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Mudança de hábito na Amazônia

O Globo, Sociedade, p. 34
02 de Fev de 2019

Mudança de hábito na Amazônia
Missionários cristãos atuam em mais da metade dos grupos indígenas na região

Começou nas décadas de 1930 e 40, quando pesquisadores estrangeiros, com apoio de instituições brasileiras, adentraram na Amazônia para resgatar idiomas quase extintos diante do desaparecimento de tribos. Mas além do interesse científico os missionários linguistas carregavam a Bíblia debaixo do braço. Quase um século depois, o avanço cristão deixou marcas floresta afora. Das 340 etnias indígenas presentes na região, 182, ou 53,5% do total, têm presença missionária evangélica. Em 132, representantes da população nativa participam da pregação, segundo um relatório de 2010 da Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB). Órgãos oficiais, como a Fundação Nacional do Índio (Funai), não têm estimativas sobre a quantidade de grupos atuantes nas tribos. Em algumas, os religiosos construíram igrejas dentro dos territórios indígenas, o que é proibido por lei. - É uma ocupação desordenada. Quando percebemos, os missionários já estão ali sem respeitar critérios como apresentar documentação e vacinação - relata Junio Esllei Martins de Oliveira, coordenador geral da ONG Instituto Kabu, que representa 12 aldeias caiapós no Pará. - Às vezes as missões condenam aspectos de nossa cultura, como o canto, a dança e a figura do pajé. Esllei calcula que, entre os 1.700 caiapós que habitam as aldeias, 30% foram convertidos ao cristianismo evangélioa. E ressalta que "não é contra nem a favor" do fenômeno, desde que as crenças indígenas sejam respeitadas: - A Funai, que deveria controlar a entrada dessas pessoas, está muito fragilizada. Tem outras prioridades, como conter a ação de nosso território por grileiros. Estamos em uma área conhecida pelo intenso desmatamento. O órgão indígena reconhece que algumas missões religiosas chegam à Amazônia sob o pretexto de realizar pesquisas científicas, incluindo o aprendizado de idiomas. Antropóloga e professora do Museu Nacional, Aparecida Vilaça, que estuda em Rondônia a tribo wari, critica o "descontrole e a conivência" do poder público.

- Um pesquisador precisa passar por uma série de requisitos para entrar em uma aldeia, como apresentar cronogramas do estudo e enviar seu projeto a colegas. Para os missionários, porém, não há controle, uma autorização formal para ingresso ou processo de expulsão. Alguns estão na mesma região há gerações - compara. - Eles entram no território com tecnologias e medicamentos. Associam a cura de doenças à oração, dizem que o fim do mundo está próximo e, por isso, aqueles que não rezam podem sofrer punições como ser engolidos por animais gigantes.

'EX-PAJÉ'

O sermão catastrofista e o encanto com os artigos levados à aldeia põem em xeque a credibilidade dos líderes locais. É o caso de Perpera Suruí, pajé do Território Indígena Paiter Suruí, na fronteira de Rondônia com Mato Grosso. A cruzada promovida por pastores evangélicos contra rituais tradicionais, como a adoração de espíritos, jogou-o em uma espécie de limbo - deixou de receber remédios, bolsa de assistência social e carona para a cidade.

- Entregar programas de educação e saúde indígena a fundamentalistas é complicado - adverte Luiz Bolognesi, diretor e roteirista de "Ex-pajé", documentário sobre Perpera Suruí. - Os missionários promovem uma série de práticas ilegais, como montar igrejas em territórios indígenas. Hoje, Perpera é zelador de um templo.

Em 2010, segundo o relatório da AMTB, o país contava com uma associação indígena de tradutores - voltados principalmente para a conversão da Bíblia aos idiomas locais - e um conselho de pastores e líderes evangélicos indígenas. -Os missionários estabelecem nas aldeias uma relação de cumplicidade, inclusive com os líderes indígenas, que muitas vezes estão em situação precária. Hoje, muitas têm pastores e diáconos indígenas - explica Artionka Capiberibe, antropóloga da Unicamp. Da mesma forma como conseguem entrar em uma tribo, os missionários, de acordo com especialistas ouvidos pela reportagem, não encontram dificuldades em retirar crianças daquele ambiente. Para isso, fazem exames em que atestam o que seriam más condições de saúde, e, já na cidade, cortam o contato entre os pequenos índios e sua família. Eles, então, passam por um processo "civilizacional" - aprendem o cristianismo, são alfabetizadas em português, ganham roupas e brinquedos e provam alimentos que não existem em sua aldeia.

O Globo, 02/02/2019. Sociedade, p. 34.

https://oglobo.globo.com/sociedade/missionarios-cristaos-atuam-em-mais-…

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