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Mortalidade infantil entre índios dobra em três anos, revela estudo

OESP, Nacional, p. A4
16 de Jan de 2006

Mortalidade infantil entre índios dobra em três anos, revela estudo
Em três regiões do País, morte de crianças indígenas com menos de 5 anos supera a de adultos maiores de 65

Lígia Formenti

Um estudo do Ministério da Saúde, esquecido nas gavetas da Fundação Nacional da Saúde (Funasa), revela que o grande problema dos 450 mil índios brasileiros não são as terras, mas a saúde de suas crianças. Em apenas três anos, de 2000 até 2003, segundo esse estudo, a mortalidade infantil entre as 215 etnias indígenas do País dobrou, chegando a um índice cinco vezes maior que o verificado entre populações brancas do País. Em 2000, o numero de mortes de bebês índios até um ano era 2,78 maior que o mesmo índice entre bebês brancos. Em 2003, essa proporção saltou para 5,12.

Ou seja, a cada bebê até um ano perdido pelas populações brancas, as comunidades indígenas perdem 5. "É preciso tomar providências. Senão, dentro de algum tempo a existência da população indígena estará sob sério risco", avalia a pesquisadora do Ministério da Saúde Ana Luiza Beierrenbach, integrante do Saúde Brasil - 2005, documento que dedica um capítulo aos índios.

A explosão da mortalidade infantil nas tribos brasileiras esquenta ainda mais a polêmica desencadeada na semana passada, quando o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) afirmou que os índios brasileiros "têm terras demais". Irritado com relatórios que considerou inexatos e com a constante pressão de ONGs e lideranças indígenas, Mércio Pereira Gomes disse que tais exigências passam dos limites. E do modo como vão as coisas, prosseguiu, a qualquer momento "o Supremo Tribunal Federal terá de definir um limite" para essas pressões.

Os índices revelados pelo novo estudo impressionam. Em 2003, de cada cinco índios que morriam, um não havia completado 12 meses. Foram 458 bebês, exatos 21,9%. Num universo maior, de crianças de até cinco anos, os números são ainda mais assustadores. Em três regiões - Sul, Centro-Oeste e Norte -, morrem mais crianças com menos de cinco anos do que índios adultos com mais de 65. "É uma reversão da tendência natural. O comum, em todas as populações, é que a morte ocorra na terceira idade", constata Adauto Martins Soares Filho, outro pesquisador do Saúde Brasil 2005.

'Só vi por cima'
Encarregada de zelar pelas condições de saúde dos índios, a Funasa recebeu esse estudo, mas não prestou atenção nele. "Recebi o material, mas vi só por cima", admite o diretor de Saúde Indígena da Funasa, José Maria França. Ao ouvir as conclusões, ele não se abala. Prefere fiar-se nos dados coletados pela própria fundação, que apontam uma redução no número de mortes. Ele comemora: "Em 200, eram 74,6 mortes por mil nascidos vivos. Em 2004, a proporção caiu para 47,7%". Mesmo assim, o dado atual é considerado muito alto.

No entanto, outros indicadores da própria Funasa - até mais preocupantes do que o estudo anterior - derrubam a avaliação otimista de França. Eles revelam que entre 2000 e 2004 as mortes de crianças com menos de cinco anos representaram 45,3% de todos os registros de óbitos no período. No grupo com 60 anos ou mais, a porcentagem é bem menor: 25,34%.
Essas diferenças já eram esperadas. Estatísticas da Funasa levam em conta dados de índios das aldeias. Já as do Ministério da Saúde usam os da população indígena em geral e incluem índios das áreas urbanas. É significativo o número de mortes por causas externas (16,7%) e por doenças infecciosas e parasitárias (13,7%). "O suicídio é muito alto, vem crescendo desde 1999, principalmente na região Centro-Oeste", comenta André Carvalho, co-autor do estudo.

"É terra demais', diz Mércio
Um desabafo do presidente da Fundação Nacional do Índio, Mercio Pereira Gomes, deixou furiosos os indigenistas e as ONGs que se dedicam à assistência às 215 etnias. "É terra demais", comentou ele na quinta-feira, sobre os 12% da área do País ocupados pelos 450 mil índios.

A frase era uma reação à divulgação, pela Anistia Internacional, de um relatório que atribuía ao governo federal a responsabilidade pelo aumento de mortes entre populações indígenas.

Segundo a Anistia, o governo contribuiu para as mortes por causa da demora na demarcação de terras. Gomes replicou, afirmando que boa parte dessas mortes - cerca de metade - resulta de brigas entre os próprios índios, quando embriagados. A Anistia se baseou em relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). A Funai procurou desfazer o mal estar em declaração na qual critica as ONGs, especialmente o Cimi.

Para vice do Cimi, falta de terras é que os deixa doentes

Lígia Formenti

A precária saúde das populações indígenas está associada a outro problema, além da ineficiência na estrutura oferecida: especialistas não hesitam em vincular os baixos indicadores à questão fundiária. Da população total, 35% residem em apenas 1,3% da terra dos índios.

