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Na biblioteca biologica, animais no lugar dos livros

OESP, Geral, p.A12
29 de Ago de 2004

Na biblioteca biológica, animais no lugar dos livros
No Museu de Zoologia, cientistas desvendam espécies entre 8 milhões de exemplares
Herton Escobar
De todos os lugares possíveis para se descobrir uma nova espécie, a gaveta de um museu parece ser a menos provável. Mas o Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo está cheio delas. Conservadas em álcool ou espetadas em alfinetes, elas são tantas que os pesquisadores às vezes não dão conta de estudá-las. Longe dos olhares curiosos das crianças que passeiam pela exposição de esqueletos e animais empalhados no andar de baixo do prédio histórico no Ipiranga, uma equipe de experientes cientistas trabalha nos laboratórios acima para desvendar um pedaço da biodiversidade latino-americana. É um trabalho que começou há mais de um século e não tem data prevista para terminar.
O museu é como uma enorme biblioteca biológica que, no lugar de livros, guarda exemplares de animais. A meta é preservar e descrever o maior número possível de espécies - da mais simples mosca de padaria até os mais raros répteis e felinos. "Queremos entender o que é a vida e como ela evoluiu no aspecto animal; quais são as espécies, onde elas estão e qual o parentesco entre elas", explica a pesquisadora e vice-diretora do museu, Eliana Cancello, especialista em cupins. As coleções, espalhadas por um labirinto de salas e corredores apertados, são as maiores da América Latina e as mais importantes do mundo para a região neotropical, com quase 8 milhões de exemplares de todos os grandes grupos de fauna.
Entre uma e outra forma de vida, descobrir espécies faz parte da rotina. Só o entomologista Ubirajara Martins, um dos veteranos do museu, já identificou e descreveu 1.350 novas espécies de besouro, em 45 anos de pesquisa. Apesar disso, basta puxar algumas gavetas em seu laboratório para encontrar dezenas de outros besouros ainda desconhecidos, alfinetados a placas de isopor e marcados por um ponto vermelho nas etiquetas, aguardando sua examinação.
"Depois que você fica conhecido, passa a receber material de museus do mundo inteiro para identificar", conta Bira, um simpático senhor de 72 anos, ombros largos e fala despreocupada. "Só aqui tenho umas 200 espécies para descrever. Tenho tanto bicho novo que nem preciso mais ir a campo para coletar."
Em sua sala, no segundo andar, estão guardados cerca de 100 mil exemplares de besouros da família Cerambycidae, na qual se especializou. Entre os favoritos, está o Psygmatocerus wagleri, um besouro marrom e de antenas plumosas que despertou seu interesse pelos insetos. "Quando eu era estudante, entrou um bicho desse no meu apartamento. Fiquei impressionado e fui procurar o meu professor de zoologia. Foi aí que tudo começou."
História - As coleções remontam ao fim do século 19, apesar do museu só ter sido criado em 1939, na forma do Departamento de Zoologia da Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio. Trinta anos depois, foi incorporado à USP e recebeu seu nome atual. Uma das instituições científicas brasileiras mais reconhecidas no exterior, conta atualmente com 11 docentes contratados, 12 pós-doutorandos e mais de 100 estudantes desenvolvendo projetos de pesquisa sobre o acervo. "Todo mundo quer trabalhar aqui. É o máximo que um zoólogo pode alcançar", diz o pesquisador Gustavo de Melo, um dos vários professores aposentados que continuam a trabalhar diariamente no museu. "Estou aqui há 43 anos e nunca tirei férias.
O museu é minha segunda casa, apesar de que minha mulher e meus filhos dirão que é a primeira", brinca o pai da coleção de crustáceos, que ele iniciou em 1961 e hoje contém 350 mil exemplares, de mais de 700 espécies.
A exposição permanente do museu, reaberta em 2002, é apenas uma fração da riqueza biológica estocada nos armários abarrotados e cheirando a naftalina - para manter longe baratas, traças e outras pragas indesejadas. No caso de animais grandes, normalmente preserva-se a pele e os ossos. A maior coleção é a de insetos, com 2,5 milhões de exemplares, além dos 38 mil de mamíferos, 43 mil de moluscos e outros tantos crustáceos, aracnídeos, aves, répteis, etc. As gavetas, potes e prateleiras parecem não ter fim. Dentro delas, a biodiversidade deixa de ser um número no noticiário para assumir as mais diferentes formas, tamanhos e cores do mundo natural.
