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Muito além de jacarés e tuiuiús

O Globo, Razão Social, p. 12-14
05 de Jul de 2004

Muito além de jacarés e tuiuiús

Por Aydano André Motta

A terra conhecida - e admirada - mundo afora por causa de jacarés, tuiuiús e outras maravilhas ambientais também serve de habitat natural para uma cultura rica e fascinante que, como os animais e plantas, estava sucumbindo à devastação. Um contra-ataque, felizmente, está em curso, pelo bom caminho da responsabilidade social. O Sapicuá Pantaneiro, projeto patrocinado pelo Instituto Júnia Rabello, do Banco Rural, envia professores às fazendas da região, para ensinar aos camponeses os encantos da cultura local. E ainda gerar renda com ela.
A integração venceu adversários poderosos, como a distância entre as fazendas cortadas por rios e uma vegetação que mistura matas, cerrados e savanas, para beneficiar filhos de trabalhadores das fazendas, com uma opção acessória ao estudo convencional. Durante uma semana, os alunos aprendem ofícios como a confecção da faixa pantaneira, adorno usado na cintura pelos peões para sustentar a coluna nas cavalgadas de séculos passados. A escola nas fazendas do Pantanal pratica a filosofia de fixar o homem no campo, adaptando o ensino regional, com valores pantaneiros. O Sapicuá Pantaneiro foi criado e é dirigido por Cláudia de Medeiros, produtora cultural nascida em Barra Mansa (RJ) que na adolescência adotou o Mato $do Sul como pátria. A paixão pela cultura local cresceu, até ela conhecer o projeto da Escola Pantaneira ligada a Aquidauana, que tem Núcleos Escolares funcionando nas fazendas. Quando o Instituto do Parque Regional do Pantanal criou unidades semelhantes, Cláudia decidiu mergulhar de vez no projeto.
- O Pantanal tem muitas pesquisas voltadas para o meio ambiente, para os animais. Eu me preocupei com as pessoas e com a cultura - explica ela.
O trabalho é realizado com materiais rústicos existentes na fazenda. Os alunos aprendem a curtir couro, fazer chinelos e bancos pantaneiros e usar a lã de carneiro - além da badalada faixa pantaneira. Ao todo, 400 pessoas foram beneficiadas em 14 oficinas realizadas.
- O principal é incentivar e dissemi$a prática. Não posso pensar em vendas se o artesanato não tem o melhor acabamento - observa Cláudia. - Tratamos do resgate cultural, unindo as gerações, com o envolvimento de crianças e adultos na mesma oficina. Mas sempre tomando cuidado com o trabalho infantil - acrescenta ela, testemunha de um início, ainda incipiente, de organização para vender os produtos aos turistas.
A oficina e as aulas durante uma semana funcionam em horários intercalados, dividindo as turmas para melhor desenvolvimento do projeto. Por vezes, para atender aos peões, invadem a noite - uma aventura, para quem está habituado a acordar com o sol. O esforço é maior para os professores, obrigados a percorrer, pela causa, até dez horas de carro, por inóspitas estradas de chão. Isso fora $época de cheia, quando as fazendas ficam isoladas do resto do planeta.
O Sapicuá (nome do saco no qual os pantaneiros carregam a erva-mate e a cuia para tomar o tereré, bebida herdada da cultura fronteiriça paraguaia) ainda valoriza as palavras da região e as formas de fazer objetos. Em dois núcleos, o projeto tem apoio do Clube de Mães das escolas pantaneiras, que promovem mu$ão mensal para curtir couro.
- As crianças dizem, orgulhosas, que não precisam mais comprar chinelo, porque aprenderam a fazer - conta Cláudia. - A escola desperta curiosidade, ajuda a conquistar a confiança das pessoas. Elas voltam, porque descobrem que faz parte da realidade delas. Marly Ocampos é uma das professoras do programa. Ela ensina às crianças $mágica de fazer a faixa pantaneira, passando o conhecimento aprendido em família, com a avó.
- É simples - garante, modesta. - A faixa grande, masculina, leva um dia e meio para ficar pronta; a feminina, um dia. Nunca me imaginei dando aula para alguém - orgulha-se.
Cláudia de Medeiros rende homenagens a pessoas como Marly.
- Vou tecendo uma colcha com as pessoas que conhecem de verdade o artesanato. O projeto é da comunidade, desenvolvido por pessoas da comunidade - ela dá a receita da preservação diferente que grassa no Pantanal.
PROJETO SAPICUÁ PANTANEIRO
sapicuá@hotmail.com.br
Tel: (67) 356-2916

Quem Ganha
Estava na aula normal quando a professora anunciou que os integrantes do projeto fariam uma palestra. Eu me interessei em fazer, achei legal e importante conhecer a cultura da minha região. Eu já conhecia a faixa paraguaia, os adultos usam sempre, mas eu não. Acho que não fica bem para gente da minha idade. Aprendi a fazer e levo dois dias para aprontar uma faixa. Fiz uma de homem e uma de criança. Talvez eu faça uma para dar de presente ao meu pai. Depois que se pega o jeito é fácil. Pelo menos é o que eu acho, mas acredito que o fato de ter aprendido a costurar quando era criança tenha me ajudado. Considero muito importante o projeto de cuidar da preservação da cultura, acredito que todo mundo devia se preocupar com isso. Nem me importo de ficar depois da aula no colégio, entrar pela tarde aprendendo. Inclusive, vários colegas, especialmente meninas, ficam também. Dos 18 alunos da escola, dez participam da oficina. É bom eu aprender a fazer coisas que possam me sustentar aqui, que é onde quero viver. Tenho sonho de conhecer o mar, o Rio de Janeiro, mas quero voltar, porque sei que meu lugar é aqui, no Pantanal."
Luziane Mendes de Souza, 14 anos, estudante da 4 série da escola que funciona na fazenda Baía das Pedras, em Aquidauana, onde ela moral com os pais e um irmão.

