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Mudanças na política de saúde indígena causam preocupações e desconfianças

Site do ISA-Socioambiental.org-São Paulo-SP
Autor: Fernando Vianna e Inês Zanchetta
11 de Fev de 2004

Com base em duas portarias editadas em janeiro e em oficina realizada em Brasília, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) anuncia a extinção do repasse de recursos públicos federais a estados, municípios, organizações indígenas, ONGs e outras instituições com quem mantém convênio para fins de execução de ações de atenção à saúde indígena. A atual direção da Funasa quer executar diretamente as ações em todo o país, deixando às conveniadas apenas a tarefa de contratar e capacitar pessoal.

O atual comando do Ministério da Saúde (MS) e seu braço executivo, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), definiram em janeiro o que se insinuava desde 2003: mudanças no modelo de gestão da atenção à saúde indígena. Foram duas portarias do MS, ambas de 20/01/2004, que serviram de base para um projeto que dá maior poder à Funasa e cria um Comitê Consultivo da Política de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas Portaria no 69 e Portaria no 70. Depois da edição das portarias, que pegou de surpresa grande parte dos que atuam na área, o MS e a Funasa anunciaram o novo projeto político durante a I Oficina Integrada de Saúde Indígena, que realizaram em Brasília, de 2 a 6/2.

O evento reuniu, na Academia de Tênis, cerca de 200 convidados, entre funcionários do MS e da Funasa e pessoas - indígenas e não-indígenas - que têm relação com a atenção à saúde indígena Mais do que uma oficina de trabalho em que se debatem propostas, foi um encontro organizado pelo MS e pela Funasa para comunicar decisões que, embora incompletas em importantes detalhes, parecem já irreversivelmente tomadas.

Ações da Funasa e ações "complementares"

O modelo de gestão da saúde indígena hoje vigente iniciou-se ao longo da década de 1990 e foi definido por uma série de atos normativos, culminando com o Decreto no 3156, de 27 de agosto de 1999, e com a chamada "Lei Arouca" (no 9.836), de 23 de setembro de 1999, que instituiu o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. Este modelo está fundado na existência dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs): regiões do território brasileiro nas quais a execução das ações do setor se dá por meio de convênios entre a Funasa, de um lado, e, de outro, estados, municípios, organizações indígenas, organizações não-governamentais e outras instituições. A Funasa pactua com estas suas conveniadas linhas de atuação a serem seguidas, repassa a elas recursos públicos federais e fiscaliza os gastos efetuados. Agora, a intenção da Funasa é que ela própria passe a executar diretamente as ações do setor, restando a seus parceiros, governamentais e não-governamentais, atuar de forma complementar.

O caráter preciso dessas ações complementares deverá ser definido caso a caso, em negociações regionalizadas ainda por acontecer. Envolvendo o Departamento de Saúde Indígena (Desai) e as Coordenações Regionais (Core) da Funasa, assim como os Conselhos de cada DSEI, essas negociações fazem parte da agenda de curto prazo estipulada pelo órgão para efetivar a reestruturação em curso. Convênios ainda vigentes devem ser substituídos por outros, celebrados já no novo modelo, ou, no máximo, com vistas à efetiva transição, prorrogados até 31/ 03. No cenário ideal projetado pela Funasa, convênios condizentes com sua nova política estariam vigentes em todos os DSEIs a partir de 01/04. Apesar de diversas indefinições, que deverão ser suprimidas ao longo desta agenda imediata de rediscussão dos convênios, a Fundação já anuncia sua disposição em contar com parceiros que, a título de ações complementares, assumam a contratação e a capacitação de recursos humanos - e apenas isto; ela própria se encarregaria de ações como a aquisição e distribuição de medicamentos, licitação, obras, transporte de equipes que trabalham nas aldeias e compra de combustíveis.

O que há de novo?

Durante a oficina, a atual direção da Funasa oscilou entre afirmar suas propostas como uma real mudança em relação à política do governo federal anterior e em minorar as alterações efetuadas. Assim, mais do que um "novo" modelo, estaríamos diante da mera correção de rumos do atual, que, ao trabalhar com repasse de recursos públicos e responsabilidades a instituições conveniadas, acabou, na avaliação do governo federal, por fazer com que o papel de estados, municípios e entidades não-governamentais na execução das ações da saúde indígena fossem mais do que "complementares", sobrepujando o papel da própria União, em desacordo com o que reza o artigo 19-E da "Lei Arouca". Por uma questão de legalidade, caberia então, sempre conforme o apresentado durante a oficina em Brasília por representantes do governo federal, redefinir as competências que lhe cabem por meio do MS e da Funasa, e dos demais integrantes do setor.

Entretanto, não se trata apenas de uma questão legal. O Estado tem todo o direito de mudar suas políticas e, nesta direção, de executar diretamente as ações básicas da saúde indígena. Mas o que se pergunta é se terá, de fato, condições de fazer isso. A história recente demonstra que não.

Um exemplo foi o que aconteceu com a saúde dos Yanomami, em Roraima. A Urihi- Saúde Yanomami divulgou dados em novembro de 2003 demonstrando melhora considerável na ocorrência de casos de malária e redução na mortalidade infantil, resultado de suas ações a partir de 1999. Ao longo de sua trajetória, a Urihi testemunhou in loco a incapacidade de a Funasa executar por si mesma ações em áreas de difícil acesso. A própria constituição da Urihi foi, em larga medida, uma resposta a tal ineficiência.

Como ficam as atuais conveniadas; quem serão as novas?

