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Mortes ofuscam brilho do etanol

OESP, Economia, p. B12
01 de Abr de 2007

Mortes ofuscam brilho do etanol
Sustentabilidade reivindicada pelo setor está distante quando o assunto é a relação com os bóias-frias

Agnaldo Brito

A bilionária indústria brasileira da cana-de-açúcar, setor que promete faturar R$ 40,3 bilhões nesta safra, é um indiscutível caso de sucesso. Mas a fama de indústria sustentável está em xeque, tanto pelos riscos de concentração fundiária e avanço sobre áreas sensíveis (como o Pantanal), quanto pelos riscos que impõe a boa parte dos 260 mil trabalhadores que farão a partir de agora a colheita da maior safra de cana da história do País.

O modelo de relação trabalhista, item que ampara parte desse sucesso econômico, pode estar matando gente. Essa é a conclusão do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Fundacentro, órgão de pesquisa do Ministério do Trabalho.

José Pereira Martins, 51 anos, natural de Araçuaí (MG), foi a última vítima que caiu sem vida num canavial paulista. Martins ampliou a lista de mortes nos canaviais de São Paulo, que agora chega a 18 trabalhadores. A história dessas mortes permanece obscura. A suspeita recai sobre a superexploração do trabalho, uma situação já classificada de semi-escravidão. A contabilidade dessas mortes começou a ser feita em 2004, quando a Pastoral do Migrante de Guariba (SP), começou a estranhar tantos óbitos de bóias-frias.

O Ministério Público do Trabalho da 15ª Região, responsável pelo interior paulista, abriu um inquérito para investigar o novo caso de óbito. Desde o ano passado, o MPT apura o que está ocorrendo no setor tão aplaudido no mundo e, aparentemente, tão mortífero para os braçais. Mário Antonio Gomes, promotor público do trabalho e responsável pelo megainquérito que corre no MP para apurar negligências no setor, aponta o modelo de remuneração por produção como a base de todos os problemas.

"É nele que reside o problema. O trabalhador só ganha um valor suficiente, cerca de R$ 900 a R$ 1,2 mil, se cortar mais cana. Como a remuneração básica de R$ 400 não consegue atender às necessidades, cortar volumes de 10 a 20 toneladas de cana por dia é o único jeito de o trabalhador alcançar uma remuneração melhor", explica. O modelo tem servido como nunca para a estupenda competitividade do etanol e do açúcar brasileiro. "O modelo pode ajudar a competitividade econômica do setor, mas, definitivamente, não é uma forma de garantir alguma qualidade de vida para milhares de bóias-frias."

O MPT prepara uma força tarefa de promotores para fazer uma devassa nos canaviais de São Paulo a partir desta semana, quando as primeiras usinas serão ligadas. "Vamos intensificar a fiscalização, ir onde não fomos no ano passado e voltar aos locais que visitamos em 2006. Embora, tenha havido melhoras, as primeiras notícias indicam que a situação pode ter piorado", afirma.

Pelo menos dez promotores integram essa força para atender a dois propósitos: descobrir e autuar empresas que ofereçam condições de trabalho e moradias degradantes; e tentar derrubar o modelo de remuneração por produção. "Não será fácil. Sindicatos e trabalhadores acham que o atual sistema é o melhor. Temos tentado mostrar como essa forma induz a esta situação." Outro esforço do MP é coibir a terceirização.

A Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Medicina e Segurança do Trabalho (Fundacentro) prepara um relatório sobre a situação dos canaviais. O dossiê será entregue ao Ministério do Trabalho e irá relatar abusos que ocorrem no setor. Segundo Maria Cristina Gonzaga, pesquisadora da Fundacentro, a super-safra de cana poderá causar um "massacre" de trabalhadores neste ano. "A situação no campo não melhorou nada em relação ao ano passado", garante.

MAIORES VÍTIMAS

A União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) estima que 260 mil trabalhadores irão cortar cana este ano. A previsão é que esse contingente corte 70% dos 420 milhões de toneladas da produção prevista para o Centro Sul.

