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Na aldeia, de olho no jogo

O Globo, Especial, p. 19
18 de Jun de 2014

Na aldeia, de olho no jogo

PERTO DE MANAUS, ÍNDIOS ORGANIZAM BOLÃO PARA JOGO BRASILEIRO
Faltavam 10 minutos para o jogo entre Brasil e México começar e o índio Uriá recolhia o dinheiro para o bolão daquela partida em cada uma das cerca de 20 casas da aldeia do Tupé, na periferia de Manaus. A R$ 5 o palpite e com o hino nacional entoado de cór, estavam certos de que apostando na vitória brasileira alguém ali levaria um trocado. Mas ninguém sugeriu o minguado 0 X 0.
- Só tem leso nesse time - resmungou Lemussy, uma jovem índia da etnia Desana enquanto olhava fixamente para a TV de LED de 42'' recém comprada.
Aos 25 anos, Lemussy é fã da Copa, assiste ao jogo com a camisa da seleção e pede silêncio a quem fala alto durante a partida. Esparramado numa rede ao seu lado, um careca de pele bem branca, olhos azuis e pés descalços confere os lances de Neymar enquanto mexe no laptop acarinhado pela brisa que sai de um ventilador de mesa apontado em sua direção.
- Chris, pega a minha camisa do Brasil, que já deve estar seca - ordena a índia.
O alemão atende prontamente. Os dois são casados há quatro anos e têm Luna, uma indiazinha de 2 anos. Nascido e criado em Munique, Christian Blanlenhorn, de 40 anos, sucumbiu aos encantos de Lemussy durante uma viagem a la gingo na Amazônia em 2010. Como muitos turistas que vão à Manaus, Chris conheceu a aldeia de Tupé.
A relação dos dois - num português improvisado por parte do europeu - é uma eterna despedida. Funcionário da Airbus, Chris passa apenas um mês por ano em Tupé. O resto do tempo está em Munique, sede da empresa, ou em viagens a trabalho.
- O paraíso tem um preço - diz ele.
Localizada às margens do Rio Negro, Tupé é a aldeia mais afastada da capital amazonense. Com uma população que beira os 60 habitantes (muitas delas crianças que, nem aí apara o jogo do Brasil, brincavam de catar folha na ventania) a comunidade vive do turismo.
- Gostamos do turista porque é ele que sustenta a gente. Não podemos plantar ou explorar nada nessa mata. Isso aqui é reserva ambiental, não é área indígena. É difícil sobreviver desse jeito - reclama em tom de voz alto o curandeiro pajé Raimundo Kissibi, líder da aldeia e pai de Lemussy.
Nascido no município de São Gabriel da Cachoeira, na fronteira entre Colômbia e Venezuela, Kissibi tem rancor em seu discurso ao contar sua história de costas para a TV, sem ligar para o jogo do Brasil:
- Eduquei e civilizei de acordo com a religião católica. Hoje digo que sou católico. Mas fui obrigado, né.
O motivo da mudança do grupo de São Gabriel da Cachoeira para Manaus é incerto. O que se ouve na região é que eles foram trazidos para serem explorados pela iniciativa privada. Hotéis teriam trabalhado para trazê-los até a capital amazonense com o intuito de vender apresentações para os hóspedes. Mas o projeto não deu certo e eles teriam permanecido sem apoio.
- O mundo moderno tem coisas boas, trouxe a civilização pra gente - justifica o pajé mostrando dois aparelhos de celular: - Os tempos mudaram muito. Antes, na lei dos índios, ninguém podia casar com homem branco. Mas as coisas se transformam, olha esse cara aí (aponta para Chris, seu genro).
Chris foi um dos ganhos do mundo moderno para a comunidade, de acordo com Kissibi. Além de arcar com os custos de energia da casa da mulher e da casa dos sogros, ele volta e meia realiza consertos na aldeia e paga a todos que o ajudam nos reparos quatro vezes mais que o valor de mercado. Acham que ele é rico.
- Por um lado, isso é um problema aqui, mas procuro garantir o sustento da minha família, principalmente o da minha filha. Quero que ela fale várias línguas para ter poder de escolha e muitas portas abertas na vida.
Chris garante que foi bem aceito pela aldeia e, principalmente, pelo sogro:
- Quando ele deixou que a filha dele fosse conhecer a Alemanha comigo eu vi que tinha sido aprovado.
Ao ser questionado se ela gostou, responde prontamente:
- Não... foi um choque muito grande. Quis voltar.
Ao fim da partida, desânimo geral na aldeia, Kissibi se despede deixando um cartão com seu nome, e-mail, telefone e Facebook.

O Globo, 18/06/2014, Especial, p. 19

http://oglobo.globo.com/brasil/indios-do-xingu-conhecem-arena-pantanal-…

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