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Adiante, n. 7, jul. 2006, p. 24-27
31 de Jul de 2006

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A cobrança por maior transparência é legítima, mas também parte de setores contrariados com a atuação das ONGs

Por Amália Safatle

No início de junho, onze ONGs internacionais ligadas a direitos humanos, causas sociais e ambientais publicaram uma declaração- a Accountability Charter -, pela qual se comprometeram a prestar contas à sociedade de sua atuação, em linha com uma série de missões e princípios adotados.
Os "mandamentos" incluem boas práticas de governança e administração, engajamento de stakeholders (partes interessadas), respeito aos princípios universais, independência, eficiência, não-discriminação, transparência e ética na captação de recursos.
Assinaram a declaração: ActionAid, Amnesty, Civicus, Consumers, Greenpeace, Oxfam, Save the Children Alliance, Survival, Terre des Hommes, Transparency e YWCA.
As organizações afirmam que essa é uma atitude sem precedentes na história da sociedade civil. Trata-se de uma reação clara à crescente cobrança por transparência e governança no terceiro setor. Falta saber se essa cobrança surge de forma legítima da sociedade ou é promovida por segmentos incomodados pela atuação das organizações, que buscam minar seu poder de influência.
A pressão cresce no momento em que os recursos dos financiadores escasseiam (reportagem à página 30), o que pede maior rigor na escolha de projetos eficazes - no sentido de atingir um objetivo - e de organizações eficientes no uso dos recursos.
"As ONGs em geral são pouco transparentes e exercem mecanismos de decisão injustos. O que levanta a dúvida: será que não estão agindo em causa própria?% questiona Eduardo Felipe Pérez Matias, sócio do L.O. Baptista Advogados.
"O debate sem preconceito sobre as ONGs é muito saudável. O controle social só ajuda a constituir democracia% afirma Sérgio Haddad, presidente da Associação Brasileira de ONGs (Abong). Haddad observa, entretanto, que esse mesmo exercício crítico não se estende às fundações ligadas às empresas. "São dois pesos e duas medidas, como se as empresas pudessem fazer a ação social melhor que as ONGs. A corrupção não é prerrogativa de um ou outro setor, a sociedade inteira é corrupta por princípio% afirma.
Antonio Carlos Carneiro de Albuquerque, autor do livro Terceiro Setor- História e Gestão de Organizações (Summus Editorial), sublinha a falta de transparência na regulamentação e nos processos entre governo, o terceiro setor e o histórico de clientelismo político nos países latino-americanos, o que acaba levando à ausência de maior cooperação entre todas as partes da sociedade.
Prestação de contas
Sérgio Leitão, diretor de políticas públicas do Greenpeace, diz que a cobrança "vem sempre do lado errado": não em prol da transparência e sim como cerceamento às atividades, a exemplo da CPI das ONGs instalada em 2000.
Volta e meia organizações não governamentais aparecem nas manchetes envolvidas em escândalos políticos, usadas em desvios de verbas públicas - fatos que são aproveitados para corroborar as críticas à falta de transparência das instituições. Um projeto de lei, de autoria de Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR), foi aprovado no Senado no sentido de restringir a atuação das entidades.
É importante ressalvar que há uma série de ONGs com trabalho sério e respeitado, e boas práticas de transparência e governança.
Para Leitão, as críticas em geral vêm de setores empresariais e governamentais que se sentem contrariados com, por exemplo, a criação de unidades de conservação, de reservas indígenas, de licenciamento ambiental, entre outras ações. "Então esses setores encontram bancadas no Congresso que lhes dão voz", afirma.
Fernando Nabais da Furriela, advogado e presidente do conselho do Greenpeace, avalia que nessa questão há dois direitos que se contrapõem: o da transparência e o da estratégia. Cabe às organizações encontrar o caminho do meio. "Quando uma ONG divulga determinados dados internos, pode ficar vulnerável, abrindo flancos. Muitas vezes há dados que são estratégicos", explica.
