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Na contramão do PIBão

O Globo, O País, p. 3
17 de Mar de 2008

Na contramão do PIBão
País ainda tem 95,6 milhões de pessoas sem acesso adequado a saneamento básico

Soraya Aggege São Paulo

Silvandira Rosa de Jesus, de 47 anos, mora a 60 quilômetros da Avenida Paulista, uma das referências nacionais da modernidade. No entanto, nunca pisou por lá. Silvandira é uma entre milhares de brasileiros excluídos da estrutura mínima do século XXI. Rosto inchado por causa de um dente doente, e sem acesso a dentista, ela explica: mora na capital paulista, mas sem água encanada, rede de esgoto, coleta de lixo, telefone, transporte coletivo, médicos, Bolsa Família e sequer escola para os filhos. Computador? Silvandira já viu um, uma vez, pela televisão.

A gente não tem nada, só o nome. A renda em casa dá uns R$ 50 por semana. Planto umas coisinhas e a gente come - diz Silvandira, moradora de Engenheiro Marsilac, bairro no extremo sul de São Paulo.

Um estudo da Associação Brasileira da Infra-Estrutura e Indústrias de Base (Abdib), que cruza dados do IBGE e mostra a evolução do atendimento à população mais pobre - renda domiciliar de até três salários mínimos - mostra que o Brasil ampliou o acesso à estrutura básica de forma geral, mas, ao mesmo tempo, tem deixado crescer muito a fila de espera dos mais carentes.

Foram analisados, entre 1999 e 2006, quatro serviços básicos: rede de esgoto, abastecimento de água, rede elétrica e telefonia. A boa notícia é que, de modo geral, há mais brasileiros atendidos em relação ao total da população. Alguns serviços tiveram sua abrangência nitidamente ampliada, como energia elétrica e telefonia.

No entanto, há hoje no Brasil uma fila com 95,6 milhões de pessoas sem acesso adequado ao serviço de coleta de esgoto. Destes, 59,2 milhões têm renda familiar doméstica de até três salários mínimos (61,9%). Em 1999, a fila tinha 90,1 milhões de pessoas. Os mais pobres, dentro desse contingente, somavam 45,9 milhões - o equivalente a 51%. Ou seja, a diferença hoje é de dez pontos percentuais de mais pobres sem acesso a redes de esgoto.

Os vazios de estrutura urbana mínima se espalham pelo mapa do Brasil, que comemora o crescimento do PIB em 5,4% ano passado. Alguns lugares, contudo, concentram carências. Engenheiro Marsilac é um deles. Mais de 30% das famílias vivem em absoluta carência de recursos, com ganho mensal, por pessoa, inferior a meio salário mínimo. Mesmo assim, não há beneficiados em programas sociais do governo, segundo três associações de moradores da região. Em Marsilac, só 31% dos 11.334 habitantes conseguiram concluir, pelo menos, oito anos de estudo, segundo a Fundação Seade.

- Aqui a maioria só tem energia elétrica porque fez "gato". No mais, falta tudo: rede de esgoto, coleta de lixo, iluminação, internet, antena para celular, transporte, médico, dentista e, principalmente, escolas. Para piorar, uma das escolas foi fechada há dois anos - diz Jailton Nascimento de Lima, presidente da Associações dos Moradores de Embura do Alto, uma das comunidades de Marsilac.

Aos 13, Diogo nunca foi à escola
A falta de escolas e de transporte - de ônibus, um morador de Marsilac leva quatro horas até a Avenida Paulista - aumenta ainda mais a exclusão dos moradores. Diogo Rocha Pereira, de 13 anos, é uma das vítimas. Até hoje, nunca foi à escola. Há um mês, foi adotado por uma turma de alfabetização de adultos da própria comunidade, que tem aulas na cozinha de uma igreja.

- Nunca fui à escola. Mas sei escrever o meu nome sozinho - conta Diogo, depois de dizer que nunca viu um computador ou usou um celular.

Entre aqueles cuja renda domiciliar é maior, a ordem é invertida. Em 1999, na fila de brasileiros sem esgoto, 36,4% tinham renda entre três e dez salários mínimos. Em 2006, 31,3%. Entre os mais ricos, a melhoria no acesso foi ainda mais rápida do que a verificada na classe média. Em 1999, entre a população sem acesso à coleta de esgoto, 10,5% tinham renda superior a dez salários mínimos. Em 2006, 5,4%: cinco pontos percentuais de diferença.

Na média, em todos os setores analisados, o índice de atendimento em relação ao total da população melhorou. Na coleta de esgoto, 56,5% dos brasileiros não tinham acesso adequado em 1999, contra 51,3% em 2006. Na distribuição de água, a porcentagem de brasileiros que não tinham acesso à rede geral diminuiu de 21,7% para 18,3%, no período.

A eletricidade não chega, atualmente, para apenas 2,7% da população, contra 5,8% em 1999 -possivelmente por causa do programa governamental Luz Para Todos, avalia o presidente da Abdib, Paulo Godoy. Da mesma forma, 64,1% dos brasileiros não tinham telefone próprio em 1999, contra 25,7% em 2006. A diferença, segundo Godoy, pode ter sido fomentada pela concorrência no setor.

O nó do problema está mesmo entre os mais pobres. O estudo da Abdib mostra que a proporção de pessoas pobres na fila de espera - como ocorreu na coleta de esgoto - cresceu em todos os quatro serviços analisados.

Com relação ao abastecimento de água, há hoje no Brasil 34 milhões de brasileiros sem acesso adequado ao serviço. Destes, 24 milhões (cerca de 70%) são pobres, com renda familiar de até três mínimos. Em 1999, a fila de espera tinha 34,6 milhões de pessoas.

À época, os brasileiros mais pobres, dentro daquele contingente, somavam 21,8 milhões - 63% da fila.

No setor de energia elétrica, o Brasil reúne atualmente 5 milhões de pessoas sem acesso ao serviço. Destes, 4,4 milhões são pobres, com renda familiar de até três salários mínimos - 88,3%. Em 1999, o mesmo grupo tinha 9,2 milhões de pessoas.

Os mais pobres somavam 7,6 milhões de pessoas - 82,4% da fila de espera, segundo a Abdib.

Realidade parecida é verificada no acesso à telefonia. Há hoje no país 47,9 milhões de pessoas sem telefone fixo ou celular próprio. Os pobres representam 40,2 milhões desse grupo - o equivalente a 84%. Em 1999, havia 102,3 milhões de pessoas sem acesso à telefonia. Os mais pobres desse contingente somavam 55,7 milhões de pessoas, ou 54,5%.

A pesquisa não estabeleceu uma geografia exata das carências de estrutura, mas as comparações com outros levantamentos demonstram que elas se concentram nas áreas mais pobres, como Norte e Nordeste, e também nas grandes periferias urbanas das regiões mais desenvolvidas.

- Mesmo que a expansão das redes de infra-estrutura tenham permitido que mais brasileiros recebessem serviços básicos, está claro que o ritmo de investimento foi menor que o crescimento da demanda - afirma o presidente da Abdib.

Já o aumento da participação dos mais pobres da fila de espera por infra-estrutura exige a definição de políticas públicas pontuais para o setor.

Na avaliação de Paulo Godoy, o governo terá de investir em programas como o Luz Para Todos em outras áreas, principalmente de rede de esgotos.

Segundo outro estudo da Abdib, para zerar filas de espera por rede de esgoto, o Brasil terá que aplicar no setor R$ 10 bilhões por ano, ao longo de 20 anos. Hoje o país investe cerca de um terço desse montante a cada ano.

O Globo, 16/03/2008, O País, p. 3

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