Segundo a Unica, 45% dos trabalhadores são migrantes, oriundos do Norte de Minas Gerais e do Nordeste. São trabalhadores contratados diretamente por usinas, muitos por intermediários - os chamados gatos - e uma parcela ainda é a de informais. Esses trabalhadores que migram por conta própria para as regiões produtoras são, em geral, as principais vítimas da superexploração nos canaviais.

Segundo Patrícia Audi, coordenadora do projeto de combate ao trabalho escravo, no Brasil, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a superexploração preocupa. "O trabalho escravo não é um grande problema no setor sucroalcooleiro. Atinge 3% do trabalho escravo no País. Mas a superexploração é preocupante", afirma.

Otávio Balsadi, pesquisador que acaba de defender a tese de doutorado na Unicamp, diz que os trabalhadores temporários na cana são as maiores vítimas da desigualdade nas relações trabalhistas. Metade deles, diz, não possui carteira assinada.

Corrida por produção cria legião de excluídos
Usinas buscam cortador com superprodução e barram os mais velhos, mulheres e trabalhadores com histórico de licenças médicas

José Maria Tomazela

As usinas estão barrando trabalhadores que não atingem cota de produção elevada nos canaviais do interior de São Paulo. A exclusão atinge cortadores de cana com mais de 40 anos, os carteiras brancas (sem experiência) e aqueles com histórico de licenças médicas na ficha. A linha de corte seria uma produção mínima de 10 toneladas de cana colhida por dia. Por isso, as mulheres estarão menos presentes na maior safra de cana-de-açúcar do Estado que começa a ser colhida. A legião de excluídos acaba caindo nas mãos dos 'gatos' - intermediários de mão-de-obra - e se recebe salários menores.

O cortador de cana Euclides Nogueira Coelho, de 70 anos, morador de Guariba, é um deles. Recusado pela usina por causa da idade, empresta seu braço para Petronil Luz Ferreira, conhecido 'gato' da cidade. Coelho dispensa a luva, os óculos e as caneleiras, equipamentos de proteção obrigatórios. 'O cabo do facão escorrega', justificou. Ferreira, o empreiteiro, reclama que não consegue competir com os grandes grupos. 'Eu fico com o osso.'

Entre os excluídos, muitos vieram de outros Estados e, sem dinheiro para o retorno, vagam pela cidade em busca de ajuda. Quase sempre batem à porta da Pastoral do Migrante, ligada à Igreja Católica, ou do Sindicato dos Empregados Rurais de Guariba.

O presidente do sindicato, Wilson Rodrigues da Silva, conta que as usinas aumentaram as exigências depois das denúncias das 'birolas' - mortes por exaustão nos canaviais. De acordo com a Pastoral, de abril de 2004 até o fim do ano passado, houve 17 mortes de cortadores associadas ao excesso de esforço. Este ano, a Pastoral contabilizou entre as suspeitas a morte do cortador José Pereira Martins, de 51 anos, ocorrida no plantio. Ele sofreu um enfarte.

O aumento na fiscalização do Ministério do Trabalho agravou a exclusão, segundo Silva. 'As usinas dispensam cortadores que são apanhados sem luvas, caneleiras e equipamentos obrigatórios.' Por trás dessas justificativas, há o interesse das empresas em ter mão-de-obra altamente produtiva e de baixo custo. Silva acredita que por isso as mulheres estão sendo barradas. 'Elas perderam o espaço devido a competição por produtividade.'

Por causa de variedades de cana transgênica, mais leves e com alta concentração de sacarose, o cortador precisa trabalhar 40% mais para colher a mesma tonelagem de 10 anos atrás. 'É uma cana resistente a pragas, por isso tem a casca dura, que dificulta o corte.' A média de renda, no plantio, é de R$ 680, valor que sobe para R$ 900 na safra. 'O etanol é a vitrine do mundo, mas o trabalhador continua sendo explorado. Não ganha bem, se alimenta mal e deixa sua saúde no canavial', diz o sindicalista.

