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Na boca do inferno

CB, Brasil, p.18-19
28 de Mar de 2004

Carvoarias subterrâneas se transformam em armadilhas para crianças. Somente em Paragominas, o INSS paga benefício a 55 garotos que caíram nesses buracos enquanto brincavam e sofreram mutilações
Na boca do inferno
ULLISSES CAMPBELL
ENVIADO ESPECIAL

Paragominas (PA) - Gleyderson tem 10 anos e até agora não saiu da primeira série. Lê fluentemente, mas não escreve nada. Nem o próprio nome. Mônica tem 6 anos e não consegue andar descalça.
Leandro, de 11, está na quinta série. É estudioso, mas tem aversão ao ambiente escolar. A história dessas três crianças é marcada por uma tragédia em comum. Elas caíram dentro de um forno de carvão quando brincavam perto de casa, na cidade de Paragominas, no Pará. Hoje, fazem parte de uma geração de crianças mutiladas e recebem benefício de um salário mínimo do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS).
Gyerderson não consegue escrever porque os dedos das duas mãos grudaram devido às queimaduras de terceiro grau. Até conseguir segurar um lápis novamente, ele terá que se submeter a 18 cirurgias plásticas. Mônica perdeu os dois pés em acidente semelhante.
TIRANDO A PROVA
Paragominas tem 76 mil habitantes. Na cidade, 583 deficientes recebem pensão do INSS. 0 município paulista de São João da Boa Vista tem a mesma população de Paragominas e, lá, 105 pessoas recebem o beneficio de prestação continuada. Em Marituba (PA), também com 76 mil habitantes, 86 pessoas recebem o mesmo beneficio. Para o Conselho Tutelar do Pará, o grande número de benefícios concedidos em Paragominas,em comparação com outras cidades que têm o mesmo número de habitantes, é a maior prova de que as pessoas estão mais sujeitas a sofrer acidentes em carvoarias.
No caso dela, as operações serão inúteis. Seus membros inferiores começam no tornozelo. Leandro queimou os pés e as mãos tão intensamente que ficaram deformados. Hoje, na escola, recebe todo o tipo de apelido. Tão cruéis que nem parecem ter vindo de outras crianças. A pele queimada dos braços deu origem ao "mão elétrica". Isso quando não é chamado de "pés de papagaio", em referência aos dedos grudados. Para ele, a sala de aula é o pior lugar do mundo.
Somente em Paragominas, 55 crianças recebem benefício do INSS. Todas têm entre 8 e 14 anos e estão mutiladas por acidentes em forno de carvão. 0 benefício de prestação continuada é pago pelo governo federal. No município, funciona como uma espécie de aposentadoria por invalidez. São pagas porque as vítimas são pobres e precisam de tratamento médico e nunca poderão trabalhar. 0 dinheiro sai do orçamento do Ministério da Assistência e Promoção Social.

Perto de casa
Das 55 crianças mutiladas atendidas em Paragominas, 15 trabalhavam em carvoaria quando se acidentaram. O restante brincava perto de casa ao cair num forno de carvão subterrâneo conhecido no interior do Pará como caieira. Camuflada, a carvoeira funciona como uma armadilha (leia abaixo). As crianças que despencam dentro dela ficam mais de meia hora até serem resgatadas.
Paragominas é uma cidade que surgiu com a abertura da Belém-Brasília e ficou conhecida no país na década de 80 pela extração irregular de madeira. Hoje, totalmente desmatado, o município é um pólo de carvão que abastece o Norte e o Nordeste. As maiores fábricas mantêm vilas de casas para os trabalhadores morarem dentro do extremo onde são construídos os fornos. Esse fator facilita o acidente.
Um grupo de seis médicos vem realizando cirurgias periódicas para tentar reabilitar as vítimas das caieiras. Pelo menos 15 crianças já se submeteram a operações plásticas. O médico Humberto Maradei operou em seu próprio hospital, em Belém, dez crianças queimadas em forno de carvão. Ele conta que nenhuma delas ficará totalmente recuperada. "Muitas perderam todos os dedos dos pés. Elas ficaram muito tempo dentro do forno", conta. Ele diz que fica horrorizado todas as vezes que uma criança mutilada em carvoaria chega ao hospital.
O carvoeiro Edimilson Carlos da Silva, 36 anos, abandonou a profissão há cinco anos. Hoje é vendedor de peixe. Seu filho, Gleyderson, aquele de 10 anos que lê mas não escreve, caiu num forno de carvão quando tinha oito. O menino brincava perto do trabalho do pai e escorregou dentro de uma caieira. Já passou por quatro cirurgias, mas até agora tem as mãos deformadas. Traumatizado com a seqüela do filho, Edimilson quer distância de carvoaria. "Não me perdôo por ter mudado com minha família para uma casa dentro da fábrica de carvão", desabafa. Quem trabalha em carvoaria mora próximo aos fornos porque precisa monitorá-los 24 horas por dia. (leia na página 19 o dia-a-dia de quem fabrica carvão)
A mãe de Gleyderson, Edilane de Araújo, de 34 anos, luta diariamente em busca de ajuda médica especializada para melhorar a aparência do filho. 0 menino tem as mãos e os pés deformados. Por conta disso, recebe benefício do INSS. Na semana passada, ele chegou chorando em casa porque os colegas da escola inventaram um apelido novo para ele.
No dia seguinte, Edilene foi até a escola do filho e invadiu a sala de aula. "Pedi licença para a professora e conversei com os alunos. Expliquei que meu filho não tem culpa de ser deficiente. Ele já sofre muito por ser diferente e os apelidos só pioram a situação", conta. "Estava me segurando para não chorar na frente deles. Mas quando vi uma menina com lágrimas no rosto, não agüentei e chorei também."