"Sem terra, eles perdem todo o vínculo com a cultura tradicional, o que agrava problemas como desnutrição e as mortes por causas violentas, como o suicídio", constata o vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Saulo Feitosa.

O atual governo, segundo ele, reservou uma triste surpresa nesta área: "Contávamos com um ritmo mais rápido de demarcação nas terras indígenas. Mas foi uma ilusão", afirma. Pelas contas de Feitosa, o governo Lula registrou uma média de 6 demarcações por ano, média que perde até para o governo do general João Figueiredo, que fez na média oito demarcações anuais. "Foram feitas homologações, é verdade, mas eram apenas confirmações de processos que já vinham sendo desenvolvidos."

A íntima relação entre saúde e terras é confirmada pelo coordenador do Programa Xingu da Universidade Federal de São Paulo, Douglas Rodrigues. Ele compara os casos de desnutrição de algumas aldeias do Xingu com outras do Rio Negro. "Em algumas aldeias do Xingu, as taxas chegam a 20%. No Rio Negro, em aldeias Maku-Hupta, por exemplo, onde o meio ambiente foi alterado por atividades no entorno da reserva, o índice chega a 70%", compara. Desnutridos, o risco de morrer por diarréias, pneumonias ou tuberculose aumenta de forma significativa.

A terra, afirma Rodrigues, também é o alicerce para a manutenção das tradições. "Quando este vínculo se rompe, outros ficam frágeis. O que expõe mais ainda a população a comportamento de risco." Tabus ajudam a evitar, por exemplo, a gravidez na adolescência. O resguardo, quando respeitado, evita duas gestações muito próximas. "O desmame nas tribos geralmente é tardio. Mas se a mulher engravida de novo, acaba abandonando a amamentação do filho, aumentando o risco da desnutrição."

Loteamento da Funasa desorganiza ajuda às tribos
Coordenador do Projeto Xingu diz que luta contra, mas nomeações políticas são intensas

Lígia Formenti

Responsável por dois convênios firmados com a Fundação Nacional de Saúde para dar assistência a grupos indígenas, o coordenador do Projeto Xingu da Universidade Federal de São Paulo, Douglas Rodrigues, desabafa: "Estou cansado de receber indicações políticas para preencher cargos. Muitos não sabem nada da área. Aqui, isso não passa", afirma. Ele constata, no entanto, que a prática ao longo dos últimos anos se intensificou e o loteamento de cargos na Funasa, hoje, é feito desde o nível central até a ponta. "O resultado está aí: em várias regiões falta de tudo, desde gasolina para equipes até dipirona ou remédio para tratar diarréia nas aldeias."

O desmonte do já precário sistema de atendimento aos índios começou em 2003, com uma portaria que concentrava poderes na Fundação Nacional de Saúde para compra e distribuição de medicamentos e insumos. "De início, elogiamos a medida. Sempre achamos que o atendimento da saúde indígena deveria ser feito apenas pela Funasa, não por ONGs ou outras instituições contratadas", afirma o vice-presidente do Conselho Nacional Indigenista (Cimi), Saulo Feitosa.

"Mas tudo foi feito de forma atabalhoada, sem um período de transição. O resultado foi a desestruturação total." Com a reforma, convênios ficam encarregados apenas dos recursos humanos. O restante é providenciado pela Funasa. "Na época, vésperas das eleições municipais, foi uma ótima moeda de troca com grupos locais", recorda um integrante de Organização Não Governamental que trabalha nesta área.

Douglas Rodrigues, que há 20 anos atua em programas de saúde para populações indígenas, afirma que desde que o novo sistema começou a funcionar, o planejamento das ações quase nunca é cumprido. "Vivemos aos sobressaltos", resume. Na semana passada, por exemplo, uma campanha de vacinação esteve prestes a ser cancelada, por falta de avião.

O próprio diretor da Funasa, José Maria França, admite a falta constante de medicamentos: ele diz que, ao assumir em agosto, encontrou um orçamento praticamente esgotado. "Tivemos de pedir suplementação orçamentária. E sem dinheiro, fica difícil trabalhar."

Rodrigues, no entanto, avalia que o problema não é apenas logístico e muito menos, temporário. "Há problemas estruturais que precisam ser resolvidos com urgência", avalia. Há distritos de saúde indígena funcionando de forma precária, com aparelhos quebrados.

Tanto Rodrigues quanto Feitosa afirmam que o maior entrave, no entanto, é a falta de vontade política. "Índios são uma pedra no sapato de madeireiros, garimpeiros, do agronegócio. Seria ingenuidade esperar que dirigentes locais comprassem briga com esses setores para defender ou atender os interesses dessas populações", afirma Feitosa. "Quanto mais fracos os índios, melhor', ironiza.

OESP, 16/01/2006, Nacional, p. A4

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