"Biodiversidade entrou na moda agora, mas aqui sempre trabalhamos com isso", diz a vice-diretora Eliana. As amostras guardadas nas coleções são a base para descrição morfológica e comparação das espécies. No caso dos cupins, especialidade dela, algumas só podem ser diferenciadas por meio de detalhes da mandíbula e do tubo digestivo. "A partir da coleção podemos tirar muitos dados de biologia", observa a pesquisadora. Para ter certeza se um bicho coletado representa uma nova espécie, é preciso consultar todas as coleções do mundo sobre aquele grupo. Por isso o intercâmbio de exemplares e as visitas de cientistas estrangeiros ao museu são constantes.
Imperialismo - O acervo contém principalmente espécies brasileiras e da América Latina. Mas não há restrições. Quanto mais bicho, melhor. "Somos imperialistas nesse sentido", diz o pesquisador Mário de Vivo, chefe da divisão de vertebrados. "Nossa meta é ser uma coleção mundial." A variabilidade de amostras é essencial, tanto dentro de uma mesma espécie quanto entre espécies diferentes. Vivo explica com a seguinte analogia: se um zoólogo marciano viesse à Terra e capturasse um chinês e um africano, seria muito fácil classificá-los como seres de espécies de diferentes. Mas, na verdade, são todos Homo sapiens. "Tudo depende de representatividade. Não dá para pegar um ou dois exemplares e dizer tudo sobre uma espécie", completa o colega Hussam Zaher, curador das coleções de herpetologia e paleontologia (fósseis), que está na fase inicial de montagem.
Grande parte do trabalho diário no museu consiste em organizar as coleções, que crescem diariamente e estão sendo constantemente pesquisadas. A mais espaçosa é a de peixes, que ocupa todo o porão do prédio. São aproximadamente 85 mil tambores e potes de vidro, espalhados por todos os cantos possíveis. "Às vezes fico pensando se a gente não é maluco", diz o curador José Lima de Figueiredo, há 35 anos no museu. Os exemplares mais antigos datam de 1890. "Tem peixe até do Riacho do Ipiranga, do tempo que ele ainda tinha peixe."
Detalhes - Alguns pesquisadores também trabalham com animais vivos para estudar o comportamento de espécies associadas às coleções. No laboratório de formigas, em um dos muitos cantos escondidos do museu, Patrícia Romano da Silva passou quatro anos estudando a reprodução de espécies nas quais não existe rainha. Sua tese de doutorado foi baseada na Blepharidatta conops, uma formiga do cerrado de 3 a 4 milímetros de comprimento. No lugar da rainha, a colônia possui uma ergatóide, uma formiga com capacidade reprodutora, mas sem outras características típicas da realeza.
Para fazer o estudo, Patrícia precisava tampar dois poros de feromônios - menores que uma ponta de alfinete - no abdome do inseto. O difícil era fazer isso sem matar as formigas, que antes precisavam ser anestesiadas com uma passagem rápida pelo congelador. "Uma vez matei uma com uma gota de SuperBonder. Foi traumático", lembra Patrícia.
Logo ao lado dela, o rapper Lyncoln Ferreira é especialista em colocar formigas em alfinetes para a coleção. O trabalho é intenso para acompanhar o ritmo das pesquisas. Em um dia normal de trabalho, ele chega a preparar 120 formigas. As menores, que não cabem no alfinete, precisam ser coladas a um pequeno triângulo de papel-cartão. Cada inseto deve ser cuidadosamente preparado em uma posição específica, com pernas e antenas esticadas, para que o tronco e a cabeça permaneçam visíveis para os cientistas. "É um trabalho artesanal. Tem de ter muita paciência", admite Ferreira, de 27 anos, com as tranças rastafári presas para trás e CD-player ligado na orelha.
Já a preparação de animais maiores, como mamíferos e aves, é feita em um laboratório anexo ao museu, nos fundos do estacionamento. As visitas ali só são recomendáveis para quem tem estômago forte, como o taxidermista Luiz Antunes. É ele quem disseca os animais doados ao museu e prepara as peles e ossos para armazenamento nas coleções (taxidermia científica), além de réplicas usadas para exposição (taxidermia artística). "É uma arte, não uma ciência", diz Antunes, que largou a carreira de advogado para trabalhar no museu. "Precisamos recriar um instante do animal na natureza."
A exposição permanente do museu recebeu mais de 50 mil visitantes desde 2002 e deve passar por uma revisão nos próximos meses. O projeto prevê a expansão da mostra e a inclusão de um esqueleto de dinossauro onde hoje está a preguiça gigante, logo na entrada. "A idéia é abrir o museu cada vez mais para o público", diz Eliana.

OESP, 29/08/2004, p.A12

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