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A morte do pacificador

Site da Funai - Brasília-DF
11 de Out de 2004

"(...)Eu prefiro morrer lutando ao lado dos índios em defesa de suas terras e seus direitos do que viver para amanhã vê-los reduzidos a mendigos em suas terras", Apoena Meirelles, 1982, sobre os Cinta-Larga.

Por que, por que, por que? - Repetiam os caciques e pajés Xavante, no idioma nativo, abraçados ao caixão, na última homenagem ao sertanista Apoena Meirelles, na manhã do dia 11 de outubro, no auditório da Funai, onde foi velado o corpo do servidor da Funai. Em seu bordão fúnebre, os índios que ali estavam externavam revolta, dor, perplexidade diante da tragédia que comoveu o mundo indigenista brasileiro.

Ao final, mensagens do canto fúnebre Xavante e frases do discurso do pajé Siriburã foram traduzidas para o português e a sentença maior foi o pedido dos caciques para que o crime seja desvendado. "Perdemos o nosso pai, nosso amigo, nosso irmão. Por que, por que, porque?", concluiu o cacique Bebé Xavante que conviveu com Apoena e o pai dele, Francisco Meirelles, na aldeia dos Ariões (MT).
Com a morte de Apoena Meirelles encerra-se um ciclo de tradição do indigenismo pautado nos princípios humanistas da pacificação e iniciado pelo pai dele, Francisco Meirelles. "Foi isso que ele fez a vida inteira, apaziguar índios e não índios e aprender a respeitar os outros", comentou o antropólogo Cláudio dos Santos Romero, amigo e colega de trabalho de Apoena.

Para o sertanista Sidney Possuello, coordenador de Índios Isolados da Funai, a trajetória de vida dos Meirelles foi de máxima importância para os índios brasileiros. "Apoena herdou do pai o sentimento de defesa e dedicação à causa indígena". Possuelo, que conviveu com Apoena em frentes de contato com povos indígenas disse que o crime surpreendeu a todos que conheciam o sertanista: "Morrer dessa maneira, estupidamente, logo ele que passou a vida enfrentando tantos perigos.".

Pesar - O presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes, muito comovido durante todo o velório, observou em seu discurso que a morte de Apoena "é uma perda irreparável para o indigenismo brasileiro". Ele voltou a dizer que o caso será investigado "até o fim". Na presença dos filhos de Apoena, Chico e Tainá, o presidente da Funai fez uma imagem forte e dolorosa da morte de Apoena. "Eu peço desculpa a vocês. Nós da Funai o convidamos a voltar a trabalhar quando ele já estava aposentado. Mas eu sei que o seu espírito de homem destemido, sua alma de guerreiro e a sua dedicação à causa indígena falaram mais do que este convite. Ele nasceu para dar continuidade ao trabalho do pai e de outros indigenistas que fazem parte de um pequeno grupo de heróis brasileiros. Apoena é de fato um verdadeiro herói brasileiro".

Com a voz embargada, lágrimas que a todo instante brotavam de seus olhos, o momento do abraço nos familiares de Apoena e a homenagem dos Xavante inflamaram o ambiente de comoção. "Estamos todos órfãos, presidente", disse o cacique Tsepito Xavante, na saída do auditório da Funai. E pediu justiça: "Queremos que descubram o assassino. Isso tem que descoberto, o sr. vai nos prometer", concluiu a liderança Xavante.

Em nome dos funcionários da Funai, o antropólogo Cláudio Romero que trabalhou ao lado de Apoena ao longo de toda a sua carreira, lembrou que poucos sertanistas e indigenistas possuíam poder semelhante ao de Apoena de negociação com índios para evitar conflitos. Ele era respeitado e escutado não apenas pelas lideranças das etnias com as quais fez os primeiros contatos, como os Xavante e os Cinta-Larga, mas pela maioria dos povos que recebiam a sua visita e viam na sua presença um homem branco que sabia respeitar o direito dos outros e defendia a causa indígena, concluiu Romero. O corpo de Apoena foi levado para o Rio de Janeiro (RJ), onde será sepultado, amanhã (12), às 10h, no Cemitério do Caju, o mesmo onde seu pai está enterrado.

