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Mulheres quilombolas comandam liga de futebol no interior da Bahia

Terra - https://www.terra.com.br/
Autor: Jayanne Rodrigues
15 de Ago de 2021

Elas resistem aos efeitos da pandemia e retomam os treinos em busca de valorização do esporte em comunidades ribeirinhas do sertão baiano

Chão de terra batida, uma bola rolando e a árbitra apita mais um início de jogo. Após um ano de hiato, as integrantes da Liga Quilombola de Futebol Feminino retomam a prática esportiva no baixo Salitre, interior de Juazeiro, região ribeirinha localizada no norte da Bahia. Criada em 2015, a liga é formada por mais de 11 times distribuídos em comunidades rurais.

Quando Dudu Sena, homem transexual, decidiu fundar times de futebol feminino, ele enfrentou a resistência das pessoas que consideravam a prática esportiva "coisa de macho". Mas ele driblou o estigma do preconceito antes mesmo de entrar em campo, não permitia o questionamento da sua sexualidade. Esse perfil transgressor se tornou referência para o fortalecimento do futebol de mulheres.

"Os homens que jogavam riam da gente", conta Eliana Leite, uma das primeiras jogadoras da liga. Não demorou para o crescimento do campeonato disparar, outras mulheres se empolgaram com a iniciativa e, em poucos meses, a iniciativa estava estruturada.

Para a surpresa daqueles que zombavam, os jogos de mulheres passaram a atrair dezenas de pessoas, e até mesmo, ultrapassar o público que acompanhava as partidas masculinas na região. Esse feito se repete no âmbito nacional. Segundo dados do Ibope, entre 2014 e 2018, houve aumento de 30% no tempo médio consumido do futebol por mulheres.

Realidade diferente do ano em que Eliana Leite nasceu. Naquela época, o futebol de mulheres ainda era proibido, só dois anos depois a prática foi regulamentada no País, em 1983. Hoje, com 39 anos, ela concilia a profissão de pescadora com as chuteiras. "Eu jogo porque eu gosto." O entusiasmo da jogadora combina com os refrãos da banda pernambucana Eddie: "É assim que ela é, metade futebol, metade mulher."

Eliana é zagueira do Coleguinhas Fashion Futebol Clube, time da comunidade Rodeadouro. A atuação da zagueira no campo lhe rendeu o apelido de Muralha. A filha de Eliana também foi influenciada a calçar as chuteiras. Elissandra Batista estreou em 2017, aos 13 anos. Ao lado da mãe, ela também se tornou uma das zagueiras do Coleguinhas Fashion.

De início, Eliana ficou contrariada com a decisão da filha, "achava ela muito nova pra jogar". Mas depois, incentivou o desenvolvimento de Elissandra no campo. Juntas, mãe e filha já vivenciaram as principais vitórias do Coleguinhas, foram campeãs do Campeonato Juazeiro em 2016. E vice por duas vezes, nos anos de 2017 e 2019.

Fundador da liga, Dudu Sena faleceu em 2019, em decorrência de um câncer de útero. Mas ele ainda pode ver o auge dos times, principalmente, quando a liga estava em ascensão participando de disputas regionais nos entornos. O legado dele continua latente para as jogadoras. "A gente nunca desistiu porque ele pediu para não deixar o Coleguinhas", conta Eliana.

Além do Rodeadouro, outras 10 comunidades ribeirinhas fazem parte da formação. Uma delas é o Horto, localidade que deu nome à equipe que Silvana Ribeiro, de 38 anos, assume dupla função - coordena e joga -, há mais de quatro anos. Assim como outros times pequenos, o Horto Futebol Clube se manteve com um orçamento pequeno. "A gente fazia vaquinhas de R$ 2 nas comunidades para poder jogar em outros lugares", lembra Silvana.

Desde que iniciou a trajetória no futebol, a jogadora só se ausentou dos campos por 12 meses, período de gestação e do puerpério do terceiro filho. Ela contou com o apoio do marido. "Ele é jogador há mais tempo, então me ensinava e me dava força." Diferentemente de Silvana, outras jogadoras sofreram preconceito dentro da própria casa. "Às vezes, os maridos não deixam", lamenta.

Com a chegada da pandemia, todos os jogos foram cancelados. Este ano, somente os times Coleguinhas e Horto retomaram os treinos semanais. Os outros clubes da liga ainda não normalizaram as atividades. Seja por falta de patrocínio ou pela mudança brusca no cotidiano das jogadoras que precisam acompanhar as aulas onlines dos filhos, além de lidar com o desemprego que atinge muitas das integrantes.

"Essas meninas que começam a jogar futebol, elas passam desde esse problema de preconceito até um problema que não dá pra se sustentar só com o esporte", reforça Klene Silva, pesquisadora de futebol e mulheres pela Universidade Federal de Grande Dourados do Mato Grosso do Sul.

A Copa do Mundo de 2019 representa um marco na visibilidade do futebol de mulheres. Mas a pesquisadora afirma que esse crescimento precisa ser visto com um olhar crítico. "Foi uma visibilidade temporária e mercadológica, mas foi uma visibilidade." Neste ano, o Museu do Futebol lançou um audioguia para contar histórias esquecidas desde os primeiros jogos femininos registrados no país em 1920 até a atualidade. "Apesar das proibições, avançamos, mas ainda tem muito o que melhorar", considera Klene.

Embora a história da modalidade tenha evoluído, ainda existem lacunas. Um estudo da Fifa lançado em 2019, revelou que o Brasil tem apenas 475 jogadoras abaixo de 18 anos registradas nos clubes. "Ainda falta discussão do futebol de mulheres praticado no interior do país, fora do eixo Rio e São Paulo", diz Klene.

É preciso investir na base, nas categorias que não são de alto rendimento. "A gente não tem uma Marta se a gente não tem um futebol de base", destaca a pesquisadora. Longe dos holofotes, o futebol de mulheres se torna uma prática cultural nessas comunidades quilombolas e fortalece a prática esportiva para as futuras gerações.

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