvio que um país não pode resolver sua demanda energética provocando a fome em outro. Nesse sentido é que traço um cenário sombrio, no qual o carro do rico vai disputar "alimento" com a mesa do pobre.

Então ponha na balança: de um lado, comida, de outro, combustível. O que vai pesar mais na busca por sustentabilidade?

É possível prever que, em 50 anos, a Europa possa ter reduzido em 10% sua produção agrícola. Seremos menos numerosos e é certo que podemos cortar um pouco da nossa dieta. Por outro lado, estaremos mal em termos de energia fóssil, portanto os biocombustíveis serão estratégicos. Imagino que nossos campos terão de ser reservados para a produção de cereais e que tenhamos de sair atrás dos biocombustíveis dos países temperados, chamados de "segunda geração", que não demandam tanta água nem tanta energia. Já a Ásia, apesar dos progressos feitos, em especial na China e no Vietnã, terá de enfrentar um crescimento populacional que vai complicar as coisas. Mas o grande problema da humanidade é a África. A população africana atual, de 800 milhões, deverá dobrar em pouco tempo, apesar das guerras, da penúria e da aids. Hoje, na África negra, 40% da população sofre de uma fome que é crônica. O que acaba servindo de caldo de cultura para ideologias extremistas.

E a América Latina?

Vai se sair melhor porque não deve ganhar mais do que 400 milhões de pessoas no próximo meio século, tem reserva de superfície e de água, sobretudo o Brasil. Porém, será que o clima democrático que se vê hoje no continente será um fator de coesão social e eficácia produtiva no futuro? A reposta está nas mãos de vocês.

A discussão combustível versus comida pende para o ideológico?

O importante é nos apercebermos dos grandes jogos. Como vamos tirar da terra comida e energia em abundância? Será preciso pragmatismo e alguma modéstia para encarar esse desafio.

Em seu livro, em vários momentos o senhor trata do "medo de não ter nada para comer". Isso é típico dos franceses e seus vizinhos europeus?

Quando falta comida, nenhum problema é maior do que "ter o que comer". Mas, quando há comida, então aparecem 50 novos problemas na vida da gente: o medo de engordar, de se envenenar, de envelhecer, a culpa de comer muito quando tantos têm fome... Na Europa Ocidental, a última vez que se viu a cara da fome foi na 2ª Guerra e hoje a maioria da população não lida com tais lembranças. Mas lida com esses 50 novos problemas. Certamente o declínio da religião, numa Europa secularizada, deu lugar a outros tipos de injunções coletivas. Por exemplo: assim como há o "ecologicamente correto", há também o "corporalmente correto". Temos de emagrecer, malhar, exibir boa forma física se quisermos merecer o respeito dos outros.

Apesar das penúrias do passado, a França é vista como terra da abundância, onde se come bem e onde o setor agroalimentar ainda atrai o maior volume de divisas para o país.

De fato, parece que o mundo vem para cá para aprender esse bien manger. A verdade é que os franceses são muito exigentes nessa matéria e suas agroindústrias souberam tirar partido da uma cultura local, transformando-a em business. Claro que se persistir a idéia de usar trigo, milho ou arroz para fazer biocombustíveis, velhos medos podem reaparecer.

Em termos históricos, somos mais informados sobre penúrias do que sobre abundâncias.

Há um ditado que diz: o peixe não sabe que está na água até ser pescado. Quando uma geração vive na abundância, ela não a enxerga o contrário. E passa o tempo todo reclamando ou se entretendo com a infelicidade dos outros. É desconcertante constatar que as pessoas não são mais felizes na abundância do que na luta pela sobrevivência.

Pelos critérios ocidentais, seria desejável que todo indivíduo possa comer pelo menos três vezes por dia. Teremos de repensar esse critério no futuro?

De fato, o desejável seria oferecer a todos os habitantes do planeta a possibilidade de comer três vezes ao dia. Mas, comer o quê e em que quantidade? Guardamos no nosso corpo a memória de penúrias do passado, por isso tendemos a comer mais do que o necessário: mais açúcar, mais gordura, quando a nossa vida ficou mais sedentária. Daí a obesidade cresce de forma alarmante, especialmente nas classes médias. Em quase todos os países do globo, vê-se um aumento estrondoso dos gordos. É um problema em escala mundial, de certa forma tão sério quanto a fome.

Por quê?

A demanda crescente por produtos de origem animal é muito alta - isso, no conjunto da humanidade. Consumindo tais produtos, sobrecarregamos a agricultura porque, como já disse, animais comem como nós. Só que a taxa de transformação na indústria ainda deixa muito a desejar: a grosso modo, precisamos de 4 quilos de cereais para ter 1 quilo de frango. Ou 12 quilos de cereais para ter 1 quilo de carne bovina. A necessidade de fomentar culturas vegetais tornou-se prioridade. Enfim, devemos desenvolver agriculturas pelo mundo todo, e não apostar apenas nas mais produtivas, como a do Brasil ou da Austrália.

A população planetária aumenta não só pelas taxas de natalidade, altas em várias partes, mas também pelo aumento da expectativa de vida. Quanto mais se vive, mais se come. Isso entra nos seus cálculos?

Sem dúvida. Na Europa, ao longo de meio século ganhamos três meses de esperança de vida por ano. 50% das crianças que nascem hoje na França serão centenárias. Então, vejamos: um europeu nos anos 50 iria consumir cerca de 50 mil refeições no decorrer da vida. O europeu nascido agora consumirá 100 mil. Isso traz desafios imensos para a quantidade de alimentos a produzir. E também para a qualidade do que se come, afinal, nossos corpos estarão expostos por mais tempo a processos de acumulação de toxinas. Muitas doenças aparecem quando o sujeito já fez umas 80 mil refeições. Antes não deveríamos nos preocupar com isso, agora temos. Não bastassem todos os desafios pela frente, a preocupação com a segurança e a pureza dos alimentos ainda vai nos atormentar muito.

Estranha Lei
"Qualquer que seja a população do planeta, há sempre uns 800 milhões de famintos"

Força física
"O problema do etanol brasileiro é social. É o 'peão' que ganha mal, não tem direitos..."

Mastigação
"Guardamos no corpo a memória de penúrias do passado. E então comemos mais"

Terça, 16 de Outubro
Negociações travadas
O presidente Lula afirmou, na República do Congo, que pretende forçar uma negociação para destravar a Rodada Doha. "Quero um esforço para que a UE facilite a entrada de produtos dos países pobres e que os EUA diminuam os subsídios na agricultura interna", declarou.

OESP, 21/10/2007, Aliás, p. J4

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