Na avaliação de instituições hoje conveniadas à Funasa, a nova proposta apresentada na oficina contém vários senões, a começar pelo modo atropelado e pouco participativo como foi gestada. Apesar de o atual responsável pelo Desai/ Funasa, Ricardo Chagas, esforçar-se em afirmar que tal política nada mais é que a incorporação de antigos consensos coletivos - os resultados da II e III Conferências Nacionais de Saúde Indígena (1993 e 2001) - e de processos de diálogo que, segundo ele, ocorreram ao longo do ano de 2003, fato é que representantes de organizações indígenas e ONGs manifestaram ao microfone e em conversas paralelas sua surpresa, perplexidade e indignação por não terem sido consultados antes de definidas as mudanças.

Da perspectiva de ONGs como a Urihi - Saúde Yanomami, há razões de sobra para se desconfiar da política que começa a se redesenhar. Em DSEIs como o Yanomami, a melhoria dos indicadores de saúde após a entrada em cena das ONGs é inegável, e é preocupante que a Funasa formule uma proposta que, de início, trata todos os DSEIs - os que podem ser considerados um avanço e os que não têm andado tão bem - de maneira única. É oportuno recordar que, ainda em dezembro do ano passado, a Comissão Pró-Yanomami divulgava em seu site uma carta manifestando seus temores quanto ao desmantelamento da assistência à saúde indígena yanomami. Agora, depois que as decisões do governo federal passaram por cima do processo de diálogo, não dá para não pensar efetivamente em retrocesso.

Já do ponto-de-vista de organizações indígenas como a Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) ou o CIR (Conselho Indígena de Roraima), a política recém-anunciada pela Funasa pode ser igualmente pensada como um andar para trás. No espírito do atual modelo, elas foram instadas a assinar convênios e a assumir integral ou parcialmente a execução das ações em seus respectivos DSEIs. A fim de dar conta de ações não previstas por seus projetos próprios de organização, tiveram de rever suas estruturas de funcionamento e de readequar suas políticas de recursos humanos. Nesse processo, passaram a operar com volumes orçamentários nunca antes conhecidos. E se é certo que lidar com finanças de grande porte coloca essas organizações diante de largos desafios de remodelagem institucional, também é verdade que funciona como contrapeso importante na correlação de forças com os poderes locais, freqüentemente nas mãos de setores anti-indígenas. Desse modo, retirá-las do jogo pode soar um pouco como arbitrar em favor do adversário, mandando-as novamente ao banco de reservas em nome de uma deslocada ideologia estatista. Resta saber como será a posição de cada uma delas nas negociações região a região que se anunciam.

Um outro problema que o processo recém-desencadeado pela Funasa coloca diz respeito ao perfil das instituições que ela quer ter como parceiras no âmbito dos DSEIs. Para que a Fundação possa assumir a maior parte da execução das ações em escala nacional, é necessário que fortaleça seu corpo de funcionários, o que esbarra, ao menos no curto prazo, nas formalidades burocráticas impostas pelas regras da administração pública para contratação de pessoal. É possível que advenha daí o fato de ser esta a principal esfera de atuação prevista para seguir a cargo do setor não-governamental. No modelo que ora se propõe, parece caber às conveniadas especialmente a pior parte, a da burocracia da administração de pessoal.

Se isso for mesmo tudo o que sobrar, é previsível que organizações indígenas e de apoio aos índios, que vêm se empenhando em desenvolver trabalhos sérios no campo da saúde, vejam-se obrigadas a se retirar de cena. Isso porque não se pode supor que suas assessorias jurídicas - ao menos elas - recomendassem compactuar com operações que, em que pese ainda não terem sido objeto de uma proposta clara por parte da Funasa, insinuam-se alegoricamente como "empréstimos de CGC" ou "esquemas-laranja". A que tipo de "parceiras", então, estaria sendo franqueado o terreno de atuação não-governamental: instituições oportunisticamente formadas, talvez com o apoio de funcionários e ex-funcionários públicos bem informados e bem relacionados; organizações indígenas que se satisfaçam com possíveis benesses de redes clientelísticas em que figurem como sócios menores?

O alvoroço dos poderes políticos locais e regionais

Seja como for, o modelo em vigor foi alvo de críticas de políticos locais desde o início, já que as verbas destinadas à saúde indígena não seriam mais controladas por eles. O senador Mozarildo Cavalcanti, de Roraima, por exemplo, conhecido por suas posições anti-indígenas, considerou positiva e oportuna a decisão da Funasa de retomar o comando das ações, conforme publicado na edição de 5/2/04 do jornal roraimense Brasil Norte.

Vale lembrar ainda que, de acordo com reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, publicada em 31 de agosto de 2003, a Funasa havia sido loteada entre petistas e aliados - das Coordenações e diretorias Regionais da Funasa, o PT ocupava 13 postos, o PTB, 4, PMDB, 3. Já o PV, PPS e PSB, tiveram uma coordenação cada e o PC do B e o PTB ganharam duas diretorias cada um. A mesma reportagem dizia que, no governo anterior, esses cargos eram preenchidos por funcionários de carreira com experiência de pelo menos cinco anos. Com um quadro desses, a proposta de um novo modelo só poderia mesmo gerar muitas desconfianças.

Do que foi apresentado em Brasília durante a I Oficina Integrada de Saúde Indígena, permanecem várias incertezas - umas são políticas, outras, técnicas; e há, por fim, as jurídicas, diante das quais recomenda-se a leitura da contribuição de Villi Fritz Seilert e o posicionamento público de outros profissionais da área jurídica.

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