Investigações - Embora a Polícia Civil de Rondônia já tenha descartado a tese do não latrocínio, a Polícia Federal tem sido mais cautelosa e trabalha em duas linhas de investigação: a de um caso de latrocínio e da possibilidade do indigenista ter sido vítima de um crime encomendado. Meirelles estava em Rondônia coordenando uma força-tarefa criada para impedir a entrada de garimpeiros nas aldeias dos Cinta-Larga e na área de mineração de diamantes da Reserva Roosevelt.

As polícias Federal e Civil já têm o retrato falado do criminoso e estão analisando a fita da câmera de vídeo da agência do Banco do Brasil de Porto Velho onde Apoena foi assassinado, mas a identificação, mas ainda não foi possível identificar o criminoso. Um perito da PF de Rondônia está chegando hoje (11) em Brasília para ajudar a descrever as imagens do vídeo que gravou os últimos instantes de Apoena e a fuga do assassino.

A PF cercou os principais pontos da cidade com barreiras e já pediu apoio de outras superintendências da região para aumentar o contingente de policiais. As operações ganharam o reforço de homens das polícias Civil e Militar de Rondônia.
Nos últimos 15 dias Apoena vinham comentando com outros indigenistas da Funai que estava sendo seguido em Brasília e em Porto Velho. O sertanista estava em Porto Velho há 12 dias coordenando trabalhos da Operação Roosevelt e finalizando um relatório sobre a situação da Reserva Roosevelt. No dia 17 de setembro o governo brasileiro baixou decreto proibindo mineração em terras indígenas, por tempo indeterminado, e criando um Grupo de Trabalho para avaliar o potencial das jazidas de minérios em todas as terras indígenas, começando por Roosevelt.

A proibição da mineração e extração de diamantes em terras dos Cinta-Larga provocou insatisfação no meio político de Rondônia e entre empresários de vários setores que atuam na região. A presença de Apoena nas aldeias dos Cinta-Larga representava se não a paz, mas a trégua e o respeito por suas considerações sobre a paralisação das atividades de mineração. Os caciques Cinta-Larga sempre escutaram Apoena, que era tratado por eles como pai, filho, irmão e amigo.
Trajetória - O pai o iniciou nos caminhos do Sertão desde os quatro anos de idade e com ele aprendeu a ter paciência, a escutar e a dar opiniões sobre qualquer assunto relacionado ao tema indígena. Carregava no olhar o brilho do olhar do pai e na maneira enxergar o mundo e a vida sua consciência o fazia perceber a tragédia da humanidade e a necessidade da alegria para viver.

Recusava-se a concordar com a invasão primeiro dos Cinta-Larga e Suruí, em Rondônia, por colonos protegidos por leis estaduais de projetos de expansão de fronteiras agrícolas e de assentamentos pelo Incra, ainda na década dos anos 70. Ao mesmo tempo, Apoena entendia que os índios tinham direito ao conforto de parte da sociedade brasileira, desde que não perdessem os elos ancestrais de sua cultura, seus costumes e tradições religiosas. Ainda assim, sua visão de futuro indicava um cenário sem perspectivas no porvir dos povos indígenas, a maioria acossada pela grilagem de terras, extração de madeira e de minérios por aventureiros e empresários que ainda hoje atuam na ilegalidade e depredam o patrimônio ambiental e cultural das etnias.
Para Apoena, "o índio é um ser dotado das mesmas capacidades de desenvolvimento dos não índios". Começou cedo na trilha do indigenismo, nos moldes preconizados por Francisco Meirelles e de integrantes de uma geração de sertanistas que hoje morre com a morte de Meirelles. Desde os 20 anos era sertanista na categoria "A", da Funai. Seus principais trabalhos foram a consolidação da atração dos Kren-Akarore, os índios descritos como "gigantes", em Mato Grosso, e dos Waimiri-Atroari, na Amazônia, que acuados por invasores, estavam em pé-de-guerra.

Além dessas etnias, Apoena comandou as frentes de atração dos Suruí e Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, estado onde fez quase toda a sua carreira de indigenista. Consolidou as atrações dos Zoro, em Mato Grosso; Avá-Canoeiro, em Goiás e Cinta-Larga, em
Mato Grosso e Rondônia.

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