Leandro decidiu que quer ser médico
Leandro Freire Sodré, 11 anos, já passou por tantas cirurgias reparadoras que sonha em ser médico quando crescer Aos oito anos, foi brincar com os amigos e caiu num forno de carvão. Queimou os pés e a mão esquerda. Estudioso, só tira notas altas na escola. Assim como todas as crianças mutiladas em carvoarias, só caminha se estiver calçado. Os sapatos, aliás, substituem os pés. Sem eles, as vítimas das caieiras não se equilibram em pé. Os pares de sapatos de Leandro duram apenas um mês e meio por contado uso contínuo. "Ele recebe o beneficio do INSS e eu gasto o dinheiro todo comprando sapatos e com passagens de ônibus até Belém, onde faz consultas médicas, conta a mãe, Maria do Socorro Sodré, 38 anos.
Dedos de Gleyderson ficaram grudados
Desde que caiu num forno de carvão, há três anos, Gleyderson Montelles,10, passou a ter trauma de fogo.
Quando alguém acende a fogão da cozinha, o menino grita desesperadamente. Lembra-se do dia em que teve os pés e as mãos mutilados numa caieira. Há dois anos, a criança recebe um salário mínimo como beneficio do INSS. Como os pais estão desempregados, o dinheiro ajuda no sustento do lar Gleyderson está na terceira série e só este ano aprendeu a escrever Para conseguir tal façanha, teve de passar por oito cirurgias para separar os dedos, que ficaram grudados com a queimadura.

Mônica corre risco de não ir à escola
Mônica da Silva Pereira tem 6 anos. Até o ano passado, ela morava próximo a uma fábrica de carvão com a família. Aos quatro, saiu de casa para procurar os pais. Ao passar pela área onde funcionam os fornos, a menina escorregou numa caieira. Hoje, mutilada, não tem dedos nos pés e nas mãos. A mãe, Maria de Nazaré Rodrigues, 33, ainda não está convencida de que vale a pena matriculá-la na escola no ano que vem, quando deverá fazer a primeira série. "Ela não tem dedos nem pode andar Que profissão poderia seguir?", pergunta. Acanhada, Mônica não brinca nem tem colegas na vizinhança. Filha de pais pobres, passará a receber pensão do INSS a partir do ano que vem.
Elvis, provação na hora da aula
Elvis de Oliveira,11 anos, ajudava o avô a construir um forno de carvão quando se acidentou. Mutilado, conseguiu benefício do INSS. Os pais, Edilson Barros, 30, e Elza Pantoja, 29, são evangélicos. Nenhum deles trabalha em carvoaria. Para eles, o acidente com o filho foi uma provação. "Nada acontece à toa. Deus nos escolheu para que a gente se sacrifique por essa criança diz Elza. Elvis também enfrenta problemas na escola. Na hora em que a professora passa exercício, ele é o único da classe que não escreve no caderno. Assim como as demais crianças mutiladas, Elvis sofre com os apelidos impostos pelos colegas. `Já disse para ele não ligar Deus está vendo tudo'; avisa a mãe.