Preservar a cultura da região é o mais difícil
Na sua luta pela preservação da cultura na região, o Sapicuá Pantaneiro encontrou adversário peculiar - a programação das televisões. As fazendas do Pantanal utilizam antenas parabólicas, que captam os programas e noticiários exibidos em São Paulo. Como praticamente inexiste produção local em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, até os anúncios são os criados para o público paulista. Materializa-se assim uma cultura dominante, repetindo no Brasil o fenômeno que ocorre, em escala planetária, com outros países.
- Aqui quase não chega jornal, revista, porque a região é muito grande, as distâncias são enormes - explica a produtora cultural Claudia de Medeiros, sublinhando a importância de se valorizar até as palavras usadas só naquele pedaço do Brasil. - O projeto é dinâmico, ganha forma de acordo com as decisões dos moradores. Em cada fazenda encontramos preferências e características diferentes.
Ela conta que o projeto oferece ainda um manual, com o passo a passo para os professores darem aulas. A venda dos guias ajuda na receita para transporte e alimentação dos participantes durante as longas viagens estado adentro.
- Os pantaneiros não são pobres, têm casa e comida nas fazendas onde trabalham. São apenas pessoas simples, trabalhadores rurais - explica ela, sobre a diferença para projetos sociais nos centros urbanos do Brasil.
Consultora do Instituto Júnia Rabello, Nízia Rodrigues elogia o Sapicuá Pantaneiro justamente pela sua preocupação com a cultura da região. Além de admirar o desafio de conseguir levar a educação a lugares remotos, que $longas viagens por vários meios de transporte.
- É a cultura de homens que vivem num ambiente superespecial. E não é o compromisso de um grupinho apenas. Envolve fazendeiros, peões, a comunidade inteira para, no fim, ainda gerar renda, preservando formas de ganhar a vida - analisa ela.
Nízia defende que outras regiões do Brasil, como o sertão nordestino, onde existam culturas a serem protegidas, recebam programas semelhantes ao Sapicuá Pantaneiro. A atitude, pondera ela, sinaliza um olhar não apenas para a pobreza dos lugares, mas na direção de suas riquezas.
- O diagnóstico em programas como esse é pelo que as pessoas do $têm de forte, de positivo, do que fazem com qualidade, ao invés de ficar parado diante das barreiras - sustenta a consultora. - O Sapicuá tornou-se exemplo até por ter transformado o problema das distâncias numa solução, com os professores ficando nas fazendas por uma semana ou 15 dias.
Através do Instituto Júnia Rabello, o Banco Rural investiu em 42 projetos, de 2003 até agora. Segundo Nízia, os que dão mais resultado são justamente os voltados para a preservação e recuperação do que as comunidades têm de melhor, e não nas suas carências. A consultora também defende o cuidado com a cultura, gênese e alicerce do Sapicuá.
- Claro que todo mundo deve conhecer a cultura dominante, para aproveitar o que ela tem de melhor. Não se pode viver isolado do mundo. Mas os lados regionais precisam ser cuidados, preservados. - aponta, apostando num caminho. - Atrelar a cultura local à educação é a chave - receita.
Como exemplo de boa ação, ela cita as aulas dos mestres violeiros no interior de Pernambuco, dentro do "Respeita Januária", outro programa que tem o apoio do Banco Rural.
- Não temos idéia de quanto de cultura se está perdendo pelo Brasil - constata, repetindo, na dimensão nacional, o raciocínio que levou Cláudia de Medeiros a pôr em prática o Sapicuá Pantaneiro.

Outros projetos patrocinados
CULTURARTE NO CAMPO em Anajatuba (MA), de capacitação profissional para trabalhadores rurais e ações para o desenvolvimento sócio-educativo-cultural da comunidade.
ESTRELAS COLORIDAS em Araçoiaba da Serra (SP), que cria processo terapêutico-social para dar condições a jovens mães (14 a 25 anos) de viver com seus filhos.
CICA EM CENA em Campo Grande (MS), que usa o teatro para melhorar a auto-estima de crianças carentes.
MENTE LIVRE em Janaúba (MG), que mantém oficinas de música, artesanato, teatro e aulas de filosofia para promover valores éticos e humanos nos alunos.
RECRIANÇA em Salvador (BA), que apóia a capacitação de 30 jovens para trabalhar na recreação pedagógica de 800 crianças da região.

O Globo, 05/07/2004, Razão Social, p. 12-14

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