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Mortalidade supera média em 70% de áreas

Folha de S. Paulo-Sâo Paulo-SP
Autor: FLÁVIA MARREIRO
06 de Mar de 2005

Entre 34 distritos indígenas da Funasa, MS, onde 11 crianças morreram por desnutrição em 2005, é 15o no ranking da mortalidade infantil de 2004

A saúde da criança indígena no Brasil tem um ranking surpreendente e grave: Mato Grosso do Sul -onde 11 crianças morreram este ano por desnutrição- aparece apenas em 15o lugar, listados os índices de mortalidade infantil registrados em 2004.
As aldeias do Estado constituem um dos 34 Dseis (Distrito Sanitário Especial Indígena), as divisões administrativas da Funasa para o setor. Deles, 24 -70,5%- têm mortalidade infantil maior que a média brasileira -24,3 mortos a cada mil nascidos vivos.
O Mato Grosso do Sul registrou 50,10 mortes a cada mil nascidos vivos em 2004. Antes, a Funasa havia informado um índice maior, 60,53 (os dados foram revisados, segundo a assessoria). Um ou outro número, porém, são mais que o dobro do indicador nacional e põem o Estado longe do campeão da lista: o distrito Xavante, no Mato Grosso.
Entre cerca de 12 mil xavante, a mortalidade infantil em 2004 alcançou 133 mortes por mil nascidos vivos -índice 22% maior que 2003 e 5,5 vezes maior que a média nacional. Foram 36 bebês mortos em 2004.
Três das crianças xavante morreram de desnutrição enquanto suas famílias acampavam ao lado da BR-163, para protestar contra terras ocupadas por posseiros. Mais de dez foram internadas com doenças respiratórias. Em 2005, mais cinco crianças morreram de desnutrição.
No distrito Litoral Sul -inclui a capital e o litoral de São Paulo e vai até o litoral gaúcho, outra área com conflito de terra- os números assustam: cem mortos por mil nascidos vivos, salto de 224% em relação a 2003. Foram quatro mortos por desnutrição.
Além da causa mais chocante das mortes, a fome, os dados jogam luz sobre o atendimento de saúde de 434 mil índios espalhados nas aldeias do país -29% dessa população tem até 9 anos.
"Não é só na mortalidade que há este abismo entre os indicadores da população geral e os indígenas. É educação, no acesso a tudo", diz o pediatra Renato Yamamoto, que coordenou a publicação de um manual sobre a criança indígena, parceria da Sociedade Brasileira de Pediatria e a Funasa.
As razões para o abismo são apontadas por médicos e antropólogos: além do acesso à terra e conflitos ligados à questão, há problemas na política de saúde.
Não se pode falar de padrão de atendimento na saúde indígena. O serviço avaliado como satisfatório no Parque do Xingu (MT), onde a mortalidade infantil foi de 36,5, não se repete no distrito Vale do Javari (AM), onde o índice é 85 e nove crianças morreram por desnutrição em 2004. No geral, os resultados, díspares de um ano para o outro em cada área, são fruto da situação de cada povo (epidemias, conflitos) no período e das turbulências do modelo administrativo de saúde.
Desde 99 no comando da saúde indígena, a Funasa faz convênios com ONGs e universidades ou repassa a prefeituras para que contratem, na ponta, os profissionais para as aldeias. O SUS deve atender os casos mais complexos.

Preparo para o trabalho
Um dos nós do sistema é a mão-de-obra. A Funasa não tem instrumental suficiente para supervisar todas as entidades conveniadas. Não tem como garantir, portanto, que todos os profissionais em campo saibam lidar com o público nem que tenham um mínimo de permanência na função.
As duas condições são essenciais para o sucesso do atendimento tanto das crianças como da população em geral, diz o médico Douglas Rodrigues, coordenador do Projeto Xingu, da Universidade Federal de São Paulo, há 40 anos na área. Para ele, o argumento de que a cultura de cada etnia dificulta o trabalho, como foi dito no caso de MS, é falacioso.
"É uma inversão. Tem de estabelecer um diálogo intercultural. Aqui no Xingu, não só não atrapalha [a medicina tradicional], como ajuda. Um dia apliquei um soro em uma criança enquanto o pajé rezava do lado. Os médicos têm de ter conhecimento mínimo de outros sistemas de cura, de antropologia", diz Rodrigues.
O antropólogo Gilberto Azanha, que trabalha na região do distrito do Vale do Javari, também alerta para as especificidadades do trabalho. "Há sim barreiras culturais. Os índios tem uma teoria do corpo. A Funasa diz coisas de cima para baixo. "Micróbio é micróbio". Para eles, não. É uma noção complicadíssima, abstrata."
Mas para o chefe do Dsei Xavante, Paulo Félix, as dificuldades culturais ajudam a explicar o mau resultado do distrito. "Temos vários problemas com isso. Há pouco espaço entre as gestações, o que interrompe a amamentação, há hierarquia alimentar [adultos comem primeiro], há resistência aos profissionais", diz. Admite, porém, que a rotatividade de pessoal é grande e que a capacitação resume-se a um seminário.
Edson Beiriz, administrador-executivo da Funai na região, cobra trabalho integração da Funasa. "Não tem como impor uma visão de mundo. Esse tipo de problema [de relacionamento com os índios] não ocorre com a Funai."
A crítica de Bereiz à Funasa também foi feita por Mércio Gomes, presidente da Funai, na última quinta na Folha. A Funai respondia pela saúde indígena até 99.
"Essa disputa pela imprensa entre órgão A e B, quem é o mais capacitado, acontece na hora menos apropriada. Os dois são incapacitados", diz Sérgio Leitão, diretor-executivo da ONG Instituto Socioambiental.

Dieta e emergência
A ação em Dourados, no MS, onde a política de emergência da Funasa, do Ministério do Desenvolvimento Social e da Funai tem sido a distribuição de cestas básicas, também sofre críticas. Para Douglas Rodrigues as cestas podem ter efeito limitado também quanto à questão nutricional: "A dieta dos guarani é monótona, mas balanceada. Tiro pelos povos do Xingu. É mandioca, peixe e três ou quatros tipos de frutas. Quando se substitui por arroz, macarrão, desbalanceia

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