PERIGO NO CHAO
Os fornos de carvão que mutilam crianças no Pará são conhecidos como caieiras. Veja como elas são construídas e como acontece o acidente:
1 A CONSTRUÇÃO
O carvoeiro faz uni buraco de meio-metro de profundidade no chão, do tamanho de uma piscina para crianças. Em seguida, joga dentro da cova restos de madeira. Esse trabalho geralmente dura três dias.
2 A COMBUSTÃO
Para facilitar a combustão, joga-se gasolina sobre a madeira. Em seguida, o carvoeiro despeja uma camada de serragem, o que faz a combustão ficar sob controle, evitando que a madeira passe do ponto e vire cinza.
3 A ARMADILHA
Sobre a camada de serragem vai uma de areia, que é nivelada ao solo para impedir que a água da chuva penetre até o forno.
Camuflada, a caieira vai torrar o carvão durante cinco dias. A camada de serragem isola a alta temperatura do forno. Nesse momento, feito areia movediça, as caieiras viram uma armadilha perigosa.
4 O ACIDENTE
Distraídas, as crianças caminham pelo terreno e pisam na areia fria que esconde as caieiras. No primeiro momento, elas escorregam para a camada de serragem. Ao tentar sair, acabam caindo para o ponto mais fundo do forno, onde a madeira está em brasa.
Com os pés queimando, as crianças não suportam a dor e tentam apoiar-se com as mãos, que ficam tão mutiladas quanto os membros inferiores. Algumas delas sentam-se no forno e queimam as nádegas.

Quando até o sol se esconde
ULLISSES CAMPBELL
DA EQUIPE DO CORREIO
As crianças não são as únicas vítimas das carvoarias de Paragominas. A atividade arriscada e insalubre também mutila adultos. O carvoeiro José Raimundo Pereira, 32 anos, queimou as mãos ao abrir um fomo há dois meses. Como trabalhava com carteira assinada, conseguiu benefício de R$ 240 do INSS. Hoje, é considerado inválido para o trabalho.
A Secretaria de Meio Ambiente do Pará concedeu até hoje 182 licenças para empresas fabricarem carvão no sudeste do Pará. As maiores mantém até 200 fornos que funcionam 24 horas por dia.
Nos momentos de pico, as carvoarias soltam tanta fumaça que Paragominas fica coberta por uma sombra, impedindo a entrada de raios solares.
Segundo as normas ambientais, a instalação de fornos de carvão só é permitida a cinco quilômetros da área urbana. Em Paragominas, eles estão à margem da Belém-Brasília e dentro do bairro periférico jardim Atlântico. No Pará, as carvoarias são atividades tão exploradas que a cidade de Jacundá, no sudeste do estado, nasceu dentro de uma imensa carvoaria. Hoje, o município tem 40 mil habitantes e a principal atividade econômica ainda é serraria e fabricação de carvão.
Raimundo Veloso, 43 anos, trabalha fabricando carvão há 20. Já mudou de cidade seis vezes em busca de oportunidade de trabalho. Hoje, toma conta de três fornos e ganha R$ 40 por semana. Para ajudá-lo, Raimundo leva o filho de 15 anos, Diego Luiz Santos. No ano passado, o adolescente não trabalhava porque recebia R$ 40 por mês do governo federal. "Ele perdeu a bolsa e o dinheiro fez falta em casa. Por isso, ele veio trabalhar", justifica o pai.
A bolsa a que ele se refere é o Peti (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), principal arma de combate ao trabalho infanto-juvenil.