Há quem diga que a cultura "fechada" das ONGs no Brasil tem uma explicação histórica, ligada à ditadura militar, que perseguia toda e qualquer militância. Argumento que podia ser válido até os anos 80, mas que se perde com o processo de democratização.
Uma forma de as organizações prestarem contas à sociedade é publicar um balanço social. O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), que pelas mãos de Betinho criou o balanço social para as empresas, foi a primeira ONG a publicar uma versão adaptada ao terceiro setor, há quatro anos.
Segundo Cândido Grzybowski, o Ibase sugere às associadas da Abong que o publiquem, mas nem mesmo o instituto sabe dizer quantas já aderiram. O controle de adesão ë feito apenas junto a empresas.
Para Grzybowski, a terminologia "ONG" já sofreu um desgaste irremediável. "É impossível ressuscitá-la. O Marcola tem uma ONG! Não tem, mais salvação", diz.
Outro desafio em nome da legitimidade dás organizações no País está ligado a sua governança. O representante de uma ONG que prefere não se identificar afirma que há uma "eternização" dos líderes, pouco rodízio e um processo dinástico de sucessão - justamente em um setor que prega a democracia, o pluralismo e a justiça social. "Algumas assembléias de sócios são meramente protocolares e a discussão fica restrita a um grupinho interno", afirma. (Leia artigo "Democracia também da porta para dentro").
Furriela, na presidência do conselho do Greenpeace até janeiro, criou uma regra para que o mandato seja limitado a dois anos, reelegível por apenas mais um período. E há mais lição de casa para fazer.
De acordo com o relatório A ONG do Século 21, produzido pela consultoria SustainAbility, hoje se exige que os conselhos das ONGs determinem a direção da organização, elaborem planos e políticas, empreguem, apóiem e avaliem o diretor-executivo, aprovem orçamentos e monitorem gastos, arrecadem fundos e promovam a causa da organização.
Enrique Svirsly, secretário-executivo adjunto do Instituto Socioambiental, a maior ONG ambientalista nacional, com 115 funcionários, admite que há problemas de governança e de transparência nas instituições brasileiras de forma geral, mas que muitas vezes a raiz da questão está na falta de infra-estrutura das entidades, das quais a maioria (77% das entidades do terceiro setor) não têm sequer um funcionário - são as chamadas INGs, "indivíduos não governamentais". Segundo ele, o ISA, em 12 anos de operação, já teve oito secretários-executivos diferentes.
Vício de origem
Justificativas à parte, Eduardo Capobianco, presidente do conselho deliberativo da Transparência Brasil, levantou mais questões durante a Conferência Internacional do Instituto Ethos: "O terceiro setor também é feito de pessoas que têm vaidade, que buscam poder e prestígio, que querem aparecer na telinha, que têm interesses financeiros e corporativos".
Parece haver um vício de origem no terceiro setor. Para Hélio Mattar, diretor-presidente do Akatu, apesar de as causas serem em prol de um bem coletivo, as ações sempre partem de iniciativas individuais. É o sujeito que quer fazer o bem, mas sente tanto orgulho do que faz que centraliza as operações e não consegue repartir o poder.
Carlos Siffert, conselheiro da empresa Promon, e que também participa do Instituto Razão Social, voltado à educação, fala das dificuldades em atuar no terceiro setor. Para ele, há um "territorialismo" exercido pelas ONGs, que em geral rejeitam a presença do setor privado na luta pela causa, por mais sério que seja o trabalho da empresa.
Aron Belinky, representante das ONGs na construção da norma ISO 26000, vale-se de um esquema para mostrar como se dividem as funções na sociedade. Quando os fins são públicos e os recursos também, falamos do governo, o primeiro setor. Quando os fins são privados e os recursos idem, trata-se do segundo setor, o empresarial. Quando os fins são públicos e os recursos privados, estamos falando do terceiro setor. Há uma quarta combinação: quando os recursos são públicos e os fins privados: "Isso é corrupção, o chamado quarto setor", afirma.
Para Belinky, a transparência, seja no primeiro, no segundo ou no terceiro setor, é a saída para combater o quarto, antes que ele mine todos os demais.

Adiante, n. 7, jul. 2006, p. 24-27

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