MARANHENSES

Os impactos causados pela migração levaram a Igreja Católica a reunir religiosos de dez Estados, no fim de março, no Piauí. A irmã Inês Facioli e o padre Antonio Garcia Peres, da Pastoral de Guariba, que participaram do encontro, constataram que os mineiros perderam para os maranhenses o primeiro lugar na migração para São Paulo. 'O Maranhão é o novo pólo, mas há um fluxo da Bahia e do Piauí', conta o padre.

De acordo com a irmã, as usinas dão preferência ao trabalhador que ultrapassa a cota de 10 toneladas diárias. Como a safra deste ano é maior, está sendo admitida uma porcentagem mínima de carteiras brancas.

A maioria ainda viaja por conta e acaba sendo aliciada pelos 'gatos' de empresas que atendem usinas menores. Muitos voltam mutilados ou com problemas de saúde. Acabam ficando inválidos. A pesquisadora Maria Aparecida Moraes Silva produz um documentário sobre os mutilados da cana. Mesmo usando proteção, eles cortam as mãos, o lado das pernas, os dedos do pé. No plantio, se equilibram sobre o caminhão carregado e há quedas e atropelamentos.

Ele relata casos de migrantes que tomam dinheiro de agiotas para viajar. 'A mulher e os filhos ficam como uma espécie de garantia do pagamento.'

Antonio Francisco da Silva, de 18 anos, desembarcou de um ônibus clandestino, em Guariba, para sua primeira safra. Foram três dias de viagem com mais 42 bóias-frias. Cada um desembolsou R$ 210 para pagar o transporte. Raimundo Nonato Silva, 24 anos foi quem acertou com a usina a lotação do ônibus. Todos os recrutados são de Timbiras. 'Eles (a usina) pediram só nego bom de físico.' Os 42 migrantes dividem duas casas alugadas na Vila Jordão, periferia de Guariba, onde um quarto comporta até 12 pessoas.

Usineiros já temem piora na imagem do setor
Expansão atrai novos investidores e aumenta preocupação social
Até a União da Indústria da Cana de Açúcar (Unica), associação que reúne usineiros de 96 unidades, teme pelo que possa ocorrer nos canaviais com a quantidade de novos usineiros que surgem a cada momento no Brasil. 'Tem gente vindo para o setor que ninguém sabe de onde veio', afirma Antonio de Pádua Rodrigues, diretor técnico da entidade.

O temor é que problemas trabalhistas, como os observados no plantio de cana da Usina Renascença na semana retrasada, comprometa a tentativa do setor de melhoria da imagem, principalmente em relação a situação dos bóias-frias. Uma fiscalização do Ministério Público do Trabalho (MPT) identificou 90 trabalhadores num plantio de cana em condições degradantes. A usina foi autuada.

A Unica afirma que tem organizado eventos no interior de São Paulo para orientar melhor o setor sucroalcooleiro, principalmente em relação ao tratamento dado aos cortadores de cana, seja no ambiente de trabalho seja nos alojamentos montados para abrigar os migrantes. Embora não seja ilegal, a entidade tomou a decisão de tentar acabar com a terceirização no setor.

'A Unica é terminantemente contra a terceirização da atividade de corte de cana com o objetivo de reduzir o custo do trabalho. Trabalhamos para o fim da terceirização', afirma Rodrigues. A medida já começou a ser implementada com maior força neste ano, mas, segundo ele, a terceirização ainda existe. Segundo o Ministério Público, a terceirização é um dos sistemas de relação trabalhista que provoca a precarização das condições de trabalho.

Desde o ano passado, o setor passou a ser alvo de blitze do Ministério Público e de auditores fiscais do Ministério do Trabalho. Mais de 800 autos de infração pelo MT já foram lavrados contra as usinas desde o ano passado. O setor já assinou 41 termos em que se comprometem a cumprir com a legislação trabalhista.

Segundo Rodrigues, a fiscalização tem sido eficiente e, de fato, tem revelado problemas. 'As fiscalizações e as autuações até agora têm sido justas. E isso tem ajudado a melhorar o setor', afirma. Na avaliação da Unica, a ofensiva das autoridades já surtiu efeito educativo. 'Isso mostra que o setor começa a se adequar.'

OESP, 01/04/2007, Economia, p. B12

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