Casa de esquimó
A fabricação de carvão envolve três tipos de profissionais. O primeiro a atuar é um misto de engenheiro e arquiteto autodidata. Cabe a ele construir com tijolo e barro os fornos chineses, idênticos a casa de esquimó.
O segundo profissional era em campo depois que a construção é concluída. Ele abaste o forno com a madeira verde que será torrada até virar carvão. A atividade fica arriscada depois que o forno é aceso, com querosene. Em seguida, o carvoeiro tem que fechar a boca forno já em chamas. Essa etapa é perigosíssima. "As pessoas sem experiência costumam queimar nessa hora", conta o carvoeiro Pedro Roberto Assis, 34 anos, 10 de profissão.
A terceira etapa consiste em monitorar os fornos. A atividade exige dedicação exclusiva porque há um ponto exato em que a madeira deve parar de queimar. Caso contrário, o carvão vira cinza e é inutilizado. "Fazer carvão é mais fácil do que beber água. Basta encher o forno de madeira, fechar a porta, acender e, quando estiver em chamas, a gente fecha com tijolo. Depois é só controlar as baianas, que são esses buracos por onde sai a fumaça", ensina Carlos Morais Dias, 50 anos e 30 de experiência.
A tarefa de monitorar as baianas exige atenção redobrada. Motivo: a saída da fumaça evita que o forno exploda com o acúmulo de gases. O carvoeiro que assume esse trabalho fica na boca do forno, onde a temperatura chega a 70 graus centígrados.
Raimundo Oliveira Castro, 38 anos, fabrica carvão desde os 15. É mestre em controlar as baianas. Ele conta que já se acostumou com a alta temperatura e que não se vê fazendo outra coisa. "Acordo três vezes na madrugada para controlar a saída da fumaça. Todo mundo fala mal desse trabalho. Pra mim, o que eu faço é digno. É com isso que pago minhas contas no fim do mês", ressalta o carvoeiro, que recebe R$ 600.

"Vi meu filho morrer"
DA EQUIPE DO CORREIO

O carvoeiro Francisco Sobral Messias, 55 anos, trabalha com carvão há 40. Pai de oito filhos, ele diz que a maior tristeza da sua vida foi perder o mais velho, morto numa caieira quando tinha 14 anos. "Vi meu filho morrer queimado e não pude fazer nada. Pensei em mudar de profissão. Queria plantar tomate em Goiás, onde nasci. Não deu. (...) Não existe profissão pior do fazer carvão. Na minha opinião, quem inventou esses fornos foi o capeta", diz.
Observar os carvoeiros em atividade causa dó. Eles vestem trapos, trabalham com o corpo coberto por uma crosta preta que se mistura ao suor e à cinza. No local onde os fornos são acesos, uma nuvem de fumaça gruda na pele, arrebenta os pulmões, irrita a garganta e faz mal aos olhos. As carvoarias ficam em terrenos com paisagem que mais parece o inferno. É nesse ambiente que eles trabalham, fazem as refeições e dormem. Sequer há banheiro no local.
0 carvoeiro Valdir da Silva Moreira, 29 anos, trabalha na última etapa da fabricação do carvão. Cabe a ele e a outros três companheiros esvaziar os fornos e carregar com o produto os caminhões gigantes que eles chamam de gaiola. Ele enche balaios de 50 quilos e as carrega nas costas. Depois, sobe numa escada de oito metros de altura para despejar o carvão dentro da gaiola.
Fuligem no pulmão
Para encher um caminhão, Valdir tem de carregar sozinho cerca de 150 cestas. No final do dia, recebe R$ 30. Ele reclama de irritação nos olhos, que ardem o tempo todo, e de uma gripe que não cura nunca. Quando escarra, o carvoeiro cospe no chão um catarro escuro. "Fui ao médico há um mês e ele disse que meu pulmão tem fuligem de carvão. O certo seria eu parar de trabalhar. Mas não sei fazer outra coisa e preciso sustentar minha família" , resigna-se.
Pelos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), somente nas fábricas regularizadas o Pará fabrica-se 95,7 mil toneladas de
carvão vegetal por ano. "O maior problema das carvoarias é que os proprietários obrigam os trabalhadores a morar dentro do terreno onde funcionam os fomos. As crianças acabam se acidentando e os adultos sempre trabalham mais do que deviam, já que. moram dentro do emprego", conta Roberto Noronha, fiscal da Delegacia Regional do Trabalho (DRT) do Pará.
Edilson Costa, 43 anos, Fernandina Ferreira, 50, conheceram-se numa carvoaria há 23 anos, no Piauí. Hoje, os dois gerenciam uma, carvoaria com 300 fornos em'' Paragominas. Eles sonham, com o dia em que vão poder, se aposentar na atividade. "Aqui no Pará, os empresários assinam carteira", diz ele. O' casal ganha, junto, R$ 1,2 mil para gerenciar o trabalho de 60 carvoeiros.
A maior parte do carvão fabricado em fornos chineses, no Pará, é usada para queimar oxigênio do minério de ferro nos altos-fornos das siderúrgicas que produzem ferro-gusa, um metal puro de mil e uma utilidades. Já o carvão feito nas caieiras, que mutilam crianças, é vendido no comércio das cidades. É com ele que as pessoas fazem aquele divertido churrasco do final de semana. (UC)

CB, 28/03/2004, p. 18-19

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