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'Na COP-21, Raoni disse: avisei a vocês...'

O Globo, Página 2, p. 2
Autor: CARELLI, Vincent
28 de Dez de 2015

'Na COP-21, Raoni disse: avisei a vocês...'
Vincent Carelli, indigenista e cineasta Pioneiro do cinema indígena no país, criador do Vídeo nas Aldeias, franco-brasileiro vive em Olinda, esteve na conferência do clima e veio ao Rio para festival Emergências
"Nasci em 1953, na França, e vim morar aqui aos 5 anos. Meu pai, brasileiro, foi pintar nos grandes ateliês da época, casado com minha mãe, francesa. Meu avô foi general da cavalaria na Resistência. Fiz ciências sociais na PUC-SP, mas larguei tudo para ir à Amazônia. Hoje, moro em Olinda, sede do Vídeo nas Aldeias."

ARNALDO BLOCH
arnaldo@oglobo.com.br

Conte algo que não sei.
Na COP-21, o cacique Raoni disse: "Avisei a vocês que ia dar 'm...'. Vocês não acreditaram."
Você esteve na conferência?
Sim, num simpósio que reunia etnias do mundo todo, africanas, asiáticas, das Américas. O discurso era de que o mundo mercantilizou a natureza, mas que há outras perspectivas.
Seu caminho começou no indigenismo e migrou para o cinema étnico. Por que vias?
Em 1973, após dois anos com os índios xikrin, fui a Brasília e fiz o curso de indigenismo para assumir o posto. Aí um coronel avisou que eu não voltaria lá. "Por quê?", indaguei. "Porque você é amigo dos índios." Foi a lição de minha curta carreira no funcionalismo público. Passei pelo Médio Xingu e depois fundei o Centro de Trabalho Indigenista, em 1979, ONG considerada subversiva pelo governo. Depois, criamos um centro de documentação, base hoje da enciclopédia virtual do Instituto Socioambiental (Isa).
Na sequência, câmera e ação?
Em 1986, a grande revolução tecnológica era o VHS. Os movimentos populares usavam para mobilização. Peguei um, juntei monitor, player e geradorzinho e fui lá, experimentar a reação dos índios à câmera aberta: filma, mostra, filma...
E qual foi a reação?
Deliraram com o jogo de espelhos. Não se reconheceram! "Pô, mas está feio esse ritual. Pinturas malfeitas. Roupa de branco." O chefe assumiu a direção. Entraram em catarse. Dez dias depois resolveram refazer a furação de beiço e nariz que haviam abandonado há 20 anos.
Muitos índios acham que câmeras roubam almas...
A preocupação é mais com as crianças. Mas acabam revendo este tabu. Acostumamse, usam espelhinhos para afastar os espíritos e têm medo quando o cabo falha e a imagem fica P&B: aí, é perigoso...
A coisa evoluiu.
Fizemos dez filmes. Consegui fundos, bolsas, apoio das fundações, Guggenheim, Ford e fui a festivais autóctones. No Canadá, os inuítes já negociavam um canal de TV. Hoje, têm um portal global. A mídia nativa já era fenômeno emergente no planeta. Depois, nos anos 1990, investi em oficinas. Vários ciclos, da filmagem à edição. Geraram belos trabalhos, logo reconhecidos pelo público: um olhar, uma intimidade, sem aquela voz em off explicando tudo, deturpando. Em vez de exotizar, humanizar.
Mas não deixa de ser uma tecnologia "estrangeira"...
Tudo é estrangeiro! O machado, o ferro, o rádio... por que não uma caixa de ressonância da resistência cultural? Muitos queriam aquilo. E outros diziam: "Se eu tivesse isso antes, teria a imagem do meu avô, e os jovens entenderiam o que eu falo." Uma carteira de identidade audiovisual.
E a dimensão artística?
Há pelo menos um filme que o Eduardo Coutinho classificou de obra-prima. O que precisamos é criar um banco dessa produção que já tem décadas e que já passou na TV com grande repercussão e até com o Marcos Palmeira de âncora...
E a política?
O Brasil só se reconhece pluriétnico na Constituição de 1988. O Estado queria a dissolução da população indígena na população nacional. Agora, querem desconstruir os avanços daquele momento em que o país aspirou a certa modernidade.

O Globo, 28/12/2015, Página 